sábado, setembro 30, 2023

A afirmação da arte negra contemporânea

 

 1. Estão-se a quebrar as barreiras, que impediam as obras dos artistas negros de se fazerem representar nos museus europeus e norte-americanos. Jerrell Gibbs, Shannon T. Lewis, Michael Armitage e Peter Uka são quatro exemplos de artistas, que conseguiram internacionalizar-se, atingindo respeitável patamar no mundo artístico.

Oriundo de Baltimore, Gibbs ficou órfão de pai aos sete anos, quando o viu linchado numa disputa entre gangs de traficantes de droga. Talvez como resposta salvífica desse passado traumático, ele escolhe por temas, operários orgulhosos em sê-lo e se integrarem em famílias estáveis.

Shannon T. Lewis pinta mulheres negras, que replicam as dos recortes de revistas da moda ou de arquitetura, materiais que lhe servem para as prévias colagens que lhe definem a composição do que pinta.

Michael Armitage é queniano e gosta de replicar as histórias da sua cultura. Propósito semelhante ao do nigeriano Peter Uka que, instalado em Colónia, decide pintar cenas do seu país sempre que por ele tem saudades.

Nos quatro casos o figurativismo é a opção comum por ser, compreensivelmente, a que melhor se coaduna com a cultura dos seus autores. Embora se sinta em Uka a pulsão para libertar-se dessa agrilhoada tradução da realidade.

2. Considerado um dos grandes momentos da História da Música, o concerto dado por Kathleen Battle e Jessye Norman no Carnegie Hall de Nova Iorque em 18 de março de 1990, foi memorável por várias razões: para além do talento das duas sopranos a escolha de espirituais negros correspondeu ao desejo de afirmação de uma cultura indissociavelmente relacionada com o passado da escravatura nos EUA.

Ao ouvi-los numa das mais sofisticadas salas de espetáculos de Manhattan, os espectadores viram e ouviram a cultura negra a afirmar-se numa altura em que ainda se padeciam as sequelas do reaganismo. 

quarta-feira, setembro 27, 2023

A Gruta dos sonhos perdidos, Werner Herzog, 2010

 

Na sua odisseia sobre a História do Cinema, Marc Cousins começou por apresentar a Gruta de Chauvet como local fundador dessa arte por verem-se diversos animais com várias patas a ilustrarem o movimento.

Essa hipótese também é a de Werner Herzog no documentário dedicado a esse achado arqueológico, que fez recuar até há trinta mil anos atrás o testemunho da “alma humana” capaz de transformar em arte aquilo que os olhos viam.

Depois de tantos filmes e documentários, que o levaram aos espaços mais desafiantes, o cineasta alemão aproveitou uma autorização especial do governo francês para captar em 3D o que contêm as grutas descobertas nos anos 90 no sul da França e, desde então, capazes de colocarem em causa muitas das teses até então maioritárias sobre o advento da arte rupestre e a coexistência entre neandertais e homens sapiens nas margens mediterrânicas desse distante passado. 

Big Bounce em vez do Big Bang?

 

Quase invariavelmente a ciência tem avançado quando põe em causa  uma verdade até então dada por adquirida e pondera a possibilidade de uma outra, mais provável, a substituir. É o que está a suceder com a teoria do Big Bang, que o George Lemaitre propôs em 1927 como explicação matematicamente viável para a constatação do universo estar em expansão e para a resposta à pergunta de se saber donde proviria a matéria, que compõe, não só tudo quanto existe na Terra, mas em toda essa infinita realidade.

Se Albert Einstein, que começou por acreditar num universo estático, pôs em causa a interpretação de Lemaitre dos cálculos que, porém, considerava corretos, acabou por reconhecer o erro e até qualifica-lo como a maior burrice que alguma vez cometera. Nasceu assim o conceito de Singularidade, esse ponto donde explodiria toda a matéria e, com ela, o espaço e o tempo.

Para a questão de se saber o que haveria antes surgiria uma resposta incontornável: nada!

Há, porém, quem duvide desse modelo, incontestado há quase um século, e proponha uma outra hipótese: se o buraco negro for o portal para um outro universo e tiver sido por um deles que o nosso emergiu a partir de outro incomensuravelmente maior? Podemos provir de um buraco negro, ou mesmo viver num, sem disso nos darmos conta?

Embora tidos por perigosos e vorazes, o físico e cosmólogo Nikodem Poplawski considera possível comprovar matematicamente que vivemos dentro de um desses buracos negros e o Big Bang mais não teria sido do que um Big Bounce, ou seja, um impulso dado à matéria, que já se encontrava no seu interior. Hipótese ainda muito controversa nos meios científicos...

segunda-feira, setembro 25, 2023

A festa do urso

 

Escritor por descobrir em tradução portuguesa, Jordi Soler tem abordado a Retirada, nome dado à fuga dos republicanos através dos Pirenéus em 1939, quando se consumou a vitória franquista na Guerra Civil. Nascido no México na comunidade de exilados catalães, ele vive atualmente em Barcelona onde se sente mais confortável com a sua identidade.

