sábado, junho 30, 2018

(P) Há Asas cobrirem-nos a indiferença em Palmela


Quando se trata de Teatro, com um T muito grande, é em Palmela, com O Bando, que mais facilmente o encontramos. Tenho-o dito e redito, e continuarei por certo a dizê-lo, porque cada vivenciar dos seus espetáculos tem constituído uma sucessão quase ininterrupta de surpresas, e até de magia.
Voltou a acontecer com «Os Pássaros», que estará em cena até domingo e mereceria por certo uma bem mais prolongada carreira se contássemos com autoridades culturais, capazes de promover a criação de públicos informados e persistentemente estimulados e não se limitassem a cumprir a função com a distribuição de parcos subsídios tarde e a más horas.
Mas, passemos á evocação do espetáculo, que começa com a notícia da queda de um ser alado, porventura relacionado com a morte de muitos pássaros nas últimas semanas. A rádio vai emitindo uma reportagem especial enquanto a caravana de automóveis, de pisca-piscas acesos, percorre a distância  entre a quinta do Vale dos Barris e o espaço ao ar livre onde, em modo de drive in, acompanhamos a evolução dos acontecimentos, que justificam o entusiasmo do locutor (pareceu-me ser a voz de Fernando Alves embora não creditado nos cartazes), a dirigir-se-nos como se estivéssemos, de facto, formatados incuravelmente pelo registo tabloide.
Nós, os caranguejos que víramos em vídeo a fazerem o mesmo trajeto automóvel, vemo-nos aliciados pelos muitos feirantes, que exigem moedas para acedermos a mezinhas milagrosas e nos aliciam com a possibilidade de vida eterna propiciada pelos Anjos. Convocado ao local do avistamento o padre cura não tem dúvidas quanto à impostura, dali zarpando com a rapidez de quem tem outras almas, crédulas de ilusões alternativas, a manter.
Por essa altura há muito estamos conquistados para a atmosfera de realismo mágico em que a encenação de João Neca Jesus nos mergulhou. Ele próprio, vestido de guarda fiscal, vai andando por ali a inquietar, mais do que a impor alguma normalidade (seja lá o que isso for...) ao conjunto de dezenas de personagens, ansiosos por que o homem alado desperte do seu sono e saia do buraco em que mergulhou.
Assim acaba por suceder, mas quando todos já foram dormir. Oportunidade para Guilherme Noronha voltar a revelar-se como um dos mais histriónicos (no melhor sentido) dos atores que podemos apreciar: ele é o pobre anjo caído dos céus, incapaz de cumprir todas as promessas, que quiseram atribuir-lhe como  estando ao seu alcance, mas,  a quem uma criança se dirige sem medo (como no clássico Frankenstein!)  e o ajuda a reganhar as alturas celestiais.
Estaria o caso encerrado? Seria descrer da inaudita capacidade dos humanos em se iludirem com todas as panaceias implausíveis para as suas frustrações. No regresso ao Vale de Barris, já nova reportagem bombástica se anuncia: uma mulher-aranha acaba de emergir das profundidades e trazer com ela a possibilidade de ressuscitar a felicidade perdida.
Como a noite ia alta já nos não foi lançado o convite para irmos à sua procura... mas , entre os presentes, ouvi disponibilidade para que isso pudesse suceder. É que as propostas de O Bando são tão estimulantes, que delas saímos a querer mais...

