segunda-feira, agosto 31, 2015

ESCÁRNIO E MALDIZER: para acabar de uma vez por todas com ... valter hugo mãe

Há uns anos apostava fortemente em valter hugo mãe para vir a ser o grande escritor português deste século XXI. «O remorso de baltasar serapião», «o apocalipse dos trabalhadores» ou  «a máquina de fazer espanhóis»  sugeriam uma escrita original e histórias tanto mais interessantes quanto atentas às circunstâncias sociais em que se inseriam.
Ao ser galardoado com o Prémio José Saramago, via-se muito justamente reconhecido pelo nosso Nobel, que teve para com ele palavras bastante elogiosas.
Aconteceu então o que não esperava: primeiro com «O Filho de Mil Homens» e, mais recentemente, com «A Desumanização», valter hugo mãe entrou numa nova fase em que as personagens já pouco têm a ver com a identidade lusa, porque ambicionam atingir o patamar da universalidade.
Desconheço se isso teve algum efeito, mas o reconhecimento público que valter passou a conhecer no Brasil parece tê-lo influenciado no sentido de uma «paulocoelhização» acelerada. E por isso os seus livros passaram a ser muito menos interessantes.
A cereja em cima do bolo aconteceu, porém, há alguns dias atrás, quando o instaram a comentar a atualidade política e, nomeadamente, as escolhas eleitorais que em breve se tomarão. Resposta do escritor: não se interessa pela política cá do burgo, que lhe parece coisa de somenos importância.
Estamos, pois, esclarecidos: esse tipo de resposta tem normalmente uma conotação e não é propriamente a de querer mudar o que de tão dramático está à vista de todos.  Conhecemos bem a quem servem os supostos apolíticos! 

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: Dennis Hopper e a atração incontornável da cocaína (1)

Num dos seus números deste verão a revista francesa «L’Obs» publicou um longo artigo de François Forestier sobre Dennis Hopper e os efeitos nele produzidos pela cocaína.
É claro que o li com a devida atenção ou não tivesse, eu próprio, admirado esse rebelde da contracultura, quando vi pela primeira vez «Easy Rider» nos inícios da década de 70. E, no entanto, esse autoproclamado génio, que nunca deixaria de ser um dos grandes ícones da geração hippie, viria a ter uma vida assaz turbulenta, mergulhado nas drogas e num alcoolismo, que o levou inclusivamente a embriagar-se com after shave.
Houve até quem dissesse da forte probabilidade de o ver a fumar excrementos de camelo se lhe garantissem efeitos alucinogénios.
Em múltiplas entrevistas ele reivindicava o direito a só funcionar à base de mescalina, coca, erva, LSD e outros psicotrópicos ilegais.
No artigo em causa, Forestier relata uma cena típica do comportamento de Hopper, passada durante umas filmagens no Peru: da varanda do hotel urinou sobre uma fanfarra, que por ali passava na rua, vomitando depois sobre o maestro.
Instado a explicar-se encerrou-se no quarto, porque julgou-se perseguido pelos nazis provenientes da Galáxia do Norte, escondendo-se debaixo da cama. No entretanto já disparara para o lavatório com a sua Magnum 44.
Regressado a Los Angeles, mudou cinco vezes de táxi entre o aeroporto e a sua residência, onde entrou a disparar contra um quadro de Andy Warhol, com as célebres sopas Campbell, que comprara por 75 dólares.
Mais tarde o pintor deslocar-se-ia à cidade dos anjos para assinar o quadro junto às perfurações ali abertas pelas duas balas, aumentando assim exponencialmente o valor do mesmo.
Não espanta que tal comportamento tivesse como resultado a necessidade de trabalhar continuamente para suportar as enormes despesas com as suas dependências. Na longa filmografia conta com mais de cento e cinquenta títulos, a maior parte dos quais com uma qualidade mais do que discutível. E sempre com histórias mirabolantes quanto às suas conflituosas relações com os realizadores.
Entrevistá-lo constituía séria provação para a maioria dos jornalistas, já que se punha a acusá-los, ora de serem espiões a soldo do FBI, ora de lhe estarem a tentar engatar a namorada de ocasião.
Foi, igualmente, excessivo nas relações amorosas: casou cinco vezes e todas as esposas tiveram a sua dose de violência doméstica traduzida em impressionantes nódoas negras na cara. Como pai, também raramente deu atenção a qualquer dos filhos.
No próximo texto recuaremos no tempo e veremos como evoluiu a partir do nascimento em 1936 numa pequena cidade do Kansas.