Em 2004 publicou Los Rojos de Ultramar (2004) sobre aqueles que conheceu na infância e juventude além-Atlântico mas, cinco anos depois, no terceiro romance, La Fiesta del Oso, já trata dessa travessia pelas montanhas em que um tio terá perdido a vida. Para o procurar Jordi chegou a demandar as praias de Argéles-sur-mer onde o governo francês instalou um campo de concentração para prender os refugiados do país vizinho, que tratou como indesejáveis, tão próxima era já a sua ideologia do que seria o futuro regime pétainista. Mas, salvo um memorial ali existente, nada mais assinala o drama de centenas de pessoas, que muito sofreram para não morrerem de frio nos meses que se seguiram ao início da Segunda Guerra.

No romance o protagonista Arcadi acaba por ser melhor sucedido ao descobrir que Oriol não terá afinal morrido na altura em que a família o considerara, mas ainda sobrevivia numa prisão onde cumpria pena perpétua por ter assassinado uma miúda encontrada num bosque pejado de seres enormes e monstruosos.

O título do romance tem a ver com o dia em que o faz: aquele em que, em Mollo-la-Preste, se comemora a Festa do Urso, com a representação do combate de homens com outros disfarçados de temíveis feras.

Aquele que fora um pianista idolatrado pela família perdera a condição de herói para se tornar motivo da sua vergonha. 

sábado, setembro 23, 2023

A lenda de um deus mortal e assexuado

 

Em A Escola de Atenas Rafael terá explicitado o que o diferenciava do contemporâneo Miguel Ângelo: enquanto se representava integrado num grupo como ser social que era, o esquivo e melancólico criador do teto da Capela Sistina aparecia à parte de todos os demais, como se abandonado às profundas reflexões.

O feitio dos dois pintores seiscentistas não podia ser mais antagónico e por isso foram rivais até por ser esse o interesse do papa, que lhes encomendava parte significativa das obras. E se ninguém de bom senso discute qual deles seria o mais talentoso, Rafael consegue que haja quem, em Dresden, olhe para a Madona Sistina e tenha dificuldade em reter as lágrimas. Porque a criança ao colo da mãe tem um olhar aterrorizado, como se soubesse qual seria o seu destino, e a própria Virgem está triste, igualmente ciente desse incontornável futuro.

Para se distraírem das emoções esses corações piegas podem fixar-se no rebordo inferior do quadro onde surgem pela primeira vez os dois anjos, que seriam replicados vezes sem conta nos séculos futuros.

Morto inesperadamente aos 37 anos, diz-se que durante árduo esforço sexual, Rafael seria endeusado daí por diante, muito contribuindo Vasari com a biografia repleta de episódios lendários como o de, nesse 6 de abril de 1520, uma sexta-feira santa que o conotaria com a morte de Cristo, terem-se multiplicado fenómenos sobrenaturais, mormente um terramoto que danificou significativamente os apartamentos do papa. Terá sido esse biógrafo a querê-lo conotar com a condição de deus mortal e assexuado, que se divulgou maioritariamente desde então. 

terça-feira, setembro 19, 2023

Impressões urbanas e balneárias

 

Em 1892 Claude Monet voltou a Rouen para superar a frustração vivida duas décadas antes, quando multiplicara esforços para captar a Catedral da cidade e não conseguira sair satisfeito do desafio. Com outro saber, feito da experiência desde então acumulada em tantas obras, julgou-se em condições de captar os matizes de cores nela percetíveis ao longo das várias horas do dia e, sobretudo, dependentes dos humores de uma meteorologia, que ora a iluminavam com o brilho intenso do sol radioso, ora os viam filtrado pelas nuvens mais ou menos densas.

Para iniciar a empreitada, que se traduziria numa trintena de quadros, Monet subiu à colina de Santa Catarina para vislumbrar o enquadramento da vista geral da cidade e da centralidade do monumento na paisagem. O resultado foi o quadro, que podemos encontrar no Museu de Rouen, e anunciador do período áureo do impressionismo.

Apesar dos nenúfares do jardim de Giverny, foi em Rouen, que o pintor alcançou a dimensão mais esplendorosa da sua obra.

Dezanove anos depois, quando Pierre Bonnard pintou a Marina da Baía de Arcachon, já parecia esgotado o filão estético anterior e buscava-se o regresso a um certo imaginário, que se coadunasse com a preocupação em representar o real tal qual se via. Membro da corrente nabi, Bonnard era o típico pintor do ar livre, buscando inspiração na luminosidade das costas francesas, seja nas da Normandia, da Côte d’Azur ou da Baía de Arcachon.