quinta-feira, junho 28, 2018

(DL) «Pela Estrada Fora» de Jack Kerouac - um livro para reler este verão


Em 22 de maio de 1951 Jack Kerouac escreveu a Neal Cassidy dando-lhe conta de ter concluído o relato da sua recente viagem pelo território norte-americano. Para a lenda ficaria a tese de tal texto ter sido escrito em apenas três semanas, ou seja entre 2 e 22 do mês anterior, nela havendo ao mesmo tempo algo de mentira e de verdade: por um lado Kerouac escrevera nesse intervalo temporal , e num ritmo frenético, a primeira versão, não a contemplando com parágrafos, ou capítulos, inspirando-se nos sons do bebop (totalmente em contracorrente ao swing das grandes bandas de jazz) nesse período. Confrontou-se, porém, com a escusa dos editores em lhe aceitarem uma escrita tão diferente da canónica, por muito que nela pressentissem o carácter vanguardista. Daí a razão para que o tenham instado a, durante seis anos, a retrabalhar até chegar à publicada.
Quando, anos depois, se encontrou num celeiro - e em circunstâncias propícias a um tratamento literário! - o célebre cilindro com o rolo ininterrupto, onde Kerouac registara de forma automática as memórias das suas experiências, puderam-se comparar ambas as versões concluindo-se que na primeira ele registara os verdadeiros nomes de alguns dos seus protagonistas em vez dos pseudónimos (ele próprio em vez de Sal Paradise, Neal Cassidy e não Dean Moriarty, Allen Ginsberg enquanto Carlo Marx e William Burroughs onde depois surgiria Old Bull Lee). Ademais algumas das principais cenas explicitas de sexo homossexual foram por ele retiradas do  relato final por as pressupor demasiado ousadas para os leitores desses anos cinquenta.
O romance foi, sobretudo, o texto fundador da beat generation, manifesto de uma geração cansada, até mesmo esgotada, pelas vicissitudes de então.  Truman Capote, um dos conhecidos detratores dessa inovação criativa diria que, em vez de literatura, Kerouac limitara-se a fazer um exercício de datilografia. Mas não conseguiria impedir muitos dos novos autores de replicarem um estilo, que se associaria a alguns dos principais contornos da contracultura da década seguinte.
Quem pouco aproveitaria desse reconhecimento seria o próprio Kerouac, que cairia numa depressão fatal, afastando-se dos antigos cúmplices, particularmente de Ginsberg, a quem acusava da ambição de se tornar numa figura pública. E quando o budismo virou moda, desgostara-se pelo papel que desempenhara na difusão dessa filosofia de vida...

(S) Rubinstein a interpretar o Prelúdio para Piano de Debussy

quarta-feira, junho 27, 2018

(DL) «Salvação», o mais recente romance de Ana Cristina Silva, é hoje apresentado na Gandaia


Esta noite, na sessão mensal da Associação Gandaia sobre Livros, Autores e Leitores, haverá a oportunidade de melhor se conhecer a escritora Ana Cristina Silva, que acaba de publicar o seu 12º romance: «Salvação».
Doutorada em Psicologia da Educação, área em que prossegue trabalho académico como investigadora, o romance constitui-lhe um desafio permanente tão distintos são os mecanismos de criação de artigos científicos em contraponto com os de teor literário.
Neste romance, escrito sob a influência dos atentados de 2016 em Bruxelas, que reavivam a convicção quanto à tendência de, em qualquer dos monoteísmos, mas também em quaisquer outras religiões, a busca de Deus significar invariavelmente extremismo e exacerbação da maldade, Ana Cristina Silva retoma o tema já desenvolvido num outro de 2008, «As Fogueiras da Inquisição», onde a perseguição aos Judeus era o fio condutor da narrativa por que passavam os seus personagens. Agora temos um médico judeu, que escapara à malignidade do Santo Ofício e, em fim de vida, se confronta com os demónios interiores. Mormente os das perdas irreparáveis e os relativos à perpetuidade do amor.
Não se trata propriamente de um romance histórico no que o género impõe como regra um melhor conhecimento do vivenciar de outras épocas. Pelo contrário privilegia os conflitos interiores por que passam os personagens e que são intemporais. Daí que, mais do que a época, é o seu contexto que irá influir nas preocupações de quem sente as contradições germinadas dentro de si mesmo por tudo quanto viveu.
Temos, pois, em perspetiva uma noitada estimulante, não só pelo que a escritora nos fará descortinar sobre a forma como analisa a nossa realidade - não esquecer que ela abordou noutros romances questões tão diversas como a violência doméstica ou os improváveis amores entre contrários -, mas também pelo que a participação dos presentes enriquecerá essa descoberta.

