quinta-feira, dezembro 30, 2010

Livro: OS NÁUFRAGOS DA ILHA TROMELIN de Irène Frain (6)

Entre 1761 e 1776 os náufragos africanos do navio L’Utile, da Companhia Francesa das Índias, ficaram entregues à sua (má) sorte no ilhéu, que viria a ser designado por Tromelin por ser esse o nome do capitão bem sucedido na missão de aí recolher os sobreviventes. Que eram sete mulheres e um bébé.
Os demais tinham morrido na ilha ou no mar depois de, com os restos do navio naufragado, construírem frágeis jangadas, incapazes de resistirem aos caprichos do Índico. Nesse sentido procuravam replicar o sucesso de Castellan, capaz de pôr a salvo os sobreviventes brancos do naufrágio.
Nesses quinze anos aquelas negras tinham enfrentado terríveis furacões e encontrado engenho em se alimentarem com os escassos recursos da ilha: pássaros, tartarugas, peixes.
Tinham, igualmente, ficado alheadas das lendas a seu respeito e consequentes campanhas anti-esclavagistas, que culminariam em anos vindouros - já durante a triunfante Revolução Francesa - na total ilegalização do tráfico negreiro.
O romance de Irène Frain constitui um tributo a esta prodigiosa odisseia de um punhado de heroínas pela sua sobrevivência. E não teria sido possível sem os trabalhos arqueológicos sobre elas executados na própria ilha.

Livro: A VIAGEM DOS INOCENTES de Mark Twain (5)

Quer em Veneza, quer em Florença, Mark Twain desfila diante de milhares de quadros, que repetem os mesmo temas religiosos e pouco o sensibilizam. Por muito que sejam assinados por Ticiano, Tintoretto ou qualquer outro grande mestre.
Mas reconheça-se que Twain, por essa altura, ainda nem sequer sabia da importância do Renascimento na arte europeia de trezentos anos atrás. E, no entanto, a ingenuidade com que reconhece a sua ignorância, continua a estar presente no nosso ofício de turistas do século XXI. Porque, contaminados pela pressa de consumirmos o mais possível no espaço de tempo mais curto, também nós sprintamos pelos corredores das galerias dos museus sem nos atardarmos a contemplar cada obra com a disponibilidade, que cada uma mereceria.
Nesse sentido os documentários de Hector Obalk ou os seus apontamentos de reportagem para a magazine televisiva «Metrópolis» do canal franco-alemão ARTE servem-nos de reeducação. Porque mesmo nos quadros mais anódinos de santos ou de paisagens campestres surgem pormenores, que muito revelam sobre as preocupações do artista ou os valores da sociedade em que se integrava. E essas descobertas são passos firmes e decididos na nossa conquista do conhecimento. E é este o que melhor nos dota dos meios para nos entendermos e ao mundo à nossa volta...

terça-feira, dezembro 28, 2010

Filme: AMELIA de Mira Nair (2009)

A personalidade de Amelia Earhart até é bastante interessante pelo sua condição de pioneira nas grandes aventuras transatlânticas nos primórdios da aviação.
Por seu lado o tratamento dada à personagem de George Putnam enquanto marketeer eficiente na criação de condições financeiras para possibilitar a actividade aventureira da mulher também não deixa de ter o seu interesse por muito que Richard Gere continue a ser o mesmo insuportável canastrão.
No entanto, e apesar de todas as  potencialidades de que dispunha, o filme de Mira Nair não se distingue da mediania dos biopics em que a vida de alguém é dramatizada em função das suas turbulências amorosas até se concluir num desenlace conhecido de antemão.
Ficam, assim, por serem respondidas algumas  questões pertinentes: como é que uma campónia do Kansas consegue chegar à condição de aviadora? Até que ponto a sua sexualidade insatisfeita não escondia um lesbianismo nunca assumido (e que a própria androgenia de Hillary Swank poderia ajudar a situar)? E que contexto político e social levou Franklin Roosevelt à Casa Branca?
O aparecimento do casal Roosevelt ou do pai de Gore Vidal (com quem Amelia viverá uma aventura extra-conjugal) apenas vêm compor a paisagem sem assumirem a condição de personagens. Mira Nair, a esse respeito, só se preocupa em dar consistência à protagonista e ao seu companheiro  - e mesmo este pouco nos esclarece sobre as razões para parecer dar tanto em troca de tão pouco!
O cinema já encontrou muitas maneiras de abordar mais imaginativamente a  biografia de personalidades históricas. Mas a metodologia aqui ensaiada peca por pouco imaginativa, inconsistente…
Nesse sentido é o típico filme chiclete, de consumir e deitar fora….

