segunda-feira, dezembro 31, 2018

(DL) Uma nova Idade das Trevas?


Vem aí uma nova Idade das Trevas suscitada por uma tecnologia, que facilita as fake news, dificulta a criação do pensamento crítico relativamente às leituras divergentes da realidade e serve, sobretudo, de assustadora plataforma global de vigilância e possível repressão dos que anseiam por utopias pós-capitalistas? É essa a tese de James Bridle através do seu muito mediático ensaio - «New Dark Age» - que está a causar furor na imprensa anglófona.

Após o que se soube da interligação entre a Facebook e a Cambridge Analytica ou a fixação da Google em maximizar os espectadores do You Tube através de filmes grotescos, que apelam aos piores instintos de quem os vê, já há quem defenda uma total desconexão da internet. O tom do livro é esse: estamos em vias de conhecer um apocalipse tecnológico, que nos mergulhará em imprevisíveis distopias.
Será assim? Todos os avanços do conhecimento tiveram de enfrentar os seus Velhos do Restelo. Bridle parece ser a versão moderna da camoniana personagem, muito embora nos dê argumentos para contrariar-lhe o pressuposto de ser mais provável o fim do mundo que da internet. através da urgente exigência de uma regulamentação multinacional, capaz de libertá-la dos seus monstros e fantasmas. Por muito que ela muito desagrade a Mark Zuckerberg.

domingo, dezembro 30, 2018

(EdH) Os testemunhos dos que ainda sofreram com a besta fascista


Pela mão de Patrícia Carvalho o «Público» está a ouvir os testemunhos dos antigos prisioneiros dos cárceres de Peniche, de Caxias e do Aljube, já não sendo muitos os que ainda se mantêm vivos. Daí a urgência de lhes recolher as memórias por muito que, nestes quarenta e quatro anos de Democracia, eles tenham-no feito em múltiplas ocasiões. Para que não se esqueça a violência com que foram torturados, as humilhações a que os submeteram, se não mesmo as chantagens mais torpes.
Numa altura em que uns tenebrosos zombies salazarentos saem das catacumbas para voltarem a intimidar quem os quer ver definitivamente enterrados nas calendas da História, importa recordar o que eles representam, não merecendo ter direito a  nenhumas das liberdades, que tanto gostariam de sonegar a todos os demais.
Não trazendo novidades de monta em relação ao que os mais interessados no tema foram vendo, ouvindo e lendo nas últimas décadas, o trabalho da jornalista merece elogios pelo que de proveitoso pode comportar para gerações mais novas.

(DIM) Ficção Científica: a escolha entre o glamour e o utilitário


Nas páginas do «Público» João Pedro Pereira fez uma comparação curiosa entre a tecnologia atual e a que «Blade Runner», o filme de 1982 realizado por Ridley Scott, previa caracterizar o ano de 2019. E a conclusão é interessante: a ficção cientifica do século transato apontava mais facilmente para as viagens intergalácticas do que para a revolução ocorrida no mundo das telecomunicações. Por isso o autor do texto imagina uma cena em que os personagens criados por Philip K. Dick, fossem eles humanos ou replicantes, cuidariam de se espalhar por múltiplas colónias extraterrestres, mas procurando uma cabine telefónica quando carecessem de comunicar entre si.
Podemos criticar essa falta de visão? Creio que não: ainda hoje, por mais gadgets, que se acrescentem aos nossos smartphones, eles nunca conseguirão ser tão glamourosos quanto as aventurosas viagens pelo espaço sideral.

(DIM) Agnès Varda em janeiro na Cinemateca Francesa


A Cinemateca francesa promove uma grande retrospetiva da obra fotográfica e cinematográfica de Agnès Varda, realizadora muito do nosso agrado. E uma sagaz intérprete das linhas gerais da sua obra enfatiza as múltiplas leituras propiciadas pelos seus filmes, quase sempre concebidos com exíguos recursos. Brigitte Roisset afiança que ter-lhe-á servido de lição a forma precária como se iniciou na sétima arte sem lhe conhecer mais do que uns rudimentos, contrariamente ao que sucedia com os seus companheiros da Nouvelle Vague.. Terá sido a sua inexperiência e falta de conhecimentos, que lhe possibilitariam, desde início, a capacidade de inovar e de tudo inventar. E, de facto, basta recordar «OS Respigadores e a Respigadora» ou »As Praias de Agnès» para compreender como, até à fase crepuscular da sua filmografia, sempre lhe importou bem mais o conteúdo do que os meios investidos para o explicitar. Sem que aquele saísse minimamente beliscado.

sábado, dezembro 29, 2018

(EdH) Quando os porcos iam a julgamento


Em tempos recentes têm surgido debates públicos sobre a importância de conferir uma identidade jurídica aos animais de forma a melhor protege-los das agressões contra eles perpetradas por alguns energúmenos que, de humanos têm muito pouco. A questão tem suscitado polémica, porque entendida por alguns como desenvolvimento lógico de serem proibidas as touradas ou os animais nos circos, enquanto outros se escandalizam por se pretender diluir a distinção entre os que são dotados de razão e os que se acredita não a terem. Embora seja difícil definir uma fronteira clara a propósito de algumas espécies comprovadamente muito inteligentes.
Surpreendentes são os estudos de alguns historiadores, que se têm debruçado sobre alguns casos de julgamento de animais durante a Idade Média. O caso melhor documentado aconteceu em 1386 na região de Falaise «, na Normandia, quando os porcos deambulavam livremente pelas ruas das aldeias e das pequenas cidades. Um dia, uma porca derrubou um bebé mal vigiado e começou a devorar-lhe um braço e o rosto, acabando por lhe provocar a morte.
Nos nove dias seguintes o tribunal reuniu-se para decidir que castigo aplicar-lhe, com os defensores e os acusadores a não pouparem-se a grandes exercícios de retórica em latim. No veredito ficou decidido que, depois, de exibida pelas ruas da aldeia e arredores, a porca seria enforcada e queimada.
Michel Pastoureau, reputado historiador francês, publicou na Gallimard um ensaio dedicado ao caso, com o título «Le Cochon. L’histoire d’un cousin mal aimé», no qual se fica a saber que, antes da execução, vestiram a condenada com roupa de mulher, e o juiz encomendou uma pintura a ela alusiva para ser afixada na igreja local, servindo de exemplo para memória futura. Mas não se ficou por aí, porque, apostado em evitar a repetição do crime, instou os criadores de porcos da região a trazerem os seus animais, incluindo as crias, para assistirem ao castigo. Na mente do justiceiro havia a convicção de serem os porcos capazes de entenderem e comportarem-se de acordo com a lei, privando-se de imitarem a infeliz congénere.
Décadas passadas ocorreu na Borgonha um caso semelhante: outra porca viu-se acusada de matar outro bebé e partilhá-lo com as crias no consequente festim. Reconhecida como culpada, depois de torturada, ficou registado em documento a sua confissão quanto à autoria do crime.
Numa conferência intitulada «Os animais perante a justiça: do castigo dos animais à responsabilidade humana»,  datada de 1966, Michel Rousseau detalhou que, ao longo de séculos sucessivos, esses julgamentos foram frequentes, assumidos pelas várias instituições capacitadas para os exercerem, desde os conselhos de aldeões aos parlamentos, sem esquecer a discricionariedade dos senhores feudais quanto ao veredito a emitir.. Mas era comum que o réu fosse aprisionado na companhia de vadios e outros meliantes.
Entre o século XIII e o século XVII a grande maioria dos animais sujeitos a julgamento  - há pelo menos trinta e cinco casos devidamente documentados - eram porcos, o que permitem concluir quanto à projeção antropomórfica dos humanos sobre esses animais, mas há, igualmente, que reconhecer a forte probabilidade de com eles ocorrerem acidentes com maior frequência por serem criados à solta em interação constante com as comunidades em que viviam. Além de pilharem as lojas ou devastarem jardins, facilmente derrubariam e agrediriam crianças, sendo considerados imputáveis quanto aos seus desvarios mais graves.
Conclui-se, assim, que, ao contrário do presente exercício do Direito, os animais da Idade Média eram julgados pelos seus atos, mesmo que os proprietários também se vissem obrigados a cumprirem uma peregrinação por não os terem controlado.

(DL) Na morte de Amos Oz


A última semana de 2018 trouxe a notícia da morte de Amos Oz e o consequente empobrecimento dos defensores da paz na região, porque, apesar de quase octogenário e vitimado por um cancro, o escritor era uma espécie de consciência moral de quantos discordam do rumo seguido por quem vem deslegitimando a herança de um povo, justamente admirado por tudo quanto sofreu, mas agora apostado em replicar com os vizinhos as malfeitorias sofridas em tantos séculos de História. Os crimes na Cisjordânia ou em Gaza têm sido tantos, que a comparação com o apartheid ou a escravatura ganham crescente sentido, quando se analisam as lutas de classes em Jerusalém, em Telavive e por todo o território disputado pelos dois povos, quer o atribuído a Israel em 1948 sob o beneplácito das Nações Unidas, quer o dos territórios ocupados de que os usurpadores não querem largar a mão.
Oz dizia estarem certos os que pelejam num e no outro lado. E também errados, porque judeus e palestinianos não têm mais para onde ir e a única solução será a de se entenderem na solução de dois Estados, que esteve tão próxima, mas ficou entretanto tão distante.
O escritor também desprezava a importância de correr mundo para mais facilmente se ser escritor. Bastava-lhe um olhar atento em volta para, nos rostos e reações dos presentes, encontrar matéria para inesgotáveis narrativas. Sobretudo sobre famílias infelizes, porque sabe-se bem como as outras, as felizes, não têm história. Oz confessava nunca se cansar de, num aeroporto ou num outro sítio onde pudesse observar o grande espetáculo do mundo, a tal tarefa se entregar.
A idade ia-lhe, entretanto, amaciando as antigas revoltas, sobretudo contra a mãe, que se suicidara tão precocemente, ou focalizadas no pai, incapaz de lhe impedir essa intenção. Por isso escolhera sair de casa aos 14 anos e trabalhar num kibutz, onde se fez socialista, mas tamb´m comprovou a impossibilidade de uma igualdade plena entre todos os elementos de um mesmo coletivo. Ser-se humano implica diferenciar-se de todos os demais, o que põe em causa a utopia de ver integralmente esbatidas quaisquer formas de diferenciação. Curioso era constatar a frequência significativa com que se via devolvido a essa vida comunitária, quando lhe acontecia recordar-se dos sonhos noturnos. Porque seriam mais fortes as vivências de muitas décadas atrás em relação às dos tempos próximos, também eles ricos em dissabores e ilusões, alegrias e irremediáveis perdas?
Nos últimos fulgores criativos escreveu sobre a própria família, recuando duas gerações para ir ao encontro dos antepassados dos anos 30, que intimidados pelo crescente antissemitismo europeu, emigraram da Europa para a Palestina, escapando assim ao morticínio da década seguinte.
Nunca fizera da guerra tema dos seus livros, apesar de ter combatido cinquenta anos atrás. Para escusar-se ao reencontro dos fantasmas nelas conhecidos, sob a forma de cadáveres estropiados ou de corpos assustadoramente feridos. E porque muito mudara desde então, transformando-lhe definitivamente a sua identidade.

sexta-feira, dezembro 28, 2018

(DL) O Romance Gráfico: 3ª parte - Jiro Taniguchi, Greg Thompson e Étienne Davodeau


A moda dos romances gráficos e o interesse por eles manifestados nos meios de comunicação, que tinham desprezado tão duradouramente os «livros de quadradinhos», incitaram os editores tradicionais a inclui-los nos seus catálogos, ainda que o género se tenha, então, banalizado. O romance gráfico parece convir particularmente à autobiografia, género em que se registaram os seus maiores sucessos. Abordemos alguns neste e noutros textos ulteriores.
«O Diário do meu pai» de Jiro Taniguchi (1994), é uma reflexão sobre os mistérios infantis, evocados pelo protagonista, Yoichi, que regressa à terra natal, dez anos depois de a ter deixado, para participar no funeral do progenitor. Durante o velório as conversas com familiares e amigos, permitem-lhe compreender melhor a sisudez de um homem, de cujo amor não se apercebera, e assim ficara depois de ter visto partir a mulher para outras alternativas de busca da felicidade.
«Blankets» de Greg Thompson (2003), contava a adolescência do autor numa aldeia conservadora do Wisconsin, sujeita a invernos muito rigorosos e a uma ideologia fundamentalista de matriz cristã, de que ele se dissociava ao optar pela solidão.
«Les Mauvaises Gens» de Étienne Davodeau (2005) passa-se num região católica e operária da França rural. Quando deixam a escola os adolescentes tornam-se operários na fábrica local, conhecendo penosas condições de trabalho. A vida parece cingida ao trabalho, à igreja e à vida familiar, até que alguns veem-se atraídos pela militância sindical. Percorrendo o espaço temporal entre o pós-guerra e a vitória socialista em 1981, a estória aborda o desejo de emancipação coletiva, com as decorrentes dificuldades, limites e esperanças. Evocando as vivências dos pais e de muitos amigos, Davodeau cria um interessante retrato do mundo operário e seus combates, que acaba por ser, igualmente, o das mudanças ocorridas em França durante esse período.

quinta-feira, dezembro 27, 2018

(HC) Da película fotográfica à câmara de filmar


No Festival de Cannes de 2017 esteve em foco o escândalo suscitado pelo filme coreano de Bong Joon-ho - «Okja» - por ser produzido pela Netflix, que cinge aos seus assinantes as obras em que investe. Ora, segundo a legislação francesa, se a Netflix estrear um filme nas salas de cinema terá de esperar três anos antes de o poder exibir na sua plataforma digital, razão para ter decidido sonegar o filme ao circuito de distribuição convencional.
O escândalo era esse: os distribuidores e os que exploram as salas de cinema viram na estratégia da Netflix uma provocação dada a quebra de espectadores , que lhes vem pondo em causa a rentabilidade do negócio. Deveria permitir-se que um festival de cinema selecionasse um filme condenado a nunca ser exibido onde ele deveria estar destinado? Dito de outra forma, será que um filme que não é visto nos cinemas pode ser considerado obra cinematográfica? Eis uma polémica própria do século XXI, que lembra uma outra ocorrida por altura da invenção do cinema, e às opções diferenciadas, então escolhidas por Thomas Edison e pelos irmãos Lumière.
Tínhamos visto os pioneiros da nova arte condicionados pelas suas placas de vidro fotográficas, incapazes de adaptarem-se às exigências da imagem animada. Em 1888, em Nova Iorque, um homem estava prestes a resolver-lhes o impasse e possibilitar um novo impulso, que tornasse possível o espetáculo cinematográfico. Chamava-se George Eastman e fabricava suportes fotográficos. A sua intenção não era acorrer em ajuda a Edison, Marey ou Reynaud, mas a de democratizar a fotografia. Não sonhava animar as imagens, mas meter uma câmara fotográfica nas mãos de cada compatriota. E não se tratava de tarefa fácil: até ao fim dos anos setenta do século XIX era necessário induzir uma emulsão química numa placa de vidro para conseguir um suporte fotográfico, obrigatoriamente usado na meia-hora seguinte sob pena de ficar inutilizado. E para o cliché seguinte teria de se reiniciar o mesmo processo de fabrico.
Desenvolveram-se então novos métodos à base de uma gelatina de brometo de prata, que possibilitou a Eastman a criação de placas secas prontas a serem utilizadas a partir de um armazenamento mais prolongado. Mas as câmaras fotográficas continuavam a ser volumosas e pesadas, enquanto as placas de vidro se revelavam muito frágeis. Ora,  Eastman queria que os clientes se limitassem a carregar num único botão, reservando para si a revelação das fotografias captadas.
John Carbutt teve, então, a ideia de substituir o suporte de vidro por uma invenção dos anos 50, o celuloide, que era um plástico artificial criado a partir de um nitrato de celulose e de cânfora. Tinha excelentes características: leve, transparente e menos frágil que o vidro. Ademais podia ser acondicionado em rolos, permitindo tirar várias fotografias de seguida sem ter de substituir a bobina. Em suma: o plástico era fantástico, mas tinha o grave  inconveniente de pegar facilmente o fogo de forma espontânea sem a intervenção de uma qualquer fonte de ignição. Não só se conservava mal, como acabava por se autodestruir. Apesar desses óbices, Eastman conseguiu um enorme sucesso com a máquina fotográfica, que já trazia a película incluída, a Kodak.
Quando Dickson e Edison constataram a existência do celuloide, acorreram à fábrica de Eastman para assegurarem a sua colaboração. Mas se o formato do fabricante de rolos fotográficos era o de 70mm, Edison considerou adequado o de 35 mm, que serviria de bitola nas décadas seguintes.
Ter rolos de película não bastava, porém, para as fazer desfilar por trás de uma objetiva e ter um filme. Se tal se tentasse só se veria uma imagem continuamente desfocada por esse movimento da película. Ora, cada fotograma deveria ser perfeitamente nítido.  Daí que se justificasse a exposição da película à luz, quando ele se imobilizava perante a objetiva. Uma vez obtida a captação, seria necessário esconder a película da objetiva até ao fotograma seguinte. E garanti-lo 24 vezes por segundo. Ou 16 ou 18 na época de Edison, quando ainda não se fixara esse padrão.
Em 1889 Dickson e Edison criaram orifícios de um e outro lado da película para que carretos pudessem assegurar-lhe uma movimentação contínua e uniforme, estabelecendo igualmente o padrão do formato tipo paisagem, mais largo que alto, com uma proporção de 4/3. Durante décadas ele seria o convencionado pela indústria do cinema, que só o alteraria para 16/9, quando surgiu a alta definição.
Restava definir o mecanismo, que permitiria o avanço intermitente da película. Para tal, Dickson adaptou sistemas utilizados na relojoaria, que funcionariam movidos por um motor elétrico e eletroimãs.

quarta-feira, dezembro 26, 2018

(DL) O Romance Gráfico: 2ª parte - E chegou o underground!


Nos anos 70 alguns autores norte-americanos dos comics procuraram demarcar-se da produção corrente alinhando-se com a via empreendida pela corrente underground da década anterior, que criara banda desenhada contestatária sob a designação de comix, sendo esse X conotado com os filmes decididos a não se curvarem perante nenhum condicionalismo. Foi com essa intenção, que Justin Green criou aquela que se considera a primeira autobiografia em banda desenhada: «Binky Brown meets the Holy Virgin Mary» e na qual denunciava como tivera os verdes anos estragados pela religião.
Se Richard Kyle já utilizara a expressão graphic novel na edição de novembro de 1964 da revista «Capa-Alpha», voltou a aparecer em 1976 através do George Metzger, que a ela recorreu como subtítulo de «Beyond Time and Again», uma história de ficção científica, que não conheceu, porém, grande impacto.
A obra decisiva, que consolidou o conceito de romance gráfico, foi «A Contract with God and Other Tenement Stories», de 1978, que ostentou na capa a expressão. Pelo formato, pela capa, pela estória, aparentava ser um romance : tinha muitas páginas, estava desenhada a preto-e-branco e, em vez de constituir um divertimento, pretendia testemunhar a situação histórico-social relacionada com a infância do autor num bairro pobre de Nova Iorque.
Estavam criadas as condições para a distinção entre os comics e as graphic novels. Para Eisner e os que se filiavam nas mesmas preocupações artísticas, a ambição artística era tão relevante quanto o sucesso comercial. E este poderia decorrer da comercialização nas livrarias, até então vedadas à venda de bandas desenhadas. A expressão graphic novel era um pretexto para nelas se fazerem aceitar.
Foram necessários uns dez anos para que o romance gráfico se impusesse nos Estados Unidos. Revelou-se decisivo o sucesso de «Maus» de Art Spiegelman, que ganhou o Prémio Pulitzer em 1992, com o relato do reencontro com o pai através do que ele escrevera durante o Holocausto.
Em França o sucesso da fórmula muito deveu ao editor de L’Association, Jean-Christophe Menu, que quis contrariar a regra «48CC», ou seja o álbum estereotipado, de capa cartonada, e com 48 páginas, das quais 46 a cores. Entre os títulos mais significativos do seu esforço avultam  «L’Ascension du Haut Mal» (1996) em que David B. contava a sua juventude junto do irmão epilético, ou «Persépolis» da iraniana Marjane Satrapi, exilada em França na sequência da Revolução Islâmica, de que dava o devido testemunho.

(DIM) «Sete Dias em Havana» de Benicio del Toro, Pablo Trapero, Julio Menem, Elia Suleiman, Gaspar Noé, Juan Carlos Tabio e Laurent Cantet (2012)


Alguns dos envolvidos na realização, na interpretação ou na própria escrita do argumento até são nomes estimáveis do cinema atual, mas o filme sabe a pouco e não se afasta de uma perspetiva estereotipada da realidade cubana, que costuma ser cingida às prostitutas, à vontade de emigrar, à dificuldade de comprar produtos alimentares ou ao misticismo afro-católico. Se a ideia era dar uma imagem positiva da terra de Fidel o resultado é o oposto, justificando-se a pergunta colocada por um crítico quanto ao que faria Ken Loach com tal desafio criativo.
Há um estudante de cinema norte-americano arrastado pelo seu condutor para o lado boémio da noite cubana quase acabando na cama com um travesti. Vemos Kusturica, sempre bêbedo, a cumprir os mínimos como convidado de um festival de cinema e a acabar a noite numa jam session, que comprova o talento musical do seu chofer. Há a escolha difícil de uma cantora, que não sabe se deve aceitar um contrato para atuar em Espanha, ou se seguir o companheiro na fuga para Miami. Elia Suleiman desembarca em Havana para um encontro com Fidel, mas apanha-o a meio de um dos seus intermináveis discursos, aproveitando a espera para olhar a realidade da cidade com o seu olhar sempre espantado. Num sketch sem palavras uma adolescente é surpreendida nos seus afetos sáficos com uma amiga e levada pelos pais a um feiticeiro para ser excisada. Uma psicóloga hospitalar mete um dia de férias para confecionar os bem remunerados bolos destinados a uma cerimónia religiosa, ainda encontrando disponibilidade para comparecer na rubrica televisiva em que dá conselhos comportamentais aos espetadores.  E, a acabar, há a tremenda Marta, que «viu» uma santa em sonhos a exigir-lhe a construção de uma fonte na sala de visitas e uma cerimónia de sagração, que envolve todos os vizinhos, convocados para tornarem possível essa exigência divina.
Sobre Havana nos dias de hoje haveria mais a enfatizar, porventura sendo dispensáveis muitos dos aspetos aqui relevados como significativos.

(DL) O Romance Gráfico: 1ª parte - Uma arte mal amada


O romance gráfico (ou “graphic novel”) não se limita a ser uma nova conceção da banda desenhada: é também uma criação mais feliz a nível lexical, essencial para a legitimação cultural de uma forma de expressão artística muito desprezada pelos meios intelectuais. Em França muitos consideravam-na insignificante, nunca tendo resultado as várias tentativas para lhe atribuírem um nome mais pertinente e digno. A escolha da designação «romance gráfico» constituiu uma vitória decisiva.
A expressão «banda desenhada» surgiu nos anos trinta do século passado, havendo quem a conote com a edição do diário socialista «Le Populaire» de 1 de junho de 1938, onde, na página 2, surgiu um pequeno editorial intitulado «Oscar Chic». O autor desse texto, provavelmente o redator Oscar Rosenfeld, explicava a necessidade do jornal ser lido pelos mais jovens, mais facilmente cativáveis por uma pequena banda desenhada diária, passível de, igualmente, cativar os adultos. Nos Estados Unidos eram conhecidos como comics por terem tido uma natureza humorística durante muitos anos, na Itália eram os fumetti, em Espanha chamaram-se historietas e no Japão os manga.
Nos anos 60 iniciaram-se os estudos universitários sobre essas publicações e sentiu-se a dificuldade em designar o objeto de estudo por um conceito abrangente e consensual. No número de março de 1964 do suplemento mensal da revista «La Vie Médicale» Claude Beylie propõs uma nova designação: «a Nona Arte».
Nos anos 70 desenvolveu-se uma variante destinada aos adultos, que apressou o debate sobre a forma de a dissociar da dedicada aos leitores indiferenciados. No primeiro número da revista «(À suivre)» o chefe de redação definiu-a como a que propiciaria a “irrupção selvagem da banda desenhada na literatura”. Surgiram aí as obras de Hugo Pratt, de Jacques Tardi ou de Didier Comès, que justificaram o lançamento de uma coleção de álbuns intitulados «Les romans (À suivre)», devido à sua maior extensão, às abundantes referências culturais e ao desenho a preto-e-branco.
É possível que o protótipo dessas histórias tenha sido «A Balada do Mar Salgado» de Pratt, onde surgira Corto Maltese pela primeira vez: Tardi e Forest logo o imitaram no tamanho da sua própria história, «Ici Même». A exemplo do autor italiano, a dupla francesa apostou em sessenta e três pranchas. O referido Pratt era defensor da expressão «literatura desenhada», ao lembrar-se de uma revista argentina com o mesmo nome, dirigida por Óscar Masotta.