segunda-feira, fevereiro 29, 2016

LEITURAS AVULSAS: O Parque Denali no Alaska

A reportagem assinada por Tom Clynes para a edição portuguesa da National Geographic de fevereiro tem por tema a Reserva nacional de Denali situada no Alaska e onde se situa o pico mais elevado de todo o território norte-americano. Já foi conhecido como Monte McKinley para homenagear o 25º ocupante da Casa Branca, mas retomou com Obama o nome por que era conhecido pelos ameríndios. Precisamente o da Reserva em causa.
Porque importa preservar a natureza nos seus 2,5 milhões de hectares de território, quase sem trilhos e por onde os animais passeiam sem serem incomodados, as visitas dos turistas estão concentradas nos meses de junho até início de setembro, quando por ali passam cerca de quinhentos mil visitantes. Muitos deles oriundos dos paquetes, que navegam até às águas da região e organizam rápidas excursões para que os seus clientes possam ver ursos pardos e lobos. Sendo quase certo que estes últimos ficarão resguardados dessa súbita invasão humana.
Mas o foco do interesse de Clynes é a redução drástica do número desses lobos na área do parque: hoje não são mais de cinquenta e continuam a ser ativamente caçados por quantos aguardam a sua saída do território protegido para os assassinarem mesmo sem levarem em conta o facto de terem ao pescoço as coleiras aplicadas pelos biólogos para os estudarem.
Que lhes importa as evidências científicas em como esses animais são fundamentais para garantirem um habitat mais saudável?
A questão divide as autoridades federais, que têm a propriedade daquela vasta extensão do território e apostam na defesa dos princípios ambientais, e as autoridades estaduais, que gostariam de o abocanhar e aproveitar em prol dos seus interesses. Até porque os seus eleitores, muitos dos quais conotados com a extrema-direita, apoiam-nas nas atitudes de desafio às orientações  Não esqueçamos que a execrável Sarah Palin foi eleita senadora por este Estado.
Um dos vigilantes do parque, já com experiência noutras zonas protegidas do território norte-americano, conclui: “Há muitas coisas neste parque que causam confusão às pessoas. (…) É uma região bravia, mas há aterragens de aviões, caça e montagem de armadilhas. A diferença é que Denali não está fechado. É isso que torna a sua gestão tão desafiante.”

domingo, fevereiro 28, 2016

ESTÓRIAS DA HISTÓRIA: A Grande Muralha da China

A Grande Muralha da China é a maior proeza de engenharia alguma vez executada: nenhuma outra obra humana careceu de tanto tempo e meios humanos e materiais para tomar a sua forma conhecida. Mas, apesar do que costuma ser considerado como factual, ela não se limitou a um sistema defensivo para responder as ameaças exteriores às fronteiras do Império Ming.
Os ataques começaram muito antes da nossa era, quando hordas de cavaleiros vinham do norte da China para ataques devastadores contra as populações, aproveitando as fragilidades de um vasto território onde várias fações se digladiavam pelo poder.
No século III a.C. o primeiro imperador, Qin Shi Huang, também conhecido pelo seu célebre exército em terracota, mandou edificar o primeiro troço da Grande Muralha. Hoje, o monumento visitado anualmente por milhões de turistas e a que os chineses chamam «Muro sem fim» já não é considerado como uma construção única: há pelo menos dezasseis muralhas construídas ao longo de dois mil anos por várias dinastias, com materiais diversos e arquiteturas díspares entre si. No total existem 44 mil elementos fortificados destinados à vigilância dos possíveis inimigos e a extensão agora consensual é de 21 mil quilómetros, ou seja, quase três vezes mais do que ainda há pouco era aceite como tal e se situava mais perto de Pequim.
Há dois mil e duzentos anos as primeiras muralhas eram mais rudimentares comportando juncos como forma de melhor consolidação do adobe aplicado em perfis triangulares. E eram antecedidas de espigões de madeira destinados a dificultar o avanço dos cavaleiros inimigos.
Já então a Muralha não se limitava ao papel defensivo: além de base logística para os ataques às regiões inimigas, servia de alfândega e de campos de treino aos próprios exércitos imperiais.
A comunicação obedecia a um sistema sofisticado, que recorria a bandeiras coloridas e a sinais de fumo para transmitir, ao longo de quatrocentos quilómetros, as mensagens sobre ataques iminentes do inimigo.
Quando Gengis Khan conquistou a China no século XIII iniciando a ocupação mongol, que perdurou um século, foi fácil concluir que a Muralha então existente já não bastava para impedir o sucesso dos invasores. A dinastia Ming, iniciada precisamente com a derrota mongol, vai considerar fundamental a construção de fortificação mais robusta, que é a sua parte mais conhecida atualmente e cuja construção remonta ao século XVI: levará mais de cem anos a construir e estende-se por oito mil quilómetros, surpreendendo os historiadores pela sua durabilidade.
Essa capacidade de resistir aos ataques inimigos e aos muitos terramotos desde então padecidos tem a ver com o facto de ser construída em tijolos ligados entre si por uma massa branca, que a lenda atribuiu à utilização dos ossos dos operários, que iam morrendo durante os trabalhos. Por isso muitos ainda acreditam, que ela mantém-se erguida graças aos esqueletos dos que nela morreram. Mas os cientistas concluíram que a dureza dessa argamassa tem a ver com o recurso a arroz comum.
O fabrico de tijolos para a Grande Muralha esteve na origem de uma prodigiosa Revolução Industrial, que modificou o rosto da China no século XVI. Mas, no século XVII uma aliança entre mongóis e manchus voltou a demonstrar a impossibilidade de resistir a invasores determinados, tanto mais que se viram reforçados pela Guerra Civil, que conduziu ao suicídio do último imperador Ming. A China doravante construída pelos invasores já estende o seu domínio a fronteiras muito além da Muralha e ela ficou quase esquecida na sua inutilidade até Mao e Nixon ali se encontrarem em 1972 para assinalar o início da mudança do relacionamento do seu relacionamento com o exterior.
Resta uma última desmistificação: apesar de se dizer o contrário os astronautas desmentiram que a Grande Muralha seja detetável a partir do espaço extraterrestre.
(texto decorrente da visualização do documentário «A História Escondida da Grande Muralha» de Ian Bremner)