sábado, dezembro 25, 2010

Documentário: O NOVO CINEMA ESCANDINAVO de Jean-Marie Nizan e Stéphane Bergouhnioux (2010)

Será que «Millenium», o filme baseado no primeiro livro da trilogia de Stieg Larsson, o melhor exemplo do que é hoje o cinema escandinavo? Se a bitola forem as suas receitas de bilheteira, arriscamo-nos a uma resposta positiva. Mas o documentário de Nizan e Bergouhnioux quer ir mais além, interrogando realizadores, produtores e actores suecos, dinamarqueses ou noruegueses sobre uma questão pertinente: quando se vive quase sempre a temperaturas tão negativas e em longas noites sem luz ver-se-á a vida de outra forma? Quase todos os entrevistados coincidem numa conclusão: pelo menos existe um óbvio peso do silêncio. Ora, o silêncio é, precisamente, bastante cinematográfico.
Começa-se assim pela Suécia, o país que, a nível mundial, conta com mais salas de cinema por milhar de habitantes.
Stellan Skarsgard, actor de Hollywood, que se serve de grandes produções cinematográficas («Os Piratas das Caraíbas») para ganhar o dinheiro necessário às suas produções pessoais no país natal, considera que o fantasma de  Ingmar Bergman paira sobre todo o cinema sueco como um constrangimento, ao transformar-se numa herança difícil de reproduzir.
E, no entanto, o cinema sueco procura sacudir essa herança abordando temas muito actuais, como ocorre com «Together» e «Fucking Amal», filmes de Lukas Moodysson, quase em jeito de documentário. Segundo ele, há tantas coisas a contar, hoje em dia, sobre a Suécia: os seus silêncios, os seus grandes espaços, o seu sentido de dever, a sua abnegação!
Outra é a opção de Thomas Alfredson que parte do principio de se ser tanto mais universal, quanto específico se aparentar ser.  «Morse», por exemplo, é filme de vampiros em que se evoca a violência com imagens fortes, que sugerem muito mais do que chegam a mostrar.
Passando para a Dinamarca temos o país escandinavo aonde a produção é mais intensa. Sobretudo desde que Lars Van Trier se tornou a sua figura tutelar com a definição de princípios contida no manifesto «Dogma». Que impunha filmes destinados a incomodar, que constituam para o espectador uma espécie de pedra no sapato.
Mesmo já declarado morto, esse movimento ainda deixou sequelas. Susanne Bier, por exemplo, continua a apostar numa sinceridade como essência dos seus filmes: num deles há um casamento em cuja cerimónia a noiva anuncia saber que o seu suposto pai não é efectivamente o seu verdadeiro progenitor biológico, mas homenageando-o para incómodo dos presentes, que vêem assim destruído o cenário de aparências em que sempre tinham vivido.
Num outro estilo Nicolas Winding Refn explora, em «Pusher», a violência exibindo-a de uma forma insuportável para a maioria dos espectadores ocidentais, mas que os dinamarqueses parecem apreciar. Com outras preocupações mais ambiciosas, Christopher Boe mostra em «Allegro» uma zona segregada de Copenhaga transformada numa espécie de gueto. Nós sabemos estetizar as dores da alma, confessa quando refere a sensação de perda e a dor consequente como temas obsessivos a que se refere a sua obra. Escandinavo diz Boe sentir-se em função da sua melancolia, dessa vontade de mergulhar na floresta densa como via para se encontrar.
O documentário de Nizan e Bergouhnioux conclui-se na Noruega, o país mais rico do mundo e um dos mais recentes pois só se tornou independente da Suécia há pouco mais do que um século (1905).
Sem a tradição cinéfila dos vizinhos os realizadores noruegueses ainda estão à procura do seu próprio estilo, mas já claramente com a solidão mostrada de forma minimalista no meio de grandes espaços. Jens Lien é um desses realizadores, que adopta anti-heróis como personagens, ansiosos por não se demarcarem dos demais à sua volta.
Bent Hamer é outro dos nomes mais considerados sendo dele o filme de um maquinista, que se reforma ao fim de trinta anos de profissão e sente grandes dificuldades em se adaptar aos novos ritmos do seu quotidiano.
Um dos filmes noruegueses de maior sucesso no mercado alemão foi  «A Arte do Pensamento Negativo» de  Bard Breien, que é a história bem humorada e plena de emoção de dois deficientes. O realizador, que se confessa um seguidor do estilo Dogma, conta como em criança se chocara ao descobrir que o pai era o editor das revistas pornográficas, que costumava apreciar ás escondidas.
Mas também se cultiva um tipo de cinema de terror por parte de Tommy Wikkola, que vive e trabalha em Alta, já a norte do Círculo Polar Árctico…
Depois de tantas entrevistas e extractos de filmes, forçoso é concluir que o cinema escandinavo é feito de uma diversidade muito grande de propostas e de preocupações, residindo nisso mesmo a sua maior afirmação de dinamismo...

