terça-feira, abril 28, 2020

(DL) À procura de tempos idos


1. Embora tivesse publicado dois romances anteriormente, Juan Gabriel Vasquez considera Os Informadores como o primeiro em que descobriu que tipo de escritor queria ser. Os outros, arruma-os na categoria de exercícios literários, que muito o terão ajudado a libertar-se de trilhos por onde não pretenderia continuar.
De início temos um escritor chamado Gabriel Santoro a estrear um romance que, para grande espanto seu, merece do pai pública condenação. Porquê?, não o descobre porque logo dele se vê órfão. Razão mais do que justificada para empreender uma investigação sobre o que o terá motivado a tão singular reação. Vai assim ao encontro dos fantasmas do passado, quando a Colômbia pós-Segunda Guerra conseguia ser o local de coabitação de judeus fugidos do nazismo e de alemães escapados da derrota aliada.  Dá assim com um tempo de delações, de mentiras e palavras assassinas.  Os informadores de que fala o título são mais do que muitos, porque têm o apoio, senão mesmo a ativa instigação, do Estado.
Para seu contínuo espanto Santoro vai descobrir verdades, que acabam por logo se verem desmentidas pelo que logo a seguir apura.
Da Colômbia de Garcia Marquez continuam a chegar-nos escritores extremamente interessantes...
2. Entre a escrita da primeira versão de Rimbaud, o Viajante e o seu Inferno e a reescrita do romance demorou Ana Cristina Silva sete anos, não por culpa própria, mas pelo desinteresse das editoras em publicá-lo, pelo menos na altura em que ela primeiro lho propôs.
Escritora pródiga - já se lhe conhecem catorze títulos! - a autora mantém o propósito de partir à procura da interioridade das personagens, questionando-lhes as mágoas, as angústias e os prazeres. Razão para, neste caso, convocar todos quantos importaram ao viajante errante, que andou a negociar armas pelo corno de África.
O destaque vai naturalmente para Verlaine, que com o jovem Arthur teve ligação lendária, e  Mme Rimbaud, que sempre desqualificou as pretensões poéticas do filho nele suscitando a vontade de fuga permanente. E se em miúdo ela não o podia levar muito longe, em adulto bastou para lhe pôr um mar e um deserto pelo meio. Mesmo que, paradoxalmente, procurasse em vão uma fortuna capaz de lhe demonstrar a injustiça dos agravos.
Comentando-lhe o destino Ana Cristina Silva conclui: “todos os lugares da sua vida eram terríveis porque em todos continuava a fugir da mãe”.

(A) A Sonata ao Luar de Beethoven

(DIM) Os efeitos das agruras infantis


1. Nunca dei grande atenção a Sydney, o meio-irmão de Charlie Chaplin, que tanta importância teve ao apoiá-lo quando estava num orfanato e em fases diversas do percurso cinematográfico embora com destaque especial para o período do contrato com a Mutual. Um documentário de origem francesa revelou o talento por ele demonstrado, quando compartilhou o ecrã com o famoso irmão ou por conta própria. Ou ainda sobre a incapacidade para sentir-se feliz apesar de o vermos, invariavelmente, a rir ou a inventar facécias nos filmes familiares de que se serviram os realizadores do documentário. Para os Chaplin as dificuldades vividas na infância foram suficientemente traumáticas para que delas jamais se libertassem.
Há também o lado sensacionalista dos escândalos em que se viu envolvido, muito embora eles revelassem outro traço não abonatório da sua personalidade: o de se pôr a milhas dos problemas, quando eles prometiam confrontá-lo com dificuldades para cuja resolução não se sentia talhado.
No fundo a melhor descrição dele feita é a de quem lhe elogia o talento de cómico competente sem lhe vislumbrar as qualidades artísticas do irmão, que a isso somou a criatividade para exercitar os seus polivalentes dons.
 2. Se podemos sentir comiseração pelas terríveis agruras vividas pelos manos Chaplin na viragem do século XIX para o XX, ainda mais esse sentimento cresce pelos pobres miúdos da ilha de Sumbawa na Indonésia, que começam a montar cavalos tão só aprendam a dar os primeiros passos, para que os pais os possam utilizar como jóqueis nas corridas de cavalos aí muito apreciadas.
Com cinco ou seis anos chegam a fazer de dez a vinte corridas por dia para possibilitarem as apostas de quem se desloca aos hipódromos com o objetivo de alimentar o vício sem se importar com as fraturas ou mesmo mortes dos miúdos, que constituem o sustentáculo económico das famílias. Por pouco tempo, porque trazendo a idade maior peso tornam-se imprestáveis para aquela prática, vendo-se devolvidos a padrões de miséria maiores do que aquela em que, mesmo assim, vivem.

domingo, abril 26, 2020

(DIM) O terceiro filme de Orson Welles


Os cinéfilos mais ou menos bem informados não têm dúvidas em indicar os dois primeiros filmes realizados por Orson Welles: O Mundo a seus pés (1941) e O Quarto Mandamento (1942). Mas dificilmente há quem saiba o título do seu terceiro filme, que é este The Stranger, estreado em 1946 e que julgou servir para desmentir aos produtores de Hollywood a má fama ganha com os outros dois: que levava muito mais tempo do que o previsto para os conduzir de fio a pavio e que o orçamento ficava, por isso mesmo, muito superado.
No final da guerra, quando John Huston ficou impossibilitado de realizar este filme, Welles conseguiu convencer Sam Spiegel em como o concretizaria dentro das regras por ele prescritas com o prémio suplementar de, acaso tal sucedesse, incumbir-se de cinco filmes da sua exclusiva lavra sem quais quer constrangimentos da produção. O resultado foi concludente: rodado e editado no prazo e orçamento previstos e conseguindo razoável sucesso de bilheteira. E, no entanto, a promessa de lhe abrirem os cordões à bolsa para filmar o que quisesse nunca se cumpriria. Pior ainda: Spiegel incumbiu um montador da sua confiança de garantir um trabalho de acordo com o gosto convencional sem dar a Welles a oportunidade de ter qualquer interferência no final cut. Daí que ele renegasse o filme como seu embora se lhe nota a assinatura em cada plano, quer quando alterna plongés e contraplongés, quer quando opta por perspetivas de grande profundidade.
A escolha de Edward G. Robinson também lhe fora imposta, porque Welles teria preferido que a personagem de Wilson fosse interpretada por Agnes Moorehead, que os mais seniores e sábios recordarão como a mãe não só do Cidadão Kane, mas também da feiticeira Samantha na série que passou anos a fio nos primórdios da RTP. Como passava então uma série estrelada por Loretta Young, que faz neste filme o papel da noiva, e depois, esposa, de um criminoso nazi, que Wilson procura desmascarar.
Temos assim uma pequena e tranquila vila do Connecticut onde Charles Rankin é um popular professor secundário e iminente genro de um juiz do Supremo Tribunal dos Estados Unidos.  Mas a sua verdadeira identidade é Franz Kindler, um dos mais jovens criadores do Holocausto e escapado da Alemanha antes da derrota final., com o prévio cuidado de ter apagado todas as pistas que pudessem identifica-lo. Apenas se sabe da sua obsessão pelos relógios e de ter tido por lugar-tenente um criminoso chamado Meinike que, em vez de enforcado, como os que se viram julgados em Nuremberga, foi libertado para conduzir os perseguidores até ao seu alvo.
A intriga é consistente e Welles, que faz o papel de vilão, passa rapidamente de uma expressão afável com quem o cumprimenta nas ruas de Harper para a do torcionário capaz de tudo fazer a fim de não se ver desmascarado.
Procurando convencer a ingénua srª Rankin da verdadeira identidade do marido, Wilson emprega, igualmente, todos os trunfos e eles incluem confrontá-la com as imagens reais dos milhares de corpos amontoados nos campos de extermínio nazis. E essas cenas ficaram para a História do Cinema como as primeiras a serem incluídas num filme de Hollywood, que doravante não enjeitaria utilizá-las frequentemente.
E arriscando o spoiler, acrescente-se que o filme conclui-se no relógio do campanário da igreja de Harper...

sábado, abril 25, 2020

(DIM)À procura do Equador


No século XVIII  cresceu o interesse científico de alguns dos burgueses e aristocratas mais esclarecidos na França das Luzes. A Enciclopédia de Diderot e D’Alembert viria a ser de leitura obrigatória para quem pretendia destacar-se nos salões galantes, tornando-se particularmente bem vistos os sedutores capazes de espantarem as suas conquistas com a aparente consistência do seu saber. Tudo se conjugava para que o mérito maior fosse dos que se aproximassem do modelo do homo universalis.
Uma das polémicas da época tinha a ver com a forma da Terra, que já quase ninguém apostava ser plana ao contrário duns estarolas atuais, que teimam em defender o que, há séculos, se tornou absurdo. Os debates das cortes setecentistas incendiaram-se entre os que sugeriam o achatamento do planeta nos polos e os que propunham a hipótese dele ali se alongar. Tratou-se de uma ótima razão para a Real Academia investir recursos substanciais numa expedição comandada por Louis  Godin, Pierre Bouguer e Charles-Marie de la Condamine. Durante oito anos os mais persistentes dos aventureiros fizeram incessantes medições no território hoje identificado como Equador, sem temerem a atividade dos seus inúmeros vulcões. Deve-se-lhes, nomeadamente, um extraordinário trabalho de cartografia da região. No regresso a Paris os cálculos não deixavam margem para dúvidas: efetivamente redondo, o planeta via-se caracterizado pelo seu achatamento nos polos.
Essa viagem, por ser a mais antiga de quantas Hannah Leonie Prinzler abordou no seu documentário À Procura do Equador (2019), é o seu ponto de partida para percorrer os 40 mil quilómetros da linha imaginária a partir da qual se definem todas as latitudes. Humboldt, que andou a percorrer a América do Sul nos primeiros anos do século XIX, trouxe prova de centenas de espécies animais e vegetais, que os europeus desconheciam, ganhando fama de, depois de Colombo, ter sido ele o segundo descobridor do continente. Nos seus entusiasmantes relatos demonstrava serem as regiões equatoriais aquelas em que, graças à estabilidade do clima e à prodigalidade da Natureza, maior diversidade animal e botânica se afirmava.
Darwin seguiu-lhe as pisadas, quando embarcou no «Beagle» e prosseguiu o labor de catalogar mais um sem fim de espécies, embora o cume da sua viagem tenha acontecido nas Galápagos, quando identificou pequenas alterações morfológicas numa pequena ave segundo as ilhas em que estava há muito implantada. Nessa capacidade de adaptação das espécies segundo as circunstâncias em que se alimentava, via confirmada a tese desenvolvida ao longo dessa mítica viagem: a da Origem das Espécies..
Dessas ilhas a mil quilómetros da costa do Pacífico o filme parte para outras no mesmo oceano - as Kiribati - em sérios riscos de desaparecerem em função da subida de nível das águas que as banham. O inglório labor de uma esforçada habitante para construir um muro capaz de suster as marés oceânicas  faz-nos recordar o da mãe de Marguerite Duras quando tentou de igual modo proteger a propriedade da Cochinchina onde julgara possível fazer riqueza. O mesmo risco de desaparecimento sob as águas do Indico se identifica nas Maldivas, onde as alterações climáticas estão a matar os seus corais. Aqui lembro obrigatoriamente os trinta e muitos dias ali passados em meados da década de 90, quando o navio em que então navegava (o «Fernando Pessoa») ficou apresado pelas autoridades, que reclamavam indemnização por outro navio da mesma pool - da francesa Delmas - ter encalhado e destruído uns quantos corais semanas antes.
No interior africano passa-se pelas reservas do Quénia e as dificuldades de coexistência entre os protegidos elefantes e as populações, que vivem à beira dos parques e veem as plantações devastadas pelas mastodônticas criaturas. A solução surpreendente é o desenvolvimento da apicultura nessas aldeias, porque a pele dos elefantes tem escassa proteção contra as ferroadas dos insetos, razão porque basta ouvi-los para que a mais gigantesca matriarca arraste toda a esfomeada prole para dentro dos limites da reserva.
Sempre vendo desfilar imagens com a beleza só propiciada pela Natureza, passa-se pelas expedições de Stanley, incluindo a que, ao serviço do rei dos belgas, assegurou a Leopoldo II a ansiada província africana, onde se perpetrariam as mais odiosas práticas do colonialismo europeu.
Em São Tomé assiste-se à forma como o chocolate se tornou numa das suas mais bem sucedidas exportações, ainda que tendo italianos a explorá-lo. E no Brasil assiste-se a uma experiência científica com uma torre meteorológica de mais de trezentos metros de altura a esclarecer todo o processo de formação das nuvens e o ciclo ascendente do vapor de água e subsequente precipitação.
A viagem de circum-navegação deste documentário, que acompanha o próprio movimento do sol, proporciona hora e meia de reiterado fascínio por este planeta tão ameaçado pela insensatez e voracidade capitalista.