quinta-feira, fevereiro 29, 2024

Histórias Exemplares (XIV) - Crimes sob cobertura mais ou menos legal

 

1. Quarenta dos cinquenta Estados norte-americanos permitem o casamento com crianças, incluindo a “progressista” Califórnia. Quase sempre num contexto religioso - nas igrejas evangélicas e outras seitas de crenças esdrúxulas - esses matrimónios oficiais  obrigam rapariguinhas a fazerem-se violar legalmente por homens adultos numa demonstração de como a pedofilia pode mascarar-se de muitas formas, que branqueiam os criminosos e vitimam as suas presas.

Apenas mais uma evidência sobre as contradições de um país de muitas disfuncionalidades perpetradas à sombra dessa ofuscante (in)cultura de que se faz apanágio o trumpismo.

2. Numa (des)informação generalizada, que está a normalizar o Holocausto imposto às populações palestinianas de Gaza e da Cisjordânia desde que o Hamas deu o pretexto com os crimes de 7 de outubro, fazem falta as muitas reportagens sobre outros crimes quotidianos praticados por milícias das colónias ilegais armadas pelo exército israelita.

Acabo de ver uma dessas raras peças jornalísticas, apresentadas no canal franco-alemão Arte, e é fácil compreender como as crianças, que se veem com a arma de um colono encostada à têmpora, perante os progenitores a serem agredidos e humilhados, alimentarão para sempre um ódio capaz de explicar os seus futuros gestos vingativos.

Claro que os dirão “terroristas”, mas quem os terá levado a tal condição? 

sábado, fevereiro 24, 2024

Histórias Exemplares (XIII) - memória das Índias Galantes

 

Foi dos melhores concertos a que eu e a Elza assistimos: em 2006 Mega Ferreira estava à frente do CCB e, havendo ainda dinheiro para replicar em Lisboa parte do que sucedia nas Folles Journées de Nantes, contava com a colaboração de René Martin para a organização de mais uma festa da música que, nesse ano, teria como tema o Barroco.

Num desses concertos pudemos ver François-Xavier Roth a dirigir a suite das Indes Galantes de Jean Phillipe Rameau, que serviu aliás de tema musical anunciador do festival.

Desconhecia estarmos então perante aquele que já era, mas mais se tornou, num dos mais interessantes maestros da atualidade. Aquele que Barenboim exalta pela versatilidade com que aborda diversas épocas, ou Simon Rattle considera um verdadeiro mágico ao arriscar-se em aventuras, que quase mais ninguém ousa experimentar.

E, de facto, o antigo flautista que, desde muito cedo, soube não lhe bastar a interpretação do seu instrumento, porque pretendia estudar e dar a conhecer as grandes obras de que descobre as mais subtis nuances, só merece elogios dos que com ele trabalham, sejam os solistas que são cúmplices das suas propostas, quer os que são por ele dirigidos, quer nas mais importantes orquestras europeias, quer nos amadores com quem tanto gosta de trabalhar.

Lembro que, depois de me ter entusiasmado com a música de Rameau, vi-o a comer uma sande na cafetaria do CCB e fiquei na dúvida se o deveria ter ido cumprimentar em agradecimento por quanto prazer sentira durante o espetáculo mas, ao contrário, do que costumo fazer nessas ocasiões, retive a intenção. Afinal ele parecia estar a refletir tão profundamente  enquanto degustava o lanche, que pareceria sacrilégio interrompe-lo. Mas, tantos anos passados, ainda sinto alguma contradição entre o saber ter agido corretamente e a pena de não ter-lhe manifestado a admiração, que me continua a suscitar... 

Apontamentos Cinéfilos (II): Soares deveria ter sido fixe

 

Se tivesse uns quantos milhões de euros, e fosse produtor de cinema, a personalidade de Mário Soares seria uma das mais estimulantes para dar a conhecer em forma de filme. Ou de filmes, porque teria de abordá-la em diversas variações: na deportação em São Tomé, quando o fascismo ainda parecia tão fortalecido depois de assassinar Humberto Delgado; no exílio francês, quando soube do derrube da ditadura; na relação com Maria Barroso que, com ele teve mutuamente respeitadas divergências; na irreversível zanga com Salgado Zenha de quem fora grande amigo; na equívoca relação com Carlucci, espião da CIA, que tanto contribuiu para o promover na época do PREC; ou, ainda mais interessante, como para tudo isso olhava no fim da vida quando mostrou estar muito mais à esquerda do que aparentara em grande parte da vida política ativa no contexto democrático.