sexta-feira, dezembro 24, 2010

«OS NÁUFRAGOS DA ILHA TROMELIN» de IRÈNE FRAIN (5)

Cem horas levaram os náufragos da ilha Tromelin a chegarem a bom porto de Madagáscar. Mais precisamente àquele donde haviam partido três meses antes com o seu carregamento de escravos.
Só que, desta feita, os escravos sobreviventes do embate com os recifes da pequena ilhota ficaram para trás, com a promessa de Castellan de ali voltar para os resgatar.
Promessa, que se adivinha desde já impossível de cumprir, porquanto ninguém está disposto a ajudá-lo a cumprir a sua palavra.
E adivinha-se a triste sina dessas dezenas de homens e mulheres de cor escura, ali abandonados num sítio com comida e água insuficiente para sobreviverem…

sábado, dezembro 18, 2010

Teatro: «1974» do Teatro Meridional

Desilusão inesperada foi a sensação com que saímos do Teatro Nacional D. Maria II depois de ver a mais recente produção do Teatro Meridional.
Resultado tanto mais estranho quanto as críticas eram boas, os actores são excelentes, as ideias cenográficas são interessantes e, à partida, o espectáculo teve um inspirador do gabarito de José Mário Branco.
A escolha pelas técnicas performativas, mais do que pela estética dramatúrgica convencional começa por ser um risco, já que os espectadores não estão propriamente identificados com opções dispensadoras das palavras.
Mas o que falta para que o nível de satisfação inflectisse não são propriamente as palavras. O que se sente como estranha ausência é a formulação de uma resposta mobilizadora à constatação de impasse em que nos encontramos nesta altura. Como o conseguiu o «Bando» no seu «Rua de Dentro», quando punha as três mulheres a subirem a encosta e a desaparecerem do outro lado.
Aqui conclui-se pela insatisfação face a um país, que depois da miséria e do preconceito da época fascista se entregou ao consumismo, ao poder dos boys, à vacuidade do discurso político ou ao glamour de opereta das revistas cor-de-rosa ou dos espectáculos ao estilo de Catarina Furtado. Depois de ter passado por esse momento mágico, o da Revolução de Abril, traduzido aqui em mímica e em completa ausência de sons.
Há uns anos a Barraca transportou para o contexto português esse Baile que Ettore Scola começara por imaginar em linguagem cinematográfica. As canções e os movimentos dos actores nas pistas de dança iam dando o reflexo dos acontecimentos e dos valores de cada época. Poderia ter sido uma boa solução para Miguel Seabra e para os seus jovens colaboradores. Nomeadamente a canção de José Mário, que mais apeteceria entoar no final: «eu vi este povo a lutar/para a sua exploração acabar/ sete rios de multidão/que levavam a História na mão.
Aqui não se leva senão a apagada e vil tristeza de tudo quanto é fado...