domingo, agosto 30, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: «Os Extremos» de Christopher Priest (II)

No texto anterior já apresentara a protagonista deste romance de Christopher Priest: aos 43 anos, recém-enviuvada, Teresa Gravatt volta a Inglaterra, onde vivera na infância, para compreender o que se passara em Bulverton no dia da morte do marido: a exemplo do sucedido no Texas um psicopata pusera-se a disparar sobre todas as pessoas ao seu alcance matando vinte e três.
Nick, o proprietário do hotel, explica-lhe o seu estado depressivo: “o engraçado é que os que morreram é que escaparam. Porque não tiveram que viver com isto depois. Às vezes, sobreviver é pior que estar morto. As pessoas sentem-se culpadas por terem sobrevivido, quando um amigo, um marido ou mulher morreram.” (pág. 93)
Partilhando confidências Teresa conta-lhe ter perdido o marido num tiroteio quase idêntico. O assassino chamava-se Luther Aronwitz e era uma réplica de Gerry Grove. Por isso estava ali, para perceber se tudo não passara de uma coincidência ou se haveria explicação mais racional. Além de agente do FBI, Andy era mais do que isso: estudava a psique dos serial killers, mormente os estímulos capazes de despoletar as suas intenções assassinas.
Os dias passam e Teresa começa a pôr em questão a presença ali: Bulverton “era uma cidade costeira monótona, cansada, infeliz, cheia de más recordações e sem uma conceção de futuro. A verdadeira Bulverton estava a enfraquecer-lhe a determinação, fazendo com que pensasse em Andy mais do que queria ou precisava. E então perante as perdas que algumas daquelas pessoas tinham sofrido não ajudava nada. Não se sentia confortada por elas e a inutilidade desoladora de tudo o que acontecera, a fútil perda de vidas, o niilismo estúpido e trágico do atirador só sublinhavam a sua tragédia pessoal.” (pág. 156)
No mesmo hotel onde Teresa está alojada, também surgem quatro executivos de uma empresa de Taipé, a GunHo Corporation, que a convidam a sair daquelas paragens e, sobretudo, a não utilizar os serviços propiciados pela ExEx.  Porque eles estavam a criar o programa virtual sobre os crimes de Gerry Grove e ela poderia contaminar-lhes o trabalho com as suas perguntas e até com a sua presença.
Obviamente que ela rejeitará essas pressões e até se torna cliente mais assídua da empresa de entretenimento. “ Por essa altura, já Teresa pesquisara o catálogo de cenários vezes suficientes para conseguir encontrar rapidamente aquilo que queria, mas a enorme extensão da amostra de software e a complexidade da própria base de dados ainda a intimidavam.
A sensação de infinito por descobrir provocava-lhe um sentimento maravilhoso de liberdade, dificultando-lhe as escolhas. Cada vez que fazia uma nova seleção, aparecia uma outra variedade de opções ilimitadas em que todas se desdobravam ainda em mais escolhas, cada uma proporcionando vários níveis de opções infinitamente variadas e detalhadas; cada uma dessas seleções  era um mundo próprio notavelmente completo, cheio de ruídos, cor, movimento, incidentes, perigo, viagens, sensações físicas.” (pág. 197)
Por esta altura do romance Teresa ainda não suspeita as experiências, que irá viver. E em que os dois lados do espelho, o exterior e o interior acabam por se tocar bem mais do que julgaria alguma vez possível... 

SONORIDADES: «Juneteenth» de Stanley Cowell

Em 19 de junho de 1865 os escravos do Texas receberam a notícia da sua emancipação, promulgada por Abraham Lincoln … dois anos antes!
Stanley Cowell pôs-se ao teclado do seu piano e fez uma reflexão musical sobre tal caso, que mereceu de Barack Obama um vibrante discurso: “Enquanto as pessoas se odiarem por causa da cor da sua pele não podemos afirmar que o nosso país esteja a ser fiel aos seus ideais. Mas o Juneteenth nunca foi a celebração de uma vitória ou a admissão de que as coisas estão bem como estão. Ao invés, celebra o progresso”.
O pequeno filme aqui linkado dá uma ideia do tipo de sonoridade com que Cowell quis evocar a data. 