A noite eleitoral em que desfeiteou Freitas do Amaral também seria variação interessante, e Sérgio Graciano tentou agora concretizá-la. Mas, como comparativamente com  Mário Soares, o seu maior rival na direita - Sá Carneiro - só deveria merecer uma curta-metragem por tão pouco haver sobre ele ilustrar para além da história de alcova! - também essa falta de substância pareceu acudir ao tosco realizador a propósito dessa figura maior da nossa História.

Não chegarei à (justa) maledicência de Luís Miguel Oliveira, quando diz péssimo o filme de Graciano, mas dá, efetivamente, pena que Mário Soares não tenha merecido realizador que melhor lhe cuidasse da contraditória natureza, aquela que, por outro lado, lhe garantiu a indesmentível grandeza... 

domingo, fevereiro 18, 2024

Apontamentos Cinéfilos (I): Fabio e Damiano D'Innocenzo, Carolina Hellsgård e Michelangelo Antonioni

 

1. O cinema tem imensas propostas sobre realidades aparentemente tranquilas à beira da explosão - incontrolável! - de quem se sente sufocar perante a frustração de não ser reconhecido. Esse é também o tema de Storia di vacanze, segunda longa-metragem de Fabio e Damiano D'Innocenzo que, em 2020, nos deu a conhecer um bairro de classe média baixa dos arredores de Roma em que o verão parece agradavelmente passado nas piscinas insufláveis e nos jantares ao ar livre.

Os vizinhos convivem na maior das cordialidades, mas desprezam-se, se não mesmo invejando-se no seu íntimo. As mulheres são passivas, os maridos agressivos, restando as crianças para, com um projeto mirabolante, virarem do avesso a vida dos adultos. Desmascarando-lhes as verdadeiras faces.

 

2. Endzeit de Carolina Hellsgård projeta-nos para o apocalipse, quando apenas duas cidades resistem às sucessivas hordas de zombies.

Produção alemã de 2018 reflete o medo pelas pandemias, que viriam a tornar-se particularmente relevantes com o ainda então desconhecido covid.

Insatisfeitas com as regras, que regem a sua comunidade, duas raparigas, Vivi e Eva, arriscam sair da sua proteção para buscarem asilo na que mitificam como diferente para melhor.

Baseado em bandas desenhadas de Olivia Vieweg o filme mostra-nos as duas protagonistas a confessaarem os seus fantasmas obsessivos ao mesmo tempo que confirmam a incompatibilidade da liberdade com uma sociedade apenas apostada na sobrevivência, percorrendo territórios indiferentes aos desvarios humanos, renaturalizando-se, quais fénixes a renascerem.

3. Dos filmes de Michelangelo Antonioni o meu preferido é A Aventura que, em 1960, marcava uma clara rutura com um conjunto de valores maioritariamente glosados no cinema da década anterior.

Em primeiro lugar os homens - personificados no arquiteto Sandro - surgem no esplendor da sua mediocridade, quer prestando-se a mudarem de afetos tão só a oportunidade se proporcione, quer tomando consciência das limitações dos seus talentos profissionais. É assim que Sandro logo pensa em atirar-se para os braços de Claudia tão-só vê desaparecer a companheira, Anna, na escala do iate na ilha em que ficamos sem saber se ela se suicidou ou se limitou a fugir.

Mais adiante, quando Sandro e Claudia procuram Anna na cidade antiga de Noto, ele questiona-se sobre os limites da arquitetura, sendo raras as construções a perdurarem nos séculos seguintes. E sabendo que as suas obras, no âmbito desse saber, não durarão, porque apenas orientadas para a especulação imobiliária então em curso nas principais cidades italianas.

Há também a cena do assédio de uma mulher por dezenas de homens numa rua de Messina, que critica a coisificação do corpo feminino, tão em voga no cinema dessa época, e responsável pelo indecoroso espetáculo da sua exposição na televisão berlusconiana das décadas seguintes.