1974 Teatro Meridional

quinta-feira, dezembro 16, 2010

Bright Star Movie Trailer

Filme: «BRIGHT STAR - ESTRELA CINTILANTE» de Jane Campion

Há filmes que fazem pouco sentido hoje em dia. Como é o caso deste que é assinado pela australiana Jane Campion, dedicada à personalidade do poeta John Keats e ao amor incontornável por ele suscitada numa jovem relativamente abastada, Fanny.
O ambiente não podia ser mais romântico: ambientes campestres, jovens de corações exaltados a traduzirem em palavras excessivas os seus espantos e paixões arrebatadoras. Fanny deixar-se-á arrastar por essa insanidade, mesmo começando por ser uma jovem cheia de vivacidade e com uma curiosidade insaciável por tudo quanto tem a ver com a poesia.
Para conquistar o seu poeta de eleição ela tem de defrontar a oposição de Brown, o amigo e anfitrião do poeta por quem parece nutrir uma estima algo ambígua.
É claro que os ritmos eram outros e o filme deixa-se contagiar por essa placidez entediante. Até Keats adoecer e se adivinhar a condição de eterna e inconsolável viúva em Fanny, cuja devoção amorosa pende completamente para o lado das emoções, sem por uma vez se lhe notar algo de sensata racionalidade.

quarta-feira, dezembro 15, 2010

«A VIAGEM DOS INOCENTES» de MARK TWAIN (4)

Será que, quando viajamos, nos pomos a comparar continuamente o que vemos com os sítios, com que mais nos identificamos?
Suscita-se tal questão, quando damos com um Mark Twain a descobrir a beleza do Lago Como e a lembrar-se com maior devoção do seu Lago Tahoe. Aquele cija transparência das suas águas o levaria a contar as escamas de uma truta, que por ele passasse a sessenta metros de profundidade.
Na sua viagem por Itália, Twain não deixa de execrar continuamente os guias fala-baratos ou intrujões com que se vai desentendendo, mas também se rende incondicionalmente aos méritos da Catedral de Milão, cuja magnificência não tem nada de similar no que até então ele vira.
Depois de lhe ler tais páginas fica-me a pena de ter estado só uma vez em Milão e, nessa altura, a catedral estava fechada e completamente tapada para obras de restauro...

«OS NÁUFRAGOS DA ILHA TROMELIN» de IRÈNE FRAIN (4)

Quando se não tem outra solução, pensa-se no impossível. É por isso, que tão só instalados numa pequena ilhota com alimentos e água insuficientes para a centena de sobreviventes do navio «L’Utile», estes vêem o seu novo comandante, Castellan  - que tomou naturalmente o lugar do enlouquecido Lafargue - a congeminar a possibilidade de construir um novo navio recorrendo para tal aos destroços do que encalhara nos recifes.
Não é uma ideia motivadora para a maioria dos náufragos, sobretudo para os brancos, mas Castellan, o cronista Keraudic ou o médico Herga, têm a plena noção de se tratar da única coisa a fazer. Mesmo que Castellan sofra de sucessivos ataques de pânico motivados pela pouca confiança nos seus dotes de construtor naval. Será que, em vez de um novo navio, estará a construir o seu próprio caixão?
O que  surge como evidente a um numero progressivo de sobreviventes, quer de um lado, quer do outro, é que a cor da pele pouco importa, quando se trata de unir esforços para encontrar uma saída para o impasse em que se vêem.

terça-feira, dezembro 14, 2010

Filme: ENTRE DOIS MUNDOS de Marc Haenecke (2010)

O que sentirão os doentes, que são mergulhados num coma induzido após operações delicadas aos seus cérebros.
Acompanhando durante sete meses a evolução de Werner e de Karin num hospital e numa clínica de reabilitação de Augsburgo, na Alemanha, é-se forçado a reconhecer a tremenda capacidade do corpo humano para recuperar das mais graves lesões e a dedicação afectuosa de terapeutas profissionais capazes de criarem verdadeiros milagres.
Quer Werner, quer Karin eram professores, mas de gerações bastante diferentes. Ele já é um sexagenário, que um dia é encontrado pela mulher logo após um acidente vascular cerebral. Karin, pelo contrário, ainda é bastante jovem e foi acometida de um tumor no cérebro.
Um e outro ficam reduzidos a quase um estado vegetativo de onde quase não se acredita poder-se regressar. E, no entanto, pelo seu querer íntimo, mas também com o apoio afectivo dos seus familiares mais próximos, um e outro conseguirão uma recuperação inacreditável, mesmo que incompleta.
Mas o filme de hora e meia também não deixa de fustigar a Segurança Social alemã, que olha de forma economicista para cada um destes casos humanos e chega a retirar apoio à reabilitação de Karin.
Se se pode equacionar por este exemplo as vantagens e as desvantagens de um Serviço Nacional de Saúde tendencialmente gratuito, as conclusões finais só poderão ser as de contrariar os projectos neoliberais da direita portuguesa.