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: «Regresso a Casa» de Zhang Yimou

Será «Regresso a Casa» um filme tão desprovido de qualidades como certa crítica defendeu aquando da estreia do filme no mês transato?
O politicamente correto manda dizer mal de quem se deixou conotar com o regime de Pequim, parecendo abandonar a irreverência de tempos idos. E, de facto, Zhang Yimou pôs-se a jeito ao aceitar a direção dos espetáculos de abertura e de encerramento dos Jogos Olímpicos de Pequim. Mas não se ouviram, então, elogios enfáticos à conceção de tão impressionantes movimentações de milhares de figurantes e do recurso a meios videográficos tão encantatórios?
Há motivos de interesse mais que justificados se quisermos ser objetivos para com este melodrama sobre um velho opositor ao regime, que regressa do campo de trabalhos forçados e reencontra a filha que o traiu, e sobretudo a mulher incapaz de o reconhecer, apesar de se manter fiel ao amor àquele que, há muito tempo partira. Convenhamos, que há aqui uma explicita condenação aos métodos mais autocráticos do regime, quando atingiu a dimensão mais aguda do delírio ideológico em que se sustentabilizava.
Então de que acusam Zhang Yimou? Em primeiro lugar por explicitar a capacidade técnica, mostrando-se competente na gestão da carga emotiva suscitada pelas relações entre as personagens.  Depois, há quem não tenha gostado da cuidada fotografia de quase todo o filme.
Mesmo não sendo título tão indiscutível quanto alguns outros dos realizadores da sua geração, Zhang Yimou demonstra razões bastantes para continuarmos atentos à sua filmografia. 

DIÁRIO DE LEITURAS: «Os Extremos» de Christopher Priest (I)

O meu gosto pela ficção científica vem do tempo das traduções de Eurico da Fonseca para a coleção Argonauta. Viviam-se, então, em pleno as aventuras das missões Apollo e perspetivavam-se como possíveis as viagens interplanetárias já para este século.
As realidades orçamentais e o fim da Guerra Fria fizeram-nos chegar ao ponto em que estamos: conformados com a probabilidade de tal hipótese só se concretizar daqui a uns quantos séculos.
Por isso mesmo o género foi mudando, com o abandono da antecipação científica e a exploração de outras vias que implicaram, igualmente, uma maior preocupação literária do que propriamente imaginativa.
No caso de Christopher Priest a intenção de conciliar a consistência da história com um estilo mais exigente, tornaram-no num dos escritores mais reconhecidamente talentosos no género. E com a exploração do potencial filosófico de uma eventual evolução das tecnologias relacionadas com o entretenimento.
A protagonista do seu romance «Os Extremos», datado de 1998, é Teresa Ann Gravatt, que cresceu numa base aérea inglesa e, aos sete anos, tinha um espelho por onde imaginava ver outro mundo.
“Para ela, o mundo que conhece é um sítio, e aquele que imagina é outro diferente” (pág. 8)
No espelho ela vê uma sala idêntica àquela onde está e outra rapariga exatamente igual a ela, mas a quem chama Megan.
Mas, um dia, pega na pistola que o pai guarda na gaveta de um armário e dispara contra o espelho. “Uma pequena vida de sonhos chega subitamente ao fim”. (pág. 11)
Damos, então, um salto no tempo para a encontrarmos com 43 anos, a trabalhar para o FBI, mas a sofrer o desgosto de ter perdido o seu amado Andy - colega de profissão - num tiroteio no Texas.
Ficando de licença durante algumas semanas ela decide voltar às paisagens da sua infância, alojando-se num pequeno hotel - o White Dragon -  em Bulverton, uma aldeia costeira do Sussex.
Mas a sua presença ali não tem nada a ver com a necessidade de descomprimir do seu desgosto ou reencontrar a satisfação propiciada pela nostalgia de uma infância perdida: no mesmo dia em que Andy morrera, também ali ocorrera um massacre semelhante, como se existisse algum elo de ligação entre os dois psicopatas homicidas.
Em Nick Surtees, dono do hotel, ela encontra alguém que vivera esse acontecimento indiretamente, pois vivia longe dali, e só regressara porque os pais tinham figurado entre as vítimas. Tomar conta do negócio familiar representara para ele uma solução óbvia.
Mas é em Amy, a companheira de Nick, que Teresa encontrara alguém com conhecimento direto do sucedido: ela fora uma das sobreviventes da tragédia em que um homem armado chamado Gerry Grove parecera ter enlouquecido no centro da cidade e começara a disparar sobre todos quantos avistava, incluindo nos que conduziam os veículos que por ele passavam.
Para Teresa o contacto direto com crimes decorrera sobretudo dos testes realizados num simulador do FBI, onde os agentes treinavam as suas reações em cenários de homicídio: “A primeira experiência extrema durou exatamente sete segundos, e durante esse curto período de tempo, Teresa ficou fascinada e desorientada com aquela inundação de sensações. Algumas eram físicas, outras mentais.”
No próximo texto iremos ver como Teresa decide investigar quem era esse Gerry Grove... 