segunda-feira, junho 25, 2018

(OL) Quando outra solução não existe que não seja crescer em altura


Embora tenha estado várias vezes em Hong Kong só me calhou uma vez chegar aí de avião, aterrando no antigo aeroporto para depois aceder ao navio onde iria passar os meses seguintes a trabalhar.
Felizmente ainda não ocorrera o 11 de setembro porque, provavelmente, teria olhado para aquela experiência de, literalmente, ver o aparelho a passar incólume por entre arranha-céus em que facilmente embateríamos se a perícia do piloto não fosse a adequada.
Hoje já será vivência diferente, porque a engenharia incumbiu-se de exequibilizar um novo aeroporto na ponta de uma nova península artificial, mas nunca mais esqueci o desconforto de ver tão próximos os obstáculos, que poderiam precipitar o acidente aéreo.
Nos últimos vinte anos não regressei à antiga colónia inglesa, entretanto integrada na República Popular da China, mas , tanto quanto dá para ir acompanhando o que ali se passa, só se pode concluir que a velocidade das mudanças continua na ordem do dia. O antigo porto de pesca tornou-se numa megalópole que, dissociada do século e meio de ocupação europeia, procura afirmar a modernidade de todas as formas possíveis. Templo do comércio, o «porto dos perfumes» é, igualmente, uma cidade vertical com mais de sete mil arranha-céus. A exiguidade dos apartamentos é o principal problema dos seus sete milhões de habitantes, que chegam a garantir uma densidade populacional como não se encontra noutro qualquer lugar.

(DIM) «Pornocracia» de Ovidie (2017)


Durante dezasseis anos Ovidie trabalhou na industria do cinema pornográfico tornando-se numa das mais fundamentadas críticas da forma como ela entrou em declínio com a difusão gratuita de conteúdos pela net. Quão distantes vão os tempos - porém ainda recentes! - em que o negócio proliferava com a distribuição garantida pelos vários canais de venda de DVD’s ou de exibição em ecrãs especializados. Em quem ela entrevistou para este filme surge o consenso sobre as vantagens não negligenciáveis dos padrões desse passado definitivamente encerrado: esses conteúdos podiam ser mais facilmente restringidos a crianças e adolescentes, que hoje têm na net a sua deformada iniciação ao que significa uma sexualidade normal, porque ainda não tomada de assalto pela escalada progressiva nas mais inconcebíveis perversões. Hoje surgem profusas demonstrações das várias parafilias relacionadas com o sexo, que se arriscam a ser consideradas como normais pelas crianças e adolescentes, que as consomem. Ademais a mulher, que tanto tem porfiado pelos seus direitos, é normalmente tratada com violência, potenciando-se assim a imitação das agressões vistas na tela no relacionamento entre namorados, ou mesmo em situações de violações abjetas como é exemplo a mediática La Manada.

O filme de Ovidie vai, porém, mais longe e acaba por denunciar o negócio da Pornhub, YouPorn e outros sites do género como meras plataformas de branqueamento de capitais, razão porque funcionam economicamente através de paraísos fiscais e relacionam-se com fundos de investimento associados aos grandes bancos da City e de Wall Street.
O filme tem, pois, o condão de mostrar o capitalismo selvagem na sua expressão mais radical, mas bem real: atores, e sobretudo atrizes, sujeitos a jornas infindáveis por magros salários, o desconhecimento da identidade dos mafiosos, que exploram o negócio e lhe recolhem os escandalosos lucros e a indiferença dos poderes públicos em regularem uma atividade, cujos danos são imprevisíveis, quer economicamente, quer nas deturpadas «lições», que dão a quem do Amor ainda não descobriu que os sentimentos são bem mais relevantes do que a mecânica dos corpos em interação.