sábado, dezembro 11, 2010

Dr No - Original Trailer

Filme: «DR. NO/ 007 AGENTE SECRETO» de TERENCE YOUNG

Foi com este filme, que o mito começou a criar-se: James Bond é enviado para a Jamaica para descobrir a razão do desaparecimento do colega Strangeways, aí radicado, e ao mesmo tempo para dar uma mãozinha à CIA na anulação de uma poderosa ameaça ao sucesso dos seus voos espaciais a partir de Cabo Canaveral.
Nesta época o mundo possibilitava interpretações muito primárias de quem eram os bons e os maus, pelo que Bond não terá dificuldade em identificar o pior dos inimigos na pessoa de um chinês, o Dr. No, cuja ilha é conhecida como particularmente inamistosa.
Depois de se deitar com algumas das belas bond girls de serviço, Bond ainda passa por um mau bocado em que se é levado quase a crer que a série irá acabar aqui mesmo. Mas, com o desembaraço, que se tornará habitual, lá se salva juntamente com a mais capitosa das parceiras (Ursula Andrews fazia aqui a sua entrada em cena na indústria), deixando um rasto de destruição atrás de si.
Fica salvo o mundo ocidental e os valores em que ele se acreditava definido…
Mas Terence Young dirige o filme com competência e com humor...

quinta-feira, dezembro 09, 2010

Livro: «A VIAGEM DOS INOCENTES» (3) de MARK TWAIN

O livro de viagens do grande escritor norte-americano continua a levar-nos para as cidades mediterrânicas na segunda metade do século XIX. Desta feita Génova com os seus palácios em pedra maciça, de grandes pés direitos, e com estreitas ruas  de onde se espreitam nesgas de céu por entre telhados, que quase se tocam.
A época áurea do comércio marítimo já era apenas saudade, mas a cidade especializara-se em filigrana de prata…
Particularmente atento às pessoas, Twain interroga-se, porque é que os homens têm o rosto tisnado apesar de protegidos quase sempre por chapéus, enquanto as alvas mulheres apenas se protegiam com finos véus. Um mistério, que fica por esclarecer!
Também relacionado com as pessoas da cidade o conselho de não se fumar tabaco italiano: é que o escritor e os companheiros de viagens vêem-se ali perseguidos por uma caterva de vagabundos ansiosos por recolherem as beatas por eles fumadas. Presume-se que para aproveitamento dos restos em novas misturas comercializáveis.
E há, enfim, o famoso e faustoso cemitério de esculturas incomparáveis. Que as descrições de Twain antecedem muitas outras, mais recentes, sobre tal espaço. Segundo guias especializados o único a merecer visita na cidade em causa...