quinta-feira, agosto 27, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: «A Imensa Boca Dessa Angústia e outras histórias» (II)

A coerência ideológica sempre foi uma das grandes características de Urbano Tavares Rodrigues. Muito embora reconhecesse a distância entre a teoria generosa, que perfilhava, e as sangrentas praxis, a ela associadas, o escritor nunca deixou de defender uma sociedade diferente, onde a desigualdade de direitos e de rendimentos não atingisse limiares tão obscenos como os do capitalismo selvagem desta fase das nossas vidas.
Essa ânsia de utopia quase se assimila a um sonho infantil, como o que transparece em «Pézinhos de lã», personagem que acaba a construir “a cidade dos sonhos, onde todos comiam, bebiam e folgavam e se pareciam uns com os outros, irmãos da luz e da alegria”.
A impossibilidade de ver realizada a sua utopia levou-o a conjeturar estratégias dissonantes com as da ortodoxia comunista: em «Sarabanda da Morte» manifesta simpatia pelo assassino em série de governantes, parlamentares e de quem os manobrava na sombra. Mas ele acaba por se cansar de tanta morte e decidir-se por um último atentado suicida.
O fascínio pela revolução surge, pois, associado a alguns comportamentos niilistas, como testemunhamos em «A Nova Caverna» , onde os insatisfeitos esquecem estratégias falhadas e não temem manifestar o descontentamento através de catástrofes sociais, cientes de nelas por vezes germinar a fraternidade.
A Valentim Borges, rico, jovem e belo, mas eterno insatisfeito, e por isso sempre em deambulações a conhecer gente diferente pelos “limites improváveis desta terra velha e cansada”, o autor aconselha: “Faz dessa gente uma matilha de rebeldes capaz de incendiar a terra para depois construir a verdadeira humanidade”.  (em «O Trotamundos»)
Mas também sucede que a aparente deceção do autor perante a imobilidade política e social dê azo a algum otimismo: como o do cão, que ladra, e também morde um dos membros da troika. Ou o antigo prisioneiro de «No Calabouço», que acaba a receber a Legião de Honra sob o Arco do Triunfo.
Pode-se concluir que Urbano Tavares Rodrigues terá sentido deceção pelo tipo de sociedade em que viveu os seus anos crepusculares, mas nunca deixou de acreditar numa Revolução capaz de tornar exequível o desejo coletivo da felicidade. 

quarta-feira, agosto 26, 2015

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: «Gemma Bovery» de Anne Fontaine (2013)

Há atores franceses de quem não perco um filme, tão superlativas me parecem sempre as suas interpretações.  No caso feminino isso acontece com Sabine Azéma, cuja gestualidade expressiva torna fascinante cada uma das suas interpretações, porque sente-se ir muito além do especificado nas indicações do realizador.
No caso masculino essa admiração vai para Fabrice Luchini cuja dicção do texto é exemplar e quase sempre assume desempenhos, que muito devem à melhor literatura. Como acontece neste filme de Anne Fontaine.
Ele desempenha o papel de Martin Joubert, um homem de meia idade, que voltou para a Normandia há sete anos para tomar conta da padaria paterna. Para trás ficaram doze anos de atividade editorial numa casa parisiense onde passava os dias a ler teses universitárias.
Está mais feliz agora do que quando se sujeitava ao ritmo frenético da capital? Não tanto, porque sofre de uma aguda tendência para ver a realidade pelos arquétipos literários dos seus romances preferidos. De entre eles figura «Madame Bovary», que lera aos 16 anos e nunca mais lhe permitira esquecer essa mulher que se aborrecia. Ademais, fora na Normandia, que Flaubert escrevera o conhecido romance.
A excitação ainda se torna maior quando ganha um casal inglês como novos vizinhos. Ele chama-se Charles, ela é Gemma, mas o apelido, em si, tira-lhe quaisquer dúvidas quanto a não se tratar de mera coincidência: Bovery.
A pintora inglesa é uma mulher fascinante, em quem Martin deteta a mesma incomodidade com a