E não é de descurar a forma como Antonioni explicita a evolução do sentimento amoroso entre a lúcida Claudia e o volúvel Sandro conduzindo à cena final em que este se prostra aos pés dela desejoso de se fazer perdoar... 

sábado, fevereiro 17, 2024

Histórias Exemplares (XIII) - Os espetáculos entre os impulsos e os demorados processos criativos

 

É tido como um concerto lendário: o que Daniel Barenboim dirigiu em 12 de novembro de 1989 em Berlim, à frente da respetiva Sinfónica, e oferecido aos que haviam atravessado o Muro  à procura dos mais exagerados sonhos.

Quer quem o viu ao vivo, quer quem esteve nesse dia do lado da orquestra, fala como sendo um efémero momento de união, de partilha, que dava azo a conjeturar quase utópico tudo o que se seguiria.

Que não foi assim demonstraram-no os anos seguintes: perdeu-se a ilusão igualitária, que se procurara impor no lado leste, mas também a ideia de se ter tratado do fim da História com a definitiva vitória do capitalismo consumista e ecologicamente depredador.

O mais perturbante é, porém, campear o neonazismo onde se sonhara com a justiça social racionalmente mais óbvia, confirmando a indesculpável amnésia na espécie humana incapaz de retirar as devidas lições dos próprios erros.

2. Confesso nunca ter apreciado particularmente as propostas de Vera Mantero, embora a entenda inserida nas novas linguagens capazes de me darem maior prazer sensorial do que, por exemplo, a majestosidade talentosa, mas académica do  Bolshoi.

O documentário a ela dedicado por Cristina Ferreira Gomes, acompanhando o processo criativo da coreógrafa durante um ano para resultar no espetáculo O Susto do Mundo, ajuda-me a rever a apreciação anterior. Isso confirma que possa haver uma outra forma de olhar para a realidade , quando nos dotamos de elementos para fundamentar as nossas opiniões. Porque reconheço ter chegado às abordagens artísticas em causa olhando-as empiricamente sem saber mais do que as folhas de sala iam facultando, quase sempre expressando um conjunto de intenções difíceis de apreender por quem não lhes entendeu o fundamento.

O trabalho de Cristina Ferreira Gomes tem esse condão: o de ilustrar a pesquisa constante e questionamento incessante operados por Vera Mantero na preparação das obras. Dando a ideia de tratar-se de uma qualidade - a da insegurança perante os grandes temas nelas versados - o que parecia ser uma fragilidade.

Talvez não dê para vencer a sensação de estranheza perante quanto vira até agora, mas talvez permita deixá-lo entranhar-se mais facilmente, quando voltar a olhar-lhe para a forma como faz movimentar os corpos em palco. 


quarta-feira, fevereiro 14, 2024

Histórias Exemplares (XII) - Vincent nas turfas

 

Conhecer a terra natal foi o propósito de Vincent Van Gogh quando, em setembro de 1883, foi passar três meses na zona das turfeiras de Drenthe. Essa estadia é quase sempre ignorada na sua biografia porque, além de curta, também se mostrou particularmente sombria, levando-o a optar por cores bem diferentes das que viria a utilizar em França. E havia boas razões para isso: estava deprimido, incomodado com a solidão e a meteorologia também não ajudava.

Com trinta anos Van Gogh  vira fracassada a carreira como pastor protestante e a relação amorosa com uma jovem de Haia, aspirando a converter-se no pintor dos camponeses da região menos industrializada, mais provinciana, do seu país, buscando o absoluto de que a igreja e o pai o tinham dissociado.

Inicialmente ficou tão entusiasmado com o que considerou um paraíso, que encarou a hipótese de ficar em Drenthe durante um ano para captar a luz das quatro estações. Particularmente quando fez uma viagem de seis horas num canal a bordo de uma barcaça.

