quarta-feira, abril 26, 2023

Os Diários de Myanmar

 

Premiado na Berlinale do ano transato, o documentário Myanmar Diaries é um testemunho impressionante sobre os crimes perpetrados por uma ditadura militar isolada do seu povo e, por isso mesmo, capaz dos piores crimes para manter o poder e os privilégios distribuídos pelos generais, que a encabeçam.

Não é difícil adivinhar a vida infernal vivida nesse clima de permanente asfixia, mas o filme realizado pelo coletivo de jovens realizadores, anonimizados na assumida responsabilidade coletiva, dá voz, corpo e, às vezes, rosto a quem contra ele se insurge. Como se náufragos a pedirem uma ajuda, que ninguém parece disposto a prestar-lhes! 

segunda-feira, abril 24, 2023

Uma tarde em Potsdam

 

Datado de 1930, o quadro de Lotte Laserstein, que ilustra uma o convívio entre vários amigos em Potsdam - e é considerado uma das suas obras mais representativas - reitera a ideia da arte pressentir o que possa configurar-se como futuro. A Grande Depressão acabara de mergulhar os dois lados do Atlântico norte em profunda crise económica, logo aproveitada pelo nazismo para apossar-se brutalmente do poder.

Para a jovem pintora, que sempre virara costas às vanguardas privilegiando os rostos femininos como tema e os seus olhares como mais impressivos detalhes, a nostalgia das expressões e a pose cabisbaixa dos retratados indicia as certezas perante um futuro de que se divisam as nuvens baixas, prenunciadoras de tempestades.

Não admira que o regime de Hitler tenha posto no índex as suas obras. Lotte que, quase in extremis, dele fugiria, não só tinha contra si o nome e rosto indisfarçavelmente judaico, como pintava um ideal feminino feito de orgulho pela sua condição e independência.

Não deixa de ser paradoxal que, longe da terra natal - aonde se escusaria de regressar! - Lotte Laserstein tenha perdido a inspiração e nunca mais igualasse o fulgor dos seus anos berlinenses... 

domingo, abril 23, 2023

Tarde de domingo em Nessebar

 

O que surpreende em documentários do tipo L’Héritage Rouge - Les Artistes et le Passé Socialiste (2019), que a alemã Susanna Schürmann realizou sobre a Bulgária do passado em contraponto com a do presente, é a falta de contraditório entre a vontade de uma parte da população aqui ouvida como disposta a transformá-la numa réplica do capitalismo ocidental e a outra parte, a que é nostálgica de um tempo em que havia trabalho e tudo parecia tão sedutoramente tranquilo. Como é comum neste tipo de produções politicamente orientadas para a consagração das tais liberdades ocidentais (que só aproveitam a uma minoria muito privilegiada e, mesmo exploradora, do resto da população) enfatizam-se os argumentos de uns e silenciam-se os dos outros.

Seria, porventura, interessante descortinar quem, na sombra, financia as atividades dos grupos de grafiteiros, que vandalizam os antigos monumentos do passado e ainda bastante apreciados pelos mais velhos. Ou a atividade da jornalista e realizadora Diana Ivanova, que se diz interessada no diálogo entre as duas franjas da população, mas em todos os seus trabalhos adota um claro enviesamento em prol dos que verdadeiramente defende.

Eu olho para trás e recordo uma tarde de domingo em que, acompanhado de outro colega de trabalho, passeava pelas ruas de Nessebar, nas margens do Mar Negro e, atraídos por vigorosa troada de instrumentos de sopro fomos espreitar donde provinha.

Os organizadores da festa de casamento, que ali decorria num quintal viram-nos a espreitar e logo quiseram saber donde vínhamos. E, para nossa surpresa - e encantamento! - logo nos vimos convidados para a festa, apesar de quase não haver quem ali compreendesse patavina do inglês com que procurávamos comunicar. Mais ainda, não tardámos a vermo-nos na pele dos personagens de O Caçador  de Michael Cimino, dançando em larga roda em torno dos noivos assim obsequiados com os votos de felicidades.

Na Bulgária desse passado dito socialista encontrámos indubitavelmente búlgaros felizes. Que certamente olharão para esse passado com a mesma nostalgia com que resgato da memória essa tarde de domingo em Nessebar. 

terça-feira, abril 18, 2023

Cantando à chuva

 

É mais um daqueles filmes sobre que perdi a conta às vezes que o vi, e ignoro quantas ainda o revisitarei com o mesmo prazer: Serenata à Chuva foi realizado por Gene Kelly e Stanley Donen em 1952 e logo me faz evocar Donald O’Connor a exigir que “façamo-los rir”, Gene Kelly a dançar à chuva ou Cyd Charisse numa dança tão sensual quanto onírica.