No caso desta última justificava as longas estadias na região por serem aconselhadas pelos médicos de Marta, a companheira e musa, que possuía pulmões particularmente frágeis e deveria recuperá-los em clima mais bonançoso, que o do norte.

Integrando a coleção do Museu d’Orsay o quadro aqui referenciado foi um dos muitos que Bonnard pintou e de que tinha garantido compradores certos, tanto mais que as praias da região tinham-se tornado particularmente frequentadas por quem a elas ganhara facilidade de acesso com a chegada da linha ferroviária. 

domingo, setembro 17, 2023

Little Odessa, James Gray, 1994

 

Não é a Nova Iorque glamourosa, que encontramos nos primeiros filmes de James Gray: pelo menos até Immigrant, que realizou em 2013 para evocar a grande cidade a que chegaram os antepassados  polacos  no início do século XX, ele privilegiou os temas relacionados com quem veio de outras paragens e optou pelo crime como forma de subsistência, mesmo que tal servisse para dividir as famílias e trair quem pudesse merecer maior deferência.

Revendo o filme em que Edward Furlong interpreta o papel de irmão mais novo de um assassino a soldo regressado ao bairro onde vivera para reencontrar os de quem se afastara, temos um sopro de tragédia grega numa história sobre a perda de inocência, as fraturas edipianas e os indesejados assassinatos, que se perpetram por acidente.

Nos anos mais recentes James Gray reciclou-se em grandes produções, que pouca relação parecem ter com a fase inicial da sua filmografia, mas esses primeiros títulos continuam a ser incontornáveis, quando pensamos nos que melhor nos ajudem a compreender a cidade que nunca dorme... 

segunda-feira, setembro 11, 2023

A mão cortada, Blaise Cendrars

 

Foi para homenagear os amigos que conhecera nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial que Blaise Cendrars escreveu esta narrativa de memórias em 1946. Evoca o que então vivera após a apreciável experiência de viajante, que o levara a distantes paragens. Mas há, sobretudo, o preito ao filho Rémy, morto num acidente aéreo em Marrocos depois de sobreviver a todos os combates em que participara durante a guerra mais recente.

Constata Cendrars: “Apresso-me a dizer que a guerra não é bonita e que, quando nela estamos envolvidos enquanto algozes, vemos sobretudo um homem perdido nas fileiras, um número de série entre milhões de outros, demasiado estúpido por não obedecer a qualquer plano geral, mas ao aleatório. À fórmula “ande ou morra” podemos acrescentar este outro axioma: avança enquanto te empurrar! E pronto, vamos, empurramos, caímos, morremos, levantamos, andamos e recomeçamos. De todas as imagens das batalhas que presenciei, só trouxe a de uma tremenda confusão.”

Numa altura em que as guerras continuam a caracterizar este presente, que deveria estar concentrado numa outra bem mais importante - a da salvaguarda da civilização perante os desafios das mudanças climáticas - a leitura deste livro surge justificada pelo reencontro com o absurdo em que se perdem mãos, braços, o juízo, e até a vida, em nome de interesses, que quase nunca coincidem com o verdadeiro interesse das vítimas.

sábado, setembro 02, 2023

La vie de bohème, Aki Kaurismäki, 1992

 

A net tem destas vantagens: ver um filme pouco conhecido de Aki Kaurismäki, mas essencial para entender quanto fora apressada a pressa em acantoná-lo num tipo de cinema social, que levara alguns a qualificar alguns dos seus filmes anteriores como pertencentes a uma “trilogia do proletariado”.

Ao adaptar o romance de Henri Murger, que dera origem à conhecida ópera de Puccini, Kaurismäki satisfez a vontade de dar-lhe versão filmada quando, a meio da década de 70 era um anónimo funcionário dos correios finlandeses, e ficara rendido à que considerara uma “história maravilhosa”.

Fiel à intriga, apenas situando-a num indefinido presente, explora as vicissitudes por que passam três amigos sem grande condão para ganharem o sustento, mas solidários na partilha do pouco que possuem. Há um pintor (Rodolfo), um escritor (Marx), um compositor (Schaunard) e, sobretudo, Mimi, que justifica um nível de comoção mais intenso do que a da sua personificação operática por algumas das mais conhecidas sopranos dos teatros de ópera.

É uma descoberta que vale bem o tempo a ela dispensado. Até porque, além do ator que tanto lhe serviu de alter ego, Matti Pellonpãã, o elenco também integra André Wilms, Jean-Pierre Léaud, Samuel Fuller,  Louis Malle,  e sobretudo a surpreendente Evelyne Didi, que ficamos a lamentar nunca ter encontrado outros filmes à medida do seu óbvio talento.