A incapacidade em comunicar com os habitantes, que o acharam bizarro escusando-se a servir-lhe de modelo, mas sobretudo os rigores da invernia, dissuadem-no do projeto inicial depois de presenciar, e pintar, o esforço sobre-humano dos mais humildes nos campos de turfa. Por essa altura o dinheiro também se lhe encurtara rapidamente e decidiu partir para a fase seguinte da sua vida. Mas levando consigo um sentimento fraterno por quem tanto vira sofrer para garantir uma sobrevivência miserável... 

segunda-feira, fevereiro 12, 2024

Histórias Exemplares (XI) - Crenças irracionais

 

1. Misteriosas me serão sempre as razões, que leva grande parte da humanidade a entregar-se à crença num qualquer deus e lhe devota culto fanático, que um mínimo de racionalidade tenderia a descartar. E pouco importa que gente inteligente tenha porfiado em desmascarar a farsa pois conjugam-se as estratégias do poder político e religioso para suportarem o que a ambos convém, quer como forma de se perdurarem, quer de enriquecerem. E assim se valem da “inocência” (chamemos-lhe assim para sermos benevolentes!) dos crédulos.

Émile Zola procurou desmontar o embuste em 1891, quando foi alojar-se dois anos de seguida em Lourdes para assistir ao espetáculo da cidade “mística” surgida das “visões” de uma criança. E assim documenta tudo quanto vê durante as peregrinações: o cortejo dos doentes, mas também a despudorada mercantilização em torno do que, supostamente, sucedera na gruta.

O personagem principal é um padre comovido pela dor e esperança dos que supostamente deveria confortar na sua fé, mas cada vez mais duvidoso do fundamento desta dentro de si. Por isso mesmo trata-se de uma novela muito interessante sobre o confronto entre a razão e a crença no irracional.

Pessoalmente também fui ver o fenómeno muitos anos atrás - como não deixei de o ver replicado em Fátima - mas, tantos anos depois de pouco me lembra esse lado folclórico do sítio. Do que melhor me ficou foi um passeio de barco pelo lago da cidade, a Elza com o seu maravilhoso sorriso e a filha sempre ávida de ver respondidas as suas intermináveis perguntas. Tanto quanto me lembra em nada relacionadas com quanto ali víramos até então.

2. Um soneto de Shakespeare deu a Lydie Salvayre o pretexto para pensar a Sucessologia, uma espécie de ciência, que ignora o talento e a genuinidade dos seres em proveito de tudo quanto possam fazer para se salientarem, e tornarem-se admirados, pelo menos para aqueles que gostariam de lhes replicar o feito.

Parodiando os manuais de autoajuda, a escritora demonstra como o parecer prevalece sobre a integridade nos que tudo fazem para alcançar a notoriedade por muito efémera se revele. Porque, numa sociedade votada ao consumo, tudo tende a assemelhar-se à pastilha elástica, que se mastiga e logo deita fora.

terça-feira, fevereiro 06, 2024

Histórias Exemplares (X) - Uma forma de vencer o tédio

 

Se há inovação atribuível a Agatha Christie no género policial a mais significativa é a da importância da cena final como clímax revelador da autoria do crime. Embora também se deva atender à dualidade entre um detetive particularmente arguto e um parceiro ingénuo, ou a ocorrência do homicídio num local pitoresco e tranquilo.

A partir do triunfo como escritora, Agatha Christie viu replicadas muitas dessas características nos títulos dos seus seguidores, seja na literatura, seja nas séries televisivas ou no cinema.

Lançado em 1920 O Misterioso Caso de Styles, também publicado entre nós como A Primeira investigação de Poirot, já contém esses atributos ao fundamentar-se num crime macabro ocorrido em plácida região campestre.

Tudo começa com um misteriosa encomenda enviada a um editor londrino contendo o manuscrito de um romance destinado a tornar-se um singular fenómeno de vendas.

Quatro anos antes, em 1916, Agatha Christie, então com 26 anos, desposara Archie antes dele partir para os combates da Primeira Guerra Mundial, e alistara-se como enfermeira no hospital de Torquay. No resto do tempo disponível entreteve-se a escrever histórias.

Numa gravação, só descoberta em 2008, ouvimo-la de viva voz a contar que se habituara a inventar enredos e a interpretar diferentes papéis para vencer a solidão de lhe ter sido negada a hipótese de ir à escola em criança. Em suma para vencer o tédio.

Terá sido esse hábito a estimulá-la a escrever, e publicar, um romance para demonstrar à irmã, Madge, que não tinha razão quanto a dizê-la incapaz de o conseguir concretizar.

Como protagonista do romance surge um detetive belga particularmente orgulhoso das suas celulazinhas cinzentas, inspirado por algum dos muitos refugiados do continente, que haviam buscado salvação na sua região. E ele virá a aparecer em trinta e três romances, três peças de teatro e cinco dezenas de contos, com que ela alimentará boa parte da sua bibliografia.

No caso passado em Styles Poirot já era o homenzinho baixo, de bigode amestrado com cera e tão cioso da sua dignidade, que conferia particular importância à forma como se apresentava aos outros. A tal ponto que dir-se-ia mais preocupado com um grão de poeira no fato do que por um tiro, que o molestasse. E assinale-se uma inegável dose de ironia na escolha do másculo nome de Hercule para o identificar.

Pouco se sabe do seu passado, do que sente ou sequer pensa. Mas curioso e capaz de causar empatia com os leitores. 

domingo, fevereiro 04, 2024

Histórias Exemplares (IX) - Paradoxos da História

 

1. No derradeiro episódio televisivo da História sobre o colonialismo português em África, Fernando Rosas abordou o inegável sucesso da integração dos retornados nos cinco anos subsequentes à Revolução dos Cravos.

Paradoxalmente viram-se por ela privilegiados com apoios, empregos e créditos bancários apesar de, em significativa dimensão, a maldizerem, a pretenderem manchar com as piores diatribes e servindo (ainda hoje!) de tropa fandanga à extrema-direita.

Buscando explicação para esse sucesso, o historiador aventa a forte probabilidade de boa parte dos menos instruídos terem regressado às terras de origem e aí contribuírem para o dinamismo económico, que nelas se verificou. E os dotados de melhor formação, normalmente mais novos, ficaram-se pelos centros urbanos onde aproveitaram o crescimento do setor empresarial do Estado, mormente a nacionalização da banca, para ocuparem postos de trabalho para os quais passaram a ser preferidos.

Embora não o diga explicitamente, Fernando Rosas deixa transpirar a constatação de uma inequívoca ingratidão, que muitos retornados alimentaram por uma Revolução, que lhes propiciou a adaptação a um mundo novo do qual, com a ilusão colonialista, estavam apartados.

2. Foi das piores coisas, que poderiam ter acontecido à esquerda mundial: a ilusão de uma Terceira Via, que “amansasse” os radicalismos socialistas e a fizesse trilhar as bem menos turbulentas ondas da “social-democracia”. Tony Blair representou essa faceta de uma falsa esquerda completamente rendida às ideologias das direitas e aos interesses dos Estados Unidos. O clip em que surgiu como o amestrado cãozinho de George Dabliú Bush era explicito quanto a essa realidade.

Em Uma Verdade Incómoda, romance de John Le Carré, que aborda esse período da história britânica, vai mais longe: Fergus Quinn, o ministro dos Negócios Estrangeiros, escocês como Gordon Brown, está mais do que comprometido com a extrema-direita norte-americana e a indústria do armamento, que a financiava.

Estou curioso em saber como o mestre da literatura de espionagem vai desenvolver uma trama ficcional numa conjuntura histórica tão peculiar e de que tão pouco se conhece quanto aos pormenores mais obscuros. 

sexta-feira, fevereiro 02, 2024

Histórias Exemplares (VIII) - Uma revolução no século XVII

 

Até por termos estado sob a alçada filipina o século XVII não nos é particularmente benquisto. E, no entanto, acontecia então o rescaldo das guerras entre os paladinos da Reforma e os da Contra-Reforma com a Inquisição crescentemente implantada no espaço europeu, que era o nosso.

Na época a arte da Europa católica converteu-se numa ferramenta de propaganda com quadros a exaltarem o dramatismo, o movimento e a teatralidade dos temas. Ao invés, nos Países Baixos, os artistas exploraram o realismo com destaque para Johannes Vermeer, que escolheu as cenas domésticas da classe média como motivos de representação.

Recém-independente da tutela espanhola, a nova República banira as imagens religiosas das igrejas e enfatizara a simplicidade, quer nos rituais de preito divino, quer na decoração. Em rutura com as velhas tradições culturais da monarquia e do catolicismo, os artistas reinventaram-se na busca de novas opções estéticas.

E, no entanto Vermeer até convertera-se ao catolicismo para vencer as resistências da abonada sogra, que se opusera ao casamento com Catherina Bolenes em 1653. Apesar de associado à proscrita religião, Vermeer beneficiou da tolerância com que os Países Baixos assumiram para com o direito à liberdade de pensamento.

Da biografia do pintor pouco mais se sabe: se entre o nascimento em 1632 e o registo do matrimónio nada se conhece, dos anos a este subsequentes só se infere ter vivido sempre na casa dessa sogra, pintado no segundo andar quase toda a obra, e nunca ter arriscado viagens para longe da Delft natal. Calcula-se que tenha assinado cerca de sessenta obras, das quais só 36 sobreviveram até hoje.

Sabe-se, igualmente, que Vermeer e Catherine tiveram 15 filhos dos quais sobreviveram onze. Mas a confusão familiar nunca foi objeto de representação nos seus quadros, apesar da apetência dos potenciais compradores por cenas do dia-a-dia com pessoas comuns a executarem os ofícios, ou divertindo-se de acordo com os usos de então. Nelas consolidava-se a identidade cultural assente na forma como os neerlandeses viam a família, o amor, a moral, os relacionamentos e o dever. Aproveitando o declínio ibérico do comércio mundial tinham ganho rápida primazia na exploração das suas potencialidades e haviam enriquecido.

Ainda assim os burgueses calvinistas enalteciam a frugalidade e a austeridade, como se sentissem vergonha da sua riqueza. Daí o gosto por pequenos quadros com temas laicos, adquiridos por mais vasta clientela do que o sucedido anteriormente, quando eram as igrejas e a aristocracia a encomendarem-nos. Os quadros passaram a afixar-se em lojas, tabernas e casas particulares numa época privilegiada para os artistas, que só se viam rivalizados na ocupação das paredes pelos mapas impulsionadores do desejo de criar uma ordem ditada pela nova potência marítima. 

quinta-feira, fevereiro 01, 2024

Histórias Exemplares (VII) - Ir ao fundo e voltar

 

1. A reportagem de Louis Theroux com alguns conhecidos militantes da mais extrema das extremas-direitas norte-americanas é elucidativa quanto à sua perigosidade se atendermos o quanto quase fazem passar o comum dos trumpistas por gente respeitável, não sendo difícil percecionar a facilidade com que poderão passar da mera expressão de palavras odiosas para a ação terrorista.

Se é certo que muitos deles fizeram das plataformas nas redes sociais a ferramenta para enriquecerem à conta de quem neles cré e subsidia sem escrúpulos, a perniciosidade da sua atividade facilita o ressurgimento do candidato republicano às eleições de novembro e arrasta jovens incultos para opiniões, que os transforma em potenciais golpistas como sucedeu com a invasão do Capitólio.

Há, porém, uma outra reflexão a fazer sobre essa gente: questionar porque, no passado, foram as esquerdas a apossarem-se normalmente das novas tecnologias para potenciarem a intervenção ideológica, e agora permitiram às direitas a quase exclusiva utilização dessas ferramentas.

Parece evidente que a guerra pela Democracia, e contra o capitalismo enquanto montada dominante do  possível apocalipse ecológico, terá de passar pela alteração de forças nessas vias de transmissão de mensagens políticas.

2. O meu passado de “marinheiro” que, como aludia Mishima num dos seus mais belos romances, “perdeu as graças do mar “, faz-me atento seguidor de tudo quanto se vai produzindo em torno da exploração científica dos destroços do Titanic. Para constatar que, curiosamente, ainda vão surgindo novidades sobre aquilo que já dávamos como totalmente adquirido. Por exemplo que o funesto icebergue teria provocado um enorme rombo no casco, que explicaria o afundamento do navio supostamente defendido de todas as ameaças nesse sentido. Agora conclui-se que, afinal, a montanha flutuante de gelo causou pequenos buracos ao longo do casco e foram eles a explicar a relativa lentidão com que o navio foi assentar no leito oceânico.

Igualmente desmentida a tese do casco se ter partido em dois, quando o navio ainda estava semiemerso. A mesma investigação científica demonstrou que isso sucedeu, quando já ia a meio da descida para o abismo.

E, conclusão mais inquietante para quem tem ganho o sustento à conta dessa mesma investigação: acelera-se a inesperada rapidez com que os destroços estão a degradar-se por conta das bactérias apostadas em fazê-lo desaparecer. O filão está, de facto, a possibilitar o deslindar das últimas novidades sobre o mítico navio...