terça-feira, dezembro 07, 2010

Agora - TRAILER OFFICIAL LEGENDADO

Filme: «AGORA» de ALEJANDRO AMENABAR

Acontece-me o mesmo que a Saramago: os deuses são-me entidades estranhas, que não fazem qualquer sentido perante os avanços imparáveis da ciência na explicação das coisas. Pior, elas que deveriam ter por missão  a fraternidade, a união entre os homens, muito contribuem para os desavir, para lhes atiçar ódios assassinos.
A grande virtude deste filme de Amenabar, muito desprezado pela crítica e pelos canais de divulgação de filmes na sua estreia, é a denúncia do carácter fundamentalista de todas as religiões com gente insegura a querer forçar os outros a acreditar naquilo que se forçam acriticamente a aceitar como a Verdade. Como se existisse uma só verdade, como se o conceito de relatividade não estivesse presente em tudo quanto vivenciamos desde nascidos.
A protagonista de «Ágora» é a filósofa Hipasia, que vivia na Alexandria do século IV a.C. Astrónoma obcecada pela aparente falta de convergência entre o conceito de perfeição representada pelo círculo e o movimento dos astros testemunhado pelos seus olhos atentos, Hipasia vive para a Filosofia, indiferente aos amores, que suscita quer no seu discípulo Orestes, quer no seu escravo Davus.
Os tempos são de decadência do império e de progressiva afirmação política dos cristãos, que não recuam perante as maiores insídias para se imporem enquanto «verdadeira religião».
Quando os crentes das antigas religiões do Império querem reagir já é demasiado tarde e abrem caminho ao domínio dos rivais por toda a cidade, a começar pela célebre biblioteca, sujeita à sua vandalização.
Autênticos talibãs da época, os cristãos irão ilegalizar sucessivamente esses cultos e expulsar os judeus, eles mesmos demonizados pelo suposto papel na morte de Cristo.
Hipasia acaba por ser um pequeno obstáculo nessa progressão para a tomada do poder, tanto mais que serve à perfeição para contestar Orestes, entretanto nomeado prefeito do Império e recorrendo amiúde aos conselhos da antiga mestra.
Capturada pelas milícias cristãs, Hipatia está condenada ao martírio de que a livra Davus ao asfixiá-la antes de ser apedrejada pelos tenebrosos assassinos.
Ao morrer fica aberto caminho para a tomada do poder por Cirilo, o fanático líder capaz de movimentar as multidões ignorantes ao sabor dos seus interesses e - não é por acaso - hoje idolatrado pelo Vaticano como um dos seus «sábios doutores».
Tratando-se de uma superprodução espanhola, «Ágora» acaba por ser um projecto politicamente relevante ou não seja o país vizinho ainda demasiado condicionado por uma Igreja influente, que depois de ter tomado parte activa nos crimes da Guerra Civil, mantém o mesmo discurso repulsivo a respeito de todos quantos contrariam os seus preconceitos e as suas idiossincrasias.
Continua evidente a certeza de existir por trás de cada cristão um potencial inquisidor!

domingo, dezembro 05, 2010

Teatro O Bando: «Rua de Dentro»

- Tadinhas das senhoras!
O meu comentário justificava-se quando, na antevéspera, questionei por telefone se o espectáculo se realizaria apesar da previsão de chuva copiosa. E me confirmaram que, apesar das três actrizes se exporem à inclemência da meteorologia, o espectáculo iria por diante.
Chegado ao dia  víamo-lo a cumprir as suas promessas: ainda os espectadores aguardavam junto às salamandras da grande sala de recepção do grupo e já a ventania fazia embater a porta de entrada com toda a força.
Arriscar-se-iam Ana Brandão, Crista Alfaiate e Paula Só a essa verdadeira prova de resistência de produzir arte, mesmo nas condições mais adversas?
Mesmo que atrasados por um quarto de hora, lá nos dirigimos para a sala, acautelados com um chapéu de chuva e com uma botija de água quente para os que se sentissem mais friorentos. Para nos depararmos com uma ideia cénica espantosa: uma das paredes da sala - aquela para onde se direccionavam todas as cadeiras do anfiteatro - abria-se para a rua e víamos ali a encosta do Vale dos Barris com as suas árvores batidas pelo vento, sob um céu de cinzento carregado.
Surge então uma noiva acabada de fugir do seu casamento. O vestido está sujo, porque ela vai tropeçando nas muitas voltas do tule, mas mais enredada surge ela na sua confusa mente em que não consegue compreender se era mesmo isso que pretendia.
Como interlocutoras tem outras duas mulheres encontradas ao acaso. São de duas gerações diferentes, mas ambas também a contas com relacionamentos difíceis com omissos parceiros masculinos.
A mais velha sofrera as agressões físicas e verbais de um marido que, mesmo defunto, lhe deixara o papagaio com discurso ensaiado para insultá-la. Até ao dia em que o matara e o empalhara, mas sem o conseguir calar, porque, na sua própria cabeça, continuava-lhe a ouvir os insultos soezes.
A outra é uma mulher de meia idade, que se afastara progressivamente dos homens desde que deles testemunhara os seus conceitos de passeios românticos: irem, por exemplo, participar numa matança do porco.
De cumplicidades se vai consolidando esse encontro de três mulheres à procura de identidade, de saída para os impasses em que as respectivas vidas as tinham acossado.
É mais do que uma peça feminista, porque estão ali espelhadas as opressões, que impedem a plena demonstração do nosso potencial enquanto seres dotados de conhecimentos e de experiências. Porque todos procuramos saídas, já não tanto para essas promessas de felicidade incumpridas, mas, pelo menos, para sentirmos que somos nós a tomar as rédeas dos nossos rumos sem que haja quem no-los queira dirigir.
Acabada a peça com os aplausos vibrantes do público, é fácil compreender que «Rua de Dentro» muito deve à interpretação das actrizes, à concepção cénica de Sara Castro e de Ana Vicente, mas também às próprias condições climatéricas, desta feita parte integrante de três histórias em que a tempestade íntima está sempre presente.

sexta-feira, dezembro 03, 2010

Whatever Works - Official Trailer!