Três anos antes já Kelly e Donen tinham estabelecido o padrão de ter os números musicais plenamente integrados na narrativa da história em vez desta apenas garantir-lhes o pretexto. E foi um belo achado o de pensarem na ideia de um filme dentro do filme, que justificasse as dificuldades de transição de alguns atores e atrizes do cinema mudo para a novidade representada pelo sonoro. Talvez, por isso, não tenha sido por acaso que o principal papel feminino fosse dado a Debbie Reynolds que, já muito depois dessa revolução, começara por sobressair na dobragem de canções para filmes, sendo convidada a transitar para diante das câmaras e conquistar o destaque sugerido pelos argumentistas do filme.

É, porém, um filme sobre a nostalgia de um tempo definitivamente deixado para trás, quando os musicais da MGM apelavam para o sonho e faziam esquecer da Grande Depressão. Na década de 50, quando as guerras iam-se sucedendo - a vencida contra o nazismo, logo seguindo-se a declarada contra o comunismo de que o conflito na Península da Coreia era um dos diversos sucedâneos - esse sentimento de saudade pelos tempos idos acaba por comportar alguma tristeza.

Pelo sonho deixava-se de ir!

domingo, abril 16, 2023

Apesar do título, nem Diabo, nem rosto do Mal

 

Os crimes de hoje contra os palestinianos não têm conseguido mitigar-me o interesse pelo Holocausto. Como se fosse ténue a ligação dos judeus do presente com os que foram trucidados pela máquina de extermínio alemã. Como se os apaniguados de Netanyahu pertencessem a um povo diferente. Aliás o mesmo que se justifica relativamente aos alemães: apesar da sua importante extrema-direita não será lícito associar os de hoje com os antepassados, que integraram a criminosa estratégia “purificadora”.

A Confissão do Mal: as gravações perdidas de Eichmann de Yariv Mozer (2023) confronta os testemunhos do réu do julgamento de 1956 - que iludiram Hannah Arendt a respeito de uma suposta banalidade do Mal - com a sua voz nas gravações colhidas por um nazi holandês, Willem Sassen, quando se julgava a salvo no seu abrigo argentino, e só recentemente devolvidas ao conhecimento público. Nelas é inequívoca a evidência de Eichmann ter estado totalmente consciente do objetivo e resultado da grande operação de transporte para Auschwitz de que foi o grande organizador e executor.

Assim como é ineludível a grande preocupação da Administração norte-americana e do governo da Alemanha Occidental de então com o potencial do revelado a partir de Jerusalém quanto ao que os poderia comprometer numa época em que a Guerra Fria impunha outras prioridades. É que o governo de Konrad Adenauer estava pejado de antigos nazis a começar por Hans Globke, que era o braço direito do chanceler e tivera papel fundamental na redação das Leis de Nuremberga.

quinta-feira, abril 13, 2023

O que ficámos sem saber sobre Margot Dias

 

Catarina Alves Costa  assinou o documentário sobre a antropóloga Margot Dias, que trocou a Alemanha nazi pelo Portugal para onde o marido, Jorge Dias, regressara após o periclitante doutoramento ali conseguido, porque condicionado pelos crescentes bombardeamentos aliados.

Curiosamente a realizadora não questiona a protagonista do filme sobre a dissociação, que soube fazer da ideologia em que crescera para, depois, estudar tão empenhadamente a cultura maconde do norte de Moçambique. Porque o seu propósito científico consegue libertar-se da tentação racista, que a educação ariana pudera impor-lhe.

Teria sido interessante olhar para esse fascínio pelos povos africanos colocando-o em paralelo com o de Leni Riefenstahl, também ela envolvida em projeto singular junto dos Nuba do Sudão depois da luso-alemã ter sido pioneira nesse esforço, ainda que diferenciando-as a preocupação científica desta última em detrimento dos especificamente estéticos da autora de O Triunfo da Vontade.

Reverente à biografada, e tendo para incluir no documentário muitas imagens colhidas em Moçambique nos finais dos anos 50, Catarina Alves da Costa não problematizou uma personalidade que se adivinharia ter outra complexidade que não só a apresentada no filme. 

O vislumbre da panaceia para o tédio e a solidão

 

A oportunidade de ver a forma como Tónan Quito verteu para a realidade portuguesa - e a do CCB em particular! - o Ensaio de Orquestra de Federico Fellini permitiu-me voltar à delicada questão da ideologia do realizador italiano, que se confessara episódico votante da Democracia Cristã e manifestara em diversos filmes uma ambígua sedução pela estética mussoliniana. E, no entanto, a obra em causa é a da aparente dissociação da incontornável ideia de uma liderança pessoalizada num chefe em favor de um coletivo capaz de se auto-organizar e afirmar a sua superior eficiência. Como se se tivesse nele operado a mudança vislumbrada ao fim de uma hora do seu aqui recentemente lembrado La Dolce Vita: se antes nele prevalecera a euforia histérica Marcello entende a tragédia quanto ao que no ilusório se deixara mergulhar.

Não é a Ekberg a banhar-se na Fonte de Trevi a cena mais ilustrativa dessa viragem brusca na narrativa, mas a da visita do pai do protagonista a Roma. Porque denuncia a superficialidade mórbida de uma sociedade de consumo enleada na fútil “alegria em viver”. Porque falta sentido a essa vertigem, que só suscita o tédio e solidão prenunciadora da morte.

E daí que os fotogramas mais belos do filme coincidam com esse final em que, numa praia, Marcello olha ternamente para a rapariga, incapaz de compreender o que, na sua inocência, lhe diz do outro lado de intransponível rio, que conduz ao mar ali mesmo ao lado...

segunda-feira, abril 10, 2023

A Veneza de Matvejevitch

 

Às vezes basta um parágrafo para definir um livro, que se acabou de ler. Sucede isso mesmo com o escolhido de A Outra Veneza, o pequeno testemunho de Predrag Matvejevitch sobre a cidade dos doges, que conheceu profundamente em repetidas visitas:

“Retomando os seus remos com forquetas trabalhadas, Zane levou-me por fim, por atalhos, até aos lugares onde vêm morrer as gaivotas. Exaustas, abatidas, maculadas de lama e de imundícies, agitam as asas agora impotentes para as propulsar nos ares. Atropelam-se, caem, tentam de novo levantar voo, tornam a cair. A sua plumagem está corroída, as suas esguias patas ressequidas, o pescoço desplumado. Soltam gritos roucos, pios estridentes. Há duas barene nesta parte  da Laguna onde elas pousam para não tornar a partir. Ora escolhem uma, ora escolhem outra. Fazem por vezes um último esforço para ir de uma para outra. Sabe-se lá porquê.”

A Veneza de Matvejevitch nada tem a ver com os magotes de turistas, que a invadem diariamente e lhe conspurcam a antiga identidade. Conferindo-lhe uma outra, que não é senão uma sua caricatura. Pessoalmente prefiro esta, a mais genuína...

sábado, abril 08, 2023

A Atlântida veneziana de Ancarani

 

A circunstância dita o tipo de juízo, que façamos sobre o que quer que seja. Essa verdade lapalissiana ajusta-se plenamente a Atlantide, o filme realizado por Yuri Ancarani sobre a paisagem veneziana liberta do contacto com a quotidiana invasão alieniana representada pelos seus milhões de visitantes.

Visto na sala de cinema o filme é um objeto singular em que estranhamos a parca narrativa: seguimos o quotidiano de Daniele, que pouco se interessa pela namorada, e ainda menos pelos supostos amigos, porque o foco maior vai para a obsessão de dotar o seu barchino de um motor e de uma hélice capazes de o ajudarem a superar o record de velocidade registado para esse tipo de embarcações. Um objetivo, que o levará à autodestruição.

Visto, porém, num museu ou numa galeria de arte na condição de peça de videoarte, Atlantide torna-se mais atrativo, porque verdadeiramente apreciável na sua outra dimensão: a de um objeto estético, que dá a ver as ilhas da laguna com uma perspetiva raramente apresentada da forma como Ancarani a formula. Aí confirmamos que Veneza é muito mais do que as habituais imagens de bilhete postal por que no-la querem habitualmente apresentar.

Na primeira hipótese podemo-nos enfadar por depararmos com uma geração de jovens desinteressados do futuro contentando-se em viverem o dia-a-dia na base de fúteis ambições remuneradas pela pequena delinquência em que se vão ocupando.

Na segunda, porém, podemos ver relativizado esse apressado juízo, quando damos com a estranheza suscitada pela geométrica abstração, que mais não é afinal do que a rotação da visualização da paisagem para uma perspetiva a 90º.

sexta-feira, abril 07, 2023

Distopia sul-africana e a da imaginação carrolliana

 

Voltaram-me a passar pelos olhos umas quantas fotografias de Santu Mokofeng, fotógrafo sul-africano nascido na safra de 1956, que foi também a minha, mas tendo o Soweto como berço e o apartheid  como incontornável circunstância, daí o testemunhando com um misto de revolta e poesia.

Um dos seus projetos, que mais o interessou nos últimos anos de vida (morreu em 2020) foi o das paisagens envenenadas, seja pela ação direta da indústria do seu país - mormente a diamantífera em Kleinzee na costa ocidental -, seja pela atividade humana global. Na desolação da savana ele pressupõe a memória de quem ali viveu e se apresta a abandonar tão-só desaparecem as condições para ali sobreviver.

Na memória tenho a referência de uma viagem de carro entre Port Elizabeth e Joanesburgo em que testemunhei aquilo que ele procurou com a sua câmara: a constatação de uma realidade, que a cultura bóer transformou em distopia para grande parte da sua população.

 Em contraponto com esse mergulho num abismo real fica-me o da Alice criada pela imaginação de Charles Dodgson e objeto de uma exposição, que lamento não ter visto presencialmente, quando o brexit acabara de se concretizar e a pandemia ganhava os cabeçalhos dos jornais.

Do que é possível aferir de um documentário de Dione Orrom, rodado para ouvir as intenções da curadora do evento e percorrer as diferentes salas do Victoria & Albert Museum, fica a noção de se ter tratado de proposta bem mais interessante do que a exposição ali disponível na única vez, que lhes franqueei as portas: a que exibia o guarda-roupa da princesa Diana. 

quinta-feira, abril 06, 2023

Contraditório me confesso

 

1. Contraditório sou sobre as muitas leituras e imagens, que vou visitando no dia-a-dia. Posso apreciar algumas coisas, mas manter a antipatia sugestionada por antigos juízos nos assuntos que versam.

Natália Correia - que vai estar na berlinda até, pelo menos, à data do centenário do seu nascimento (13 de setembro) - é disso eloquente exemplo. Admirei-a antes da Revolução de Abril quando, apesar de já não ser jovem, era alma fortemente censurada. Passei-a depois a detestar durante o PREC por ter sido sua emotiva inimiga. Fiquei melhor predisposto com as suas posições, quando saiu do PSD por causa da despenalização do aborto, ou da amnistia para os presos das FP-25, e ri-me gostosamente com os versos dedicados ao Morgado.

Li-a pouco, porque não me revi nos conceitos, que enunciava com exaltado entusiasmo, e não foi a recente biografia de Filipa Martins a reequacionar esse esforço, embora, em idos tempos de bibliofilia exagerada, lhe tenha comprado a obra completa. Que jaz esquecida nas prateleiras da cave!

2. Esteticamente é assaz impressivo o Sayat Nova, que o arménio Serguei Paradjanov rodou em 1968, antes de passar alguns anos nos gulags a pretexto da sua homossexualidade.

Muito embora o meu papa de estimação - Jean Luc Godard - lhe tenha gabado as muitas qualidades, a beleza do filme tem o senão de gastar minutos sem fim na revelação dos rituais religiosos, que o trovador do século XVIII acompanhava com devoção, mas colidem com a reiterada posição de tudo aquilo considerar ópio do povo, como enunciou sábio maior na sua pródiga juventude.

E isso me faz relativizar essa beleza mística em que assenta toda aquela história.

3. Na altura da publicação do ofensivo artigo do New York Times até vi sentido na crítica endereçada a Sidney Poitier por ser negro, rico e, daí, alheado da miséria em que viveriam milhões de miseráveis, que partilhariam com ele o tom de pele.

Agora corrijo essa opinião ao conhecer-lhe na biografia os momentos em que enfileirava com Harry Belafonte em iniciativas militantes a favor dos Direitos Cívicos numa postura combativa, que contradizia a cortesia excessiva dos seus personagens no cinema.

É que, no fundo, existe razão nos que dizem ninguém em comparação escandalizar-se por Bill Gates não mostrar grande empatia por todos os contemporâneos de pele branca, que vegetam, igualmente, na mais irremediável pobreza. 

terça-feira, abril 04, 2023

A sátira e o fascínio perante a religião

 

La Dolce Vita é uma viagem pela capital italiana, que permite descobrir-lhe os mais inesperados recantos e respetiva fauna humana. Mas começa com uma das cenas inesquecíveis do filme: o de um helicóptero a sobrevoar a cidade com uma estátua de Cristo nele pendurada.  Ocasião para lembrarmos, que Fellini sempre revelou propensão para a sátira mas, ao mesmo tempo, para o fascínio pela religião. Como se estivesse subjacente uma relação de amor-ódio!

Nessa cena, e noutra a meio do filme - quando os repórteres vão à procura da notícia de uma réplica dos pastorinhos de Fátima! -, há a associação da religião à mais grotesca superstição, mesmo que suportada nas crenças histéricas de uns quantos magotes de crédulos. A inépcia dos fundamentos da crença viria a estar ilustrada em vários outros títulos fellinianos, mas este é o primeiro a abordá-la de forma mais consolidada.