DIÁRIO DE LEITURAS: «Le Mariage du Plaisir» de Tahar Ben Jelloun

O novo romance de Tahar Ben Jelloun tem por tema um costume datado dos tempos do Profeta e ainda hoje praticado pelos xiitas: quando longe de casa um viajante não infringe as regras do Islão se, em vez do recurso a uma prostituta, contrair um casamento temporário com uma “mulher honrada” a quem oferece um dote. No final da estadia o contrato caduca por mútuo acordo e o crente regressa a casa e à mulher legitima.
Nos anos 40 Marrocos ainda conhecia a escravatura encapotada, com a complacência do ocupante colonial francês. É nessa época do século transato que a história começa quando Amir, comerciante em Fez, viaja até Dakar para comprar mercadorias e aí contrai um desses “casamentos de prazer” com Nabou, uma negra por quem se apaixona loucamente. Por isso decide trazê-la consigo no regresso a Marrocos para impô-la à primeira mulher, uma branca de quem possui quatro filhos. E que vai fazê-la sofrer vexames racistas...
O que se segue é, porém, contraditório: a mulher branca desaparece de cena e a negra dá a Amir dois filhos gémeos, um branco e outro negro.
Já neste milénio, Salim, um dos netos do comerciante de Fez, decide viajar entre o Senegal, onde nascera, e a terra do avô, encontrando um país muito mais violento e intimidante do que o do passado. E onde acaba por morrer!
Estamos, pois, perante uma história de amor, que evolui para uma outra sobre os ódios raciais: o tio branco de Salim enriquecera e ganhara um invejável estatuto social, enquanto o irmão fora rejeitado, devolvido à terra da progenitora.
O romance também aborda a realidade das crianças trissómicas muito por influência de Jelloun ter um filho com tal característica. Por isso dedica-lhe o livro e cria-lhe uma espécie de seu alter ego, que, desde o início até ao final, será uma espécie de anjo que paira por toda a história..

sábado, fevereiro 27, 2016

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: «O Espírito da Morte» de Eduardo Schuldt