(DL) «Uma Casa no Planalto» de Erskine Caldwell


Há quem considere que a obra literária de Erskine Caldwell entrou em declínio depois da Segunda Guerra Mundial, quando regressou do leste europeu onde estivera como repórter. Mas convenhamos que, em plena Guerra Fria, a crítica motivada por preconceitos ideológicos passou a olhá-lo de esguelha devido à nunca negada simpatia do autor pelos ideais comunistas. Razão que explica o facto de, antes do 25 de abril, ele ser lido atentamente por quem buscava a queda do salazarismo, e depois ter encontrado pouco interesse dos editores maioritariamente avessos a porem nos escaparates os títulos, que pudessem estimular o mesmo tipo de ânsias transformadoras.
«A Casa do Planalto» surgiu em 1946 e passa-se naquelas zonas rurais da Geórgia onde a antiga aristocracia algodoeira, mostrada no seu esplendor em «E Tudo o Vento Levou», já degenerou o bastante para revelar-se ainda mais odiosa na opressão dos negros e dos brancos pobres, porque acicatada pela noção de se sentir à beira de empurrada para os caixotes do lixo da História. Ademais a riqueza de outrora vai sendo consumida nos seus vícios, sobretudo nos do jogo, que os torna fáceis presas dos bancos aos quais tudo vão hipotecando.
Lucyanne teve a má sorte de deixar-se seduzir por um desses latifundiários falidos - Grady Dunbar - e mudar-se, contra os conselhos paternos, de Atlanta para a zona rural onde ele tem a decrépita mansão. Desprezada pelo marido, insultada pela sogra, tudo faz para reverter a situação, fazendo-se aceitar por um e por outro. Mas as humilhações constantes não bastam para a convencer do erro até encontrar Grady na barraca de uma das criadas negras, dando continuidade ao hábito dos senhores das terras considerarem normal tomarem as empregadas de cor como recetáculos do seu sémen. Desesperada, a rapariga tenta fugir para tão longe quanto possível dali, esfarrapando o vestido em cercas de arame farpado até ser recolhida em casa de Woody Harrison, um dos capatazes da quinta.
Criam-se então as condições para um triângulo amoroso, porque Brad, o filho de Woody, está enamorado da patroa e quer impedir Grady de a recuperar, tanto mais que lhe adivinha os propósitos agressivos. E tem a concorrência de outro Dunbar, Ben, o primo de Grady, que se formara em advocacia e se tornara defensor dos negros nos processos judiciais que os motivavam a cessar com as injustiças de que eram alvo. O futuro da rapariga passará por um deles.
Numa progressiva escalada de tensão tudo se resolverá na noite em que o jogador a quem Grady deve dinheiro o vem procurar e ambos se matam a tiro, deixando o trio entregue ao que se seguirá. E o revoltado Brad verá Lucyanne dele desinteressado, compreendendo-se preterido pelo estigma da sua pobreza.
O menos interessante nesta abordagem da luta de classes no sul racista dos Estados Unidos reside no arrependimento de Grady quando, moribundo, pede perdão à maltratada esposa pela forma como a destratara. Convenhamos que esse remorso é pouco credível em quem passara todo o romance a portar-se como um pérfido biltre.

(S) A Stabat Mater de Pergolesi dirigida por Nathalie Stutzmann e com Philippe Jarousski

(DIM) Cinemateca, 25 de junho de 2018


Nesta segunda-feira, como de costume, as salas da Cinemateca irão propor filmes interessantes, bastante diferentes dos que nos vão sendo servidos pela maioria dos salas de cinema das grandes distribuidoras ou pela televisão.
Às três e meia a sessão junta dois filmes de António Pedro de Vasconcelos: «Adeus até ao meu regresso» é de 1974 e recorre à conhecida fórmula usada por muitos militares portugueses que, em plena Guerra Colonial, enviavam mensagens natalícias à família a partir dos seus quartéis nas ex-colónias. A partir daí temos uma abordagem dessa experiência numa altura em que ainda se discutia o modelo por que passaria a descolonização.
«A Voz e os Ouvidos do MFA» foi um documentário produzido pela RTP em 2016 e que explicita a preparação logística do movimento militar que resultaria na Revolução de Abril.
As 19 e às 21.30 prossegue o ciclo dedicado ao Cinema e à Fotografia com cinco filmes muito diferentes entre si, mas tendo como traço comum a imagem fixa ou em movimento, ou a conjugação entre as duas.
«Capitalism Slavery» de Ken Jacobs (2007) dá a ilusão de movimento a imagens fotográficas de trabalhadores do século XIX a colherem algodão, ganhando com tal tratamento uma dimensão histórica.
«Uma Imagem» de Harun Farocki (1983) mostra como se prepara em estúdio uma fotografia de capa para a revista «Playboy».
«Natureza Morta» do mesmo realizador, mas datada de 1997, mostra como a publicidade tenta reproduzir naturezas mortas com os meios tecnológicos e estéticos atuais embora tomando como referência os trabalhos dos pintores flamengos do século XVII.
Nesse mesmo ano o holandês Johan van der Keuken rodou «To Sang Fotostudio» sobre um chinês a residir e a trabalhar em Amesterdão, que acolhe no seu estúdio clientes das mais variadas nacionalidades, muitos dos quais seus vizinhos nesse mesmo bairro.
De 1958 data «Weddings and Babies», filme de Morris Engel focado num casal que é contratado para casamentos, ele como fotógrafo e ela como sua assistente e com perspetivas muito distintas sobre a possibilidade de se comprometerem afetivamente mais a sério e virem a ter filhos.
Noutro ciclo, dedicado ao cinema suíço, apresenta-se «Fogueira que Arde nas Alturas» de Fredi M. Murer (1985) sobre a vida de uma família de camponeses a viver nas montanhas e que Frederico Lourenço considerou deslumbrante quando o viu pela primeira vez.

sábado, junho 23, 2018

(OL) A estrada M31 como desafio para viajantes atraídos por exotismos orientais


Em 1932, quando a estrada M31 foi concluída, o regime soviético pretendia facilitar as vias de comunicação da capital com as repúblicas da Ásia central, fazendo chegar aí, de forma mais incisiva, a sua influência política e ideológica.
Apesar de estar em más condições em muitos dos seus troços ela constitui um desafio para quem decide nela viajar ciente de encontrar bastos motivos de surpresa e de encantamento. Nomeadamente quando se chega ao lago Issy-Koul com as suas águas cristalinas e o pavilhão consagrado ao grande escritor Tchinguiz Aitmatov, ou aos montes Pamir com os seus cumes acima dos sete mil metros de altitude. Mas também pode constatar a progressiva penetração dos interesses chineses nessa vasta geografia com o trânsito contínuo de camiões, levando matérias-primas para leste e de lá trazendo os bens de consumo vistosos e baratos, que enchem os mercados e as lojas de Duchambé ou de Bichkek.

sexta-feira, junho 22, 2018

(OL) O calvário de Raluca


Durante quinze anos Raluca sofreu agressões e humilhações consecutivas do marido até ao dia em que decidiu defender-se dando-lhe uma facada letal. Condenada por homicídio a sete anos de prisão, viu-se afastada de quem mais adorava: os filhos.
Na Roménia a violência doméstica é um flagelo endémico e o caso de Raluca está longe de ser uma exceção. Para centenas de mulheres, hoje aprisionadas por terem matado os maridos as circunstâncias são quase sempre as mesmas: pobreza, casamento precoce, alcoolismo do marido, agressões aos filhos.
O seu ato desesperado de Raluca acabou por ser a única saída para um inferno, que lhe transformava os dias num doloroso calvário.

(S) Netrebko e Domingo a interpretarem «Macbeth» em Berlim


Grande acontecimento lírico  deste final de primavera é a da versão do Macbeth de Verdi no Staatsoper de Berlim, com Anna Netrebko e Placido Domingo nos papéis do célebre casal shakespeariano e Daniel Barenboim na direção da orquestra e do espetáculo. O sucesso deste projeto artístico é tão evidente que as récitas programadas para esta temporada de 2018 já estão totalmente esgotadas.
A trama é bem conhecida : depois de um combate vitorioso três feiticeiras aparecem ao general Macbeth anunciando-lhe que virá a ser rei da Escócia.  Entusiasmada com tal predição a mulher do general incita-o a assassinar o rei Duncan para o substituir no trono, mas esse plano implica eliminar igualmente o seu amigo Banquo.
Acometido de remorsos, tanto mais que se vê assombrado pelos assassinados, o casal vai mergulhar numa vertiginosa loucura psicopata.
Para mostrar-se tão fiel quanto possível a Shakespeare, a quem dedicava uma admiração incondicional, Verdi abanou com as convenções da época para criar uma das suas obras mais sombrias. Mais condensada do que a original a intriga centra-se em menos personagens, tendo  particular enfoque na Lady Macbeth, mas com assinalável participação do coro, que transmite a fúria dos oprimidos em contraste com as árias do duo protagonista, reveladoras da sua progressiva descida aos infernos.

quinta-feira, junho 21, 2018

(DIM) «Os Hannas» de Julia C. Kaiser (2016)


Embora contenha uma das cinematografias mais interessantes na Europa atual a Alemanha pouco aparece representada nos filmes que, semanalmente, vão estreando nos nossos cinemas. Daí que, para irmos acompanhando o que ali se vai produzindo, tenhamos que recorrer ao canal franco-alemão ARTE. Esta noite é ali mostrado «Die Hannas», a segunda longa-metragem de Julia C. Kaiser, que dera o passo das curtas para filmes de maior duração com um bem conceituado «Floating».
Desta feita encontra-se o casal formado há quinze anos por Anna e Hans, que parecem tão fusionais na sua relação que os amigos costumam designá-los pelos «Hannas». Sobretudo por partilharem a mesma paixão pela comida.
Só que duas irmãs, Nico e Kim, vão perturbar-lhes as rotinas.  Hiperativas, elas vão clandestinamente relacionar-se sexualmente com ambos, Nico com Anna e Kim com Hans. De súbito são os ardores da paixão, que voltam a animar os Hannas, embora não tardem a descobrir o lado sombrio das duas mulheres.
O filme tem a ver com a aceitação de si mesmo e a compatibilidade entre a emancipação individual e as relações duradouras.
A crítica considerou o filme comovente e divertido... 

(S) A Sinfonia nº 35 de Mozart (a «Haffner»)

(DIM) «O Leopardo» de Luchino Visconti


A primeira vez que Luchino Visconti desembarcou na Sicília foi para rodar um documentário sobre a luta de classes. Anos depois, ele que era um aristocrata com ideias de esquerda, regressou para fazer um filme memorável sobre a decadência da nobreza local, tornando inesquecível a frase: «se queremos que tudo continue igual, teremos de mudar alguma coisa».
A Sicília, que quis testemunhar, era a do palácios com paredes de cor pastel e, no interior, com frescos dourados, vendo-se das suas janelas, ou varandas, as montanhas áridas a perder de vista ou o azul do Mediterrâneo. No fundo é a Sicília barroca, que Lampedusa descreveu no seu romance «O Leopardo», reproduzindo o que ele próprio conhecera, porquanto nascera no seio dessa mesma decadente aristocracia da ilha. Visconti, que quase se sentia um gémeo do escritor, por partilhar com ele as mesmas origens, só podia ficar rendido à possibilidade de adaptar essa obra literária ao cinema.
Foi na Villa Boscogrande, no noroeste da ilha, que Visconti instalou a equipa de filmagem, fazendo-a residência do seu protagonista, o príncipe Fabrizio de Salina, cuja lucidez impressiona por se sentir o  derradeiro símbolo de um mundo em acelerada mudança, onde já não faria qualquer sentido a ostentação de poder e de riqueza, que esse palácio comportava.
Construído no século XVIII por inspiração de Versalhes, tratava-se de um local excecional pela elegância do décor. Ideal para explicitar o seu carácter de bolha onde essa aristocracia se enclausurava para defender-se de tudo quanto se passava no exterior do seu parco domínio.
Uns quantos quilómetros para sul Visconti «descobre» em Cimina a residência de verão da família Salina, que se torna num outro local da rodagem do filme. Decorrerão aí algumas das cenas mais explicitas do confronto entre a degenerescência da classe feudal e a voracidade da ambiciosa burguesia, que a quer substituir enquanto fulcro do poder político, económico e social. Nas cores em permanente mudança, devido à alternância do sol com a passagem das nuvens, revela-se a violência latente da paisagem.
Na tradição do neorrealismo italiano Visconti fundamenta-se nesses contrastes para criar uma estética com um sentido poético. De um lado a beleza bruta das ruas populares, do outro a exuberância barroca da Igreja Santa Maria Madalena associada à aristocracia. Tão só chegada à aldeia de veraneio, logo a família do príncipe procura-a para assistir à missa. A procura da intemporalidade do poder divino surge-lhe como porto de abrigo para as mudanças, que adivinha incontornáveis.
Enquanto os nobres vão-se acantonando no passado nos refúgios dos seus domínios provinciais, a capital, Palermo,  está a ferro e fogo: em 1861 as tropas de Garibaldi vencem a luta pela unificação de toda a Itália derrotando as tropas dos Bourbons. Nalgumas cenas o realizador quis reproduzir fielmente imagens icónicas dessa Revolução.
A apoteose final do filme de Visconti, com a cena do baile, foi rodada no Palácio di Gangi, onde a sala dos Espelhos acaba por ser o espaço de revelação dessa transformação consumada em que um casamento servirá de elo de ligação entre a antiga classe dominante e a que lhe tomará o lugar aglutinando-a.

quarta-feira, junho 20, 2018

(DIM) «A Noite de Varennes» de Ettore Scola (1982)


Em maio de 1981 a eleição de François Mitterrand para o Eliseu parecia tornar possível uma transformação tão decisiva na política europeia quanto a ocorrida quase dois séculos antes, quando o povo de Paris tomara a Bastilha e lançara o início da Revolução Francesa. Os que então embandeiraram em arco não tardariam a ficar dececionados com o quão pouco mudaria com essa presidência socialista, que só contribuiu para uma maior consolidação dos interesses dominantes em detrimento dos que poderiam aspirar a melhorias significativas na sua qualidade de vida.
Na reflexão que Ettore Scola faz a respeito dos acontecimentos de 1791, e que se poderia imaginar positivamente contaminada por essa vitória recente da esquerda francesa, há a amarga premonição do que viria a suceder, porque mais do que os homens a mudarem a realidade, pressupõe ser esta a transformá-los, gerando uma nova sociedade, que acaba por não se revelar melhor do que aquela que veio substituir.
A exemplo do que víramos em «Um Dia Inesquecível», Scola começa por nos dar uma contextualização da história que iremos ver a seguir, recorrendo desta feita a um artifício de feira ambulante (a camera oscura). É assim que nos é dado a saber o que ocorrera nos dois anos anteriores a este dia 21 de junho de 1791, data em que a narrativa se enceta quando Restif de la Bretonne se apercebe da estranha carroça, que sai do Palácio Real e toma a direção da fronteira com o Luxemburgo. Mas, mais do que a reconstituição histórica, Scola quer-nos envolver no espírito dessa época, quando os debates políticos eram intensos no seio de uma turbulência social quase caótica. Estavam em causa temas como a liberdade de expressão, as desigualdades, as convulsões sociais, a brutalidade e o lado trágico dos conflitos.
O pretexto para explorar todos esses temas levou Scola a optar pelo road movie focalizado nesse escritor libertino com espírito de repórter, que não descansa enquanto não descobre o destino da tal carroça. Depressa acompanhado de outro conhecido sedutor, Casanova, conseguem lugar numa diligência, que abriga no seu microcosmos, toda a realidade social da época nas suas diferentes classes, porque abriga gente da nobreza, da burguesia e do povo, todos eles com as respetivas opiniões a respeito do que se passa à sua volta.
Ao contrário de Restif de la Bretonne, que está conquistado para a causa revolucionária, Casanova é um símbolo do Antigo Regime. Velho e cheio de apetite - mas já não o de cariz sexual -, ele exprime a indignação dos que não se conformam com a perda dos privilégios e mostra-se incapaz de compreender aquele mundo em transformação.
Outro intelectual presente, o americano Thomas Paine, é o estrangeiro fascinado por tudo quanto veio descobrir deste lado do Atlântico, que tanto o impele a aceitar as mudanças, como o confronta com as suas ambíguas contradições.
A condessa Sophie de la Borde, dama de companhia de Maria Antonieta a quem procura juntar-se, sente uma irreprimida compreensão por tudo quanto está a virar do avesso o seu mundo ao qual não deixará, porém, de manifestar fidelidade.
A viúva que tem vinhas e se mostra racista - sugere a conhecida Veuve Cliquot - é, igualmente, contraditória, porque tão só vê a oportunidade de uma derradeira e fogosa aventura amorosa logo sente atração pelos novos valores, que tendem a tornar obsoletos aqueles que sempre tinham sido os seus.
O cabeleireiro pederasta simboliza aqueles que vindos das classes inferiores, ficaram rendidos ao convívio próximo com os que consideravam poderosos e olham os que haviam ficado cingidos ao espaço social donde tinham ascendido como sendo «feios, porcos e maus»...
E há Emile, o jovem estudante radical, que viaja no teto da diligência e cujo radicalismo intolerante já anuncia o período que se seguiria, aquele que se designaria como do Terror. É ele quem melhor representa o inconformismo popular com uma Revolução, que muito prometera, mas pouco propiciara. Razão para dar um salto em frente mais ousado, porque recorreria intensamente ao uso da guilhotina.
Em suma, num filme com um naipe prodigioso de grandes nomes do cinema a interpretarem os diferentes personagens, temos a abordagem da eterna luta entre o Velho e Novo, que continua tão atual na nossa contemporaneidade.