Filme: «TUDO PODE DAR CERTO» de Woody Allen

As críticas ao filme até nem foram tão más quanto isso, mas confesso que este filme de Woody Allen é um dos mais fracos da sua filmografia. E, no entanto, quando se perspectivou uma convergência entre o realizador de «Os Dias da Rádio» e o criador de «Seinfeld» as expectativas não podiam ser mais elevadas. Daí que a frustração tenha surgido comparativamente grande para com um filme durante o qual ainda se consegue rir com desenvoltura.
É claro que Woody Allen sempre falou de si através dos seus filmes. E, agora, as obsessões viram-se para a velhice, para a impotência, para o medo de ser abandonado. Por isso mesmo é fácil transpor a história de Boris Yelnikoff e de Melody para a vida real do seu actor e concluir pela catarse dos seus receios. Mas nunca uma loura foi tão «loura» no cinema de Allen, fazendo Evan Rachel Wood o papel de lerdinha, que em tudo acredita. Até no amor assolapado por um homem com idade para ser seu avô. Ou quão exagerada resulta essa conversão de dois seres eivados dos preconceitos inabaláveis dos estados sulistas em nova-iorquinos todos virados para a frentex, quer se trate de ménages à trois ou a amores homossexuais.
Nesse sentido há quem assinale o efeito de final feliz com que o filme se conclui. Nesse sentido respira-se um optimismo jubilatório, que vai a contracorrente do que os tempos de hoje suscitam. E esse é porventura o aspecto mais frágil do filme de Allen: as perspectivas de futuro são tão cinzentas, que qualquer história em tons cor-de-rosa logo desmerece a respeito da sua credibilidade.
Ora é esse hoje um dos grandes problemas do nosso tempo!

quinta-feira, dezembro 02, 2010

Livro: «OS NÁUFRAGOS DA ILHA TROMELIN» (3) de Irène Frain

A primeira noite dos náufragos do «L’Utile» é de dura provação.
Recomposta a hierarquia de poder entre os Brancos com Castellan a assumir o comando e marginalizados os Negros para uma ponta do pequeno ilhéu, todos eles sofrerão com o frio, com os uivos do vento, com os rugidos do mar revolto e com a aparência de espectros que os rodeiam. E os meios de sobrevivência já estão desigualmente distribuídos: os oficiais acomodam-se numa tenda aquecida com um braseiro e aonde se acumulam os víveres resgatados do navio, enquanto os marinheiros e os escravos estão sujeitos às inclemências dos elementos, apenas encontrando algum abrigo nas covas abertas no chão pelas tartarugas para os seus ovos...

Livro: «A VIAGEM DOS INOCENTES» (2) de Mark Twain

Continuamos a acompanhar Mark Twain por Paris, levando-nos ele a sítios ainda por visitar. O Cemitério do Père Lachaise, por exemplo, que lhe dá o ensejo de desmontar por completo o mito amorosos de Heloísa e de Abelardo, apresentando-se este como o cobardolas de comportamento execrável. Ou os Trianon de Versalhes onde Luís XIV e a sua Mme Maintenon nem se davam ao trabalho de se vestirem para tomarem o pequeno-almoço.
Ambígua é a apreciação de Twain a respeito de Napoleão III, que governava então a França, e que ele via desfilar pelas ruas parisienses, acompanhado do sultão turco. Não lhe desculpa a armadilha a que sujeitara o seu primo Maximiliano, que acabaria fuzilado por essa altura num México aonde nunca se conseguiria impor como imperador, mas admira-lhe a forma como previne revoluções ao demolir bairros labirínticos, ideais para conspirações, e substituindo-os por avenidas largas, recortadas a compasso, para permitir futuras investidas da Artilharia contra potenciais contestatários…
Não se esperaria de Twain um comportamento progressista, mas também não havia necessidade em se congratular com eventuais repressões de quem trata depreciativamente por populaça.

segunda-feira, novembro 29, 2010

Livro: «A VIAGEM DOS INOCENTES» (1) de Mark Twain

Em 1867, Mark Twain é um dos passageiros de um paquete norte-americano fretado para uma viagem de lazer pelo Atlântico e pelo Mediterrâneo. O jovem escritor, ainda está a criar reputação como jornalista, mas já possui o fino humor, que tanto caracteriza a sua obra e demonstra-o em episódios relacionados com as suas vivências. Dos Açores ele diz o pior possível: os portugueses são definidos como sujos, ignorantes e dados à mendicidade.
Em Tânger sobressai o carácter trapaceiro dos seus vendedores, como fica demonstrado no episódio em que Twain é levado a comprar umas luvas de pelica. E, agora que o lento ritmo de leitura me faz acompanhá-lo por terras de França, também essa ironia mordaz está sempre presente: apesar da limpeza e do ordenamento da paisagem, Twain não escapa a situações desagradáveis: um corte de cabelo muito diferente do que idealmente perspectivara, uma mesa de bilhar irregular, um quarto de hotel sem iluminação a gás e, sobretudo, um guia glutão mais decidido a levar os seus clientes a lojas aonde possam ser depenados do que  aos sítios, que verdadeiramente lhes interessam (o Louvre ou a Exposição Universal de Paris, por exemplo).
De facto estamos perante uma viagem dos inocentes em que o que se colhe está muito aquém do que se preveria colher.

Livro: «OS NÁUFRAGOS DA ILHA TROMELIN» (2) de Irène Frain


Má fortuna a dos náufragos da ilha de Tromelin: quando o «L’Utile» se despedaça nos seus temíveis recifes, uma boa parte dos tripulantes e dos escravos morre afogada.  Mas o pior ainda estava para vir para os sobreviventes enclausurados numa pequena língua de areia sem arbustos cujas sombras os protejam do sol inclemente, sem água potável e com a reduzida ração de tartarugas, de caranguejos ou de aves marinhas.
Na origem dessa desventura esteve a avidez de um capitão, convencido de saber melhor que ninguém a rota mais rápida para entregar a carga de escravos, que o poderia enriquecer. E que paga a desilusão das suas esperanças frustradas com um irreversível mergulho na loucura.

domingo, novembro 28, 2010

Filme: «JOSÉ E PILAR» de MIGUEL Gonçalves Mendes

Os anos  passarão e a importância de José Saramago tenderá a consolidar-se junto de novos leitores. Porque as suas histórias são universais e as palavras reflectem valores éticos a contracorrente desta sociedade humana obrigada a mudar sob pena de se despenhar de elevado abismo. Mais do que um maravilhoso escritor, com romances de valor superlativo (do «Memorial do Convento» à «Viagem do Elefante»), Saramago foi um filósofo que convida a tudo equacionar.
O filme de Miguel Gonçalves Mendes será documento imprescindível para conhecer a sua personalidade generosa, acompanhando-o durante  os seus últimos anos de vida, sempre acompanhado pela inseparável Pilar sobre quem ele tece merecida homenagem ao dizer-lhe que teria morrido muito mais velho se a não houvera conhecido.
As imagens das suas deambulações entre Lanzarote e as grandes metrópoles europeias e sul-americanas, sem esquecer a sua Azinhaga natal, dão conta da sua intensíssima agenda para receber prémios e  homenagens, participar em conferências e assistir a espectáculos para manifestar a sua solidariedade com as causas justas.
Saramago é, de facto, um cidadão participativo nos grandes debates do seu tempo por muito que o seu cepticismo o levasse a manifestar um inabalável pessimismo com o curso das coisas. Embora explicitasse, amiúde, a ansiedade por notícias esperançosas, sinalizadoras de grandes mudanças civilizacionais.
Felizmente que essa ambivalência era também a da sua vida, porquanto escritor tardio, conheceu as maiores dificuldades para garantir a sobrevivência até usufruir de um patamar de fruição afectiva e de qualidade de vida como a testemunhada no filme. Mas era quando lhe faltava a maior e mais inalcançável forma de riqueza: o Tempo.