Ao contrario do Indie ou do DocLisboa, de que sou incondicional fã, nunca me daria ao trabalho de deslocar-me ao cinema para ver filmes de terror apesar da piada que lhes acho.
Essa atração talvez decorra de ter nascido num tempo e numa terra onde ainda se falava de lobisomens, de bruxas e de fantasmas. As doenças eram explicadas por feitiços poderosos atirados ao mar e os adultérios só podiam explicar-se pela utilização da temível «água do cu lavado».
As décadas de muito viver fizeram-me impenitente ateu sem qualquer expetativa em relação a uma qualquer forma de vida para além da morte. No entanto, sempre que o pequeno ecrã apresenta filmes com zombies ou com outras entidades maléficas, eis-me a fazer algum trabalho menos exigente ao computador e a espreitar a evolução da história pelo canto do olho.
Foi nessas circunstâncias que vi «O Espírito da Morte» do argentino Eduardo Schuldt, antes da sua estreia por estes dias no Fantasporto.
Filme de pequeno orçamento recorre ao artifício de imitar as reportagens televisivas com um conjunto de estudantes a projetarem uma obra de final de curso de cinema com as reações de espectadores a olharem para um filme de terror num ecrã sem se ver o que aí era exibido.
Descobrem, então, que todos quantos acedem a tais imagens logo morrem violentamente devido a uma maldição do tempo da Inquisição espanhola. E, porque todos eles não conseguiram resistir a conhecerem tais imagens, também irão sucessivamente acrescentar-se às vítimas anteriores.
A realização está ao nível dos tarimbeiros, os atores esforçam-se por dar credibilidade ao medo que não sentem e os efeitos especiais são rudimentares. Mas se ainda existirem aquelas sessões da meia-noite para os fanáticos do género, «O Espírito da Morte» não desmerece de muitos outros, que costumavam entusiasmar essas audiências muito especializadas...

sexta-feira, fevereiro 26, 2016

DIÁRIO DE LEITURAS: O pretexto para falar da realidade entretendo

Um dos livros que ando a ler propositadamente mais devagar, para o ir apreciando devidamente, é «As Mãos Desaparecidas» de Robert Wilson. Mais do que um mero policial, ele é o exemplo paradigmático de como se consegue equacionar a realidade em que vivemos a partir de uma proposta de entretenimento inteligente.
A partir do homicídio ocorrido num dos bairros mais elegantes de Sevilha o autor americano, que tem vivido em Portugal, coloca questões relacionadas com o franquismo, as ditaduras latino americanas, as mafias russas, os negócios imobiliários no sul de Espanha ou as reputações assassinadas pela imprensa sensacionalista.
Já tendo passado do meio do livro de mais de trezentas páginas, vou conjeturando sobre o final - mormente nas razões para as mortes violentas de um construtor civil e da sua depressiva esposa - e vou usufruindo da forma como Wilson complexifica a intriga e a vai complementando com à partes em que reflete as suas opiniões políticas. Como no trecho, que se segue, retirado da página 174, e em que uma personagens, um arquiteto americano associado a uma das vítimas, vê cinicamente a natureza do imperialismo:
O império americano não é diferente de outro qualquer. Achamos que a razão de nos termos tornado tão poderosos não foi apenas por termos dominado os meios necessários no momento certo da história para vencer  o outro único adversário, mas também porque temos razão. Quebrámos toda uma ideologia, não com uma bomba atómica, mas com a mera brutalidade dos números. Forçámos a União Soviética a jogar o nosso jogo e arruinámo-la. E é essa a grande força da ferramenta do nosso império - podemos invadir sem penetrar fisicamente. Podemos comandar tendo o aspeto de uma força do bem. O capitalismo controla uma população dando-lhe a ilusão de liberdade e escolha enquanto a obriga a aderir a um princípio rígido, ao qual só pode fazer frente pagando o custo da ruína pessoal. Não há nenhuma Gestapo nem câmaras de tortura… é perfeito.”
Muito provavelmente ainda aqui voltarei para acrescentar algo mais sobre o desenlace imaginado pelo autor.

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: «Chéri» de Stephen Frears (2009)

É a história de dois personagens ansiosos pela reforma: Léa foi cortesã e descobre, já balzaquiana, os prazeres de ter a cama só para si. Por seu lado Fred tem 19 anos, é filho de uma riquíssima libertina e está saturado de cinco anos consecutivos dedicados ao deboche.
Ambos conhecem-se desde os tempos em que ele ainda andava de calções. Ela é a «nounoune», ele o «chéri». E, em vez de se evitarem como se fossem a peste, ela toma-o por gigolo, para depois o considerar amante, e enfim no seu grande amor. Até ao dia em que ele pensa casar… sem ser com ela, obviamente!
Com a ajuda de Christopher Hampton, que já com ele colaborara em «Ligações Perigosas», Stephen Frears transformou o romance de Colette numa história tipicamente inglesa, para o que contribuem os comentários esporádicos à ação, com aforismos irónicos ao jeito de um Oscar Wilde.
Chéri transforma-se num avatar de Dorian Gray, esse eterno jovem inventado pelo escritor em causa. A menos que o consideremos uma metamorfose de Peter Pan espartilhado pela terrível infância. Rupert Friend, o protagonista quase só surge através do rosto, ora banal, ora fascinante na forma como exprime a vontade de fuga de si mesmo.
A crítica levantou reservas ao empolamento dado por Frears ao guarda-roupa, aos cenários e à própria fotografia. Minimizaria assim o papel dos atores! Mas há um momento inesquecível, quando a câmara capta Michelle Pfeiffer na escadaria, já destroçada pela passagem do tempo e pela desilusão sentimental, simbolizando por si mesma a Belle Époque, que estava a chegar ao fim...

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: A morte assistida como tema recorrente nos ecrãs de cinema

Foi num belíssimo romance de Alvaro Mutis, que encontrei o verso de Petrarca que passei a identificar como ideal para a forma como gostarei de desaparecer deste mundo: «Un bel morir tutta la vita onora».
Ter uma bela morte, eis algo que todos desejamos e, se me fosse dada a oportunidade de a escolher imitaria a da personagem de Edward G. Robinson no filme »À Beira do Fim», cujo clip aqui anexo.
Recordo o enquadramento dessa cena: num mundo distópico, sobrepovoado e violento, Sol Roth decide já estar demasiado velho e cansado para suportar o fardo de cada dia e opta pela morte assistida. Enquanto a solução letal vai avançando na corrente sanguínea ele vê belas imagens da Natureza, tal qual existia na sua juventude, e ouve algumas das criações musicais mais belas do reportório clássico.
A tranquilidade desses últimos momentos constitui um consolo, que lhe dá esse tal bel morir.
Esta evocação literária e cinéfila revela-se oportuna, quando está na ordem do dia a petição para tornar possível o direito que todos deveríamos ter quanto ao nosso fim.
Uma vez mais o preconceito volta a manifestar-se como sempre sucede quando se pretende fazer prevalecer o direito individual sobre o próprio corpo.
Lamentável, por exemplo, a posição do bastonário da Ordem dos Médicos, quando propõe o sofrimento e a dor do suicídio a quem não se quer sujeitar aos horrores de uma longa agonia. Porque não é apenas o padecimento do moribundo quem está em causa, mas também o dos familiares e amigos para quem constitui tremenda provação a lenta transformação de alguém, que se conheceu enérgico e jovial, num farrapo humano, que assim perdurará na memória para o resto das respetivas vidas.
Por muito que queiram servir de obstáculo a uma tendência incontornável, os opositores ao direito a uma morte assistida, e até mesmo à eutanásia a pedido do próprio, só farão a figura grotesca de quantos no passado também quiseram opor-se a direitos tão óbvios quanto o foram o voto para as mulheres ou à contraceção.
Já tinha decidido escrever este texto, quando, a talhe de foice, me surgiu a curta-metragem «Versailles» de Carlos Conceição.
Para além da descoberta de um jovem realizador com um talento surpreendente, o filme apresentou mais uma perspetiva complementar do mesmo assunto, através da concomitância do eros e do tanatos entre um jovem e a velha senhora a quem irá ajudar a fenecer. 

quarta-feira, fevereiro 24, 2016

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: «Frenético» de Roman Polanski (1987)

O Dr. Richard Walker é um medico americano, que chega a Paris, acompanhado pela esposa, para assistir a uma conferência. Quando está a tomar duche no hotel a mulher desaparece sem ninguém se aperceber.
Perdido num país de que desconhece a língua e sem ajuda das autoridades, Walker inicia uma investigação solitária onde vai encontrando personalidades bizarras e perigosas, que o colocam em perigo permanente, mas também Michelle, uma rapariga capaz de dar a vida para lhe garantir um final feliz.
Nos anos 60 um jovem cineasta polaco, formado na famosa escola de Lodz, destacou-se  o suficiente para depressa se integrar no pujante movimento das nouvelles vagues em várias cinematografias europeias. Filmes como «Faca na Água», «Repulsa», ou «O Baile dos Vampiros» entusiasmaram pela estranheza e humor negro, pelo surrealismo e pela ironia cáustica,  e tornaram-no num dos cineastas mais interessantes da época.
Hollywood atraiu-o e assinou aí novos filmes incensados pela crítica, desde «A Semente do Diabo» a «Chinatown». Na altura parecia à vontade em todos os géneros e temas.
Problemas judiciais na terra do tio Sam trouxe-o de volta à Europa aqui rodando um dos seus melhores títulos: «Tess». Mas os anos 80 trar-lhe-ão novas dificuldades:  «Pirates» foi um estrondoso fracasso comercial e este «Frenético» surgiu-lhe como paliativo para recuperar o apreço público. Retomando o género policial, ele agradou pela capacidade de criar uma atmosfera única, que muito deve à música de Ennio Morricone.
Ainda que não seja perfeito - o argumento arranca toscamente e o final carpinteira-se às três pancadas - «Frenético» constitui uma viagem perturbadora pelo lado selvagem de Paris cuja paisagem urbana constitui uma ameaça permanente, acentuando-se a sensação de termos um protagonista vítima das circunstâncias e com escassos recursos para as superar.
Na revista «Positif» o futuro escritor Emmanuel Carrère considerou «Frenético» uma máquina perfeita para que se olhava com um fascínio, que não se prolongava tão-só concluído o seu genérico. Apenas restava a evocação encantatória de uma dinâmica irresistível.

IDEIAS: Existe uma receita para alcançar a felicidade?

Os Trinta Gloriosos Anos fizeram crer na possibilidade de se atingir um patamar de qualidade de vida, que justificava todas as formas de hedonismo e a facilitação do acesso à plena felicidade.
As crises do petróleo e, sobretudo, a financeirização das nossas economias veio condicionar esse desejo de realização pessoal, que tantos julgaram possível e o viram esvair-se no empobrecimento progressivo das classes médias.
E, no entanto, o discurso político sobre o direito á felicidade até tem potencial para fundamentar novas Revoluções...
Detenhamo-nos um instante para olhar para esta imagem de Bert Hardy, colhida na estação de Paddington, em Londres, em 1942. Segundo sabemos ela ilustra a iminente chegada de um militar, proveniente da Frente de Combate e a quem a mulher e o filho esperam com ansiedade. Um excelente pretexto para a abordagem de equacionarmos o que pode fazer alguém feliz.
Será a felicidade um desejo saciado? Será uma questão de vontade em alcança-la?
O primeiro desafio, que se coloca ao desejo da felicidade é saber o que a ela conduz. No caso da imagem a expressão ansiosa do rapaz, e mais contida da progenitora, é fácil de imaginar. Mas podemos sempre tornar mais complexa essa resposta, pois - tendo em conta que ainda se estava bastante longe do fim da Guerra! - não sabemos se esse militar viria bem ou a contas com alguma deficiência irremediável. O que permitiria ler a expressão destes rostos de maneira completamente diferente. É que a possível felicidade do reencontro revela-se mitigada pelas circunstâncias, que determinavam se ela era momentânea ou perdurável.
São múltiplos os exemplos de milionários profundamente infelizes apesar de terem satisfeitos catálogos inteiros de coisas materiais. Essa condição aparentemente ideal para se ser feliz pode ser palco de enorme tédio, senão mesmo de um problemático sofrimento.
Schopenhauer definia a felicidade como a supressão da dor, como se se tratasse de uma enxaqueca em fase de dissipação. Excluía a possibilidade de alguém ser feliz, pois o homem comporta-se como o burro, que leva pendurada à sua frente uma apetitosa cenoura e à qual nunca chega, porque o objetivo é sempre o de levá-lo do sítio A para o sítio B.
Conformista, o mesmo filósofo defendia a vantagem de esquecer o inatingível e acomodar-se ao que já se conseguiu. O pessimismo acabava por ser uma espécie de terapia em que nada importa por tudo estar destinado a correr mal. Ao invés o otimista tem energia para dar e vender. Mas estará mais habilitado para esse estado de felicidade?
O rapaz e a mulher da foto espelham a inquietação perante a imprevisibilidade do reencontro. Mas, com boa vontade, e atendo-nos na hipótese de um final feliz, há o paradoxo de a felicidade se resumir à expetativa de um prazer, que se imagina vir a conhecer. A felicidade não existiria, por si mesma, mas como antecipação de a vir a conhecer. E, na mesma lógica, ela pode ser também identificada a posteriori, quando se compreende já se a ter vivido e ela ter entretanto passado, nem que para uma forma serena de a prolongar. Mas já sem o êxtase, que ela prometia. É a sensação de se ter sido imensamente feliz, sem a consciência de tal estado naquele momento em concreto.
É outra razão para identificar a felicidade numa das suas vertentes mais exequíveis: a da evocação do passado, mesmo que a mente já dele tenha criado uma efabulação ideal do que fora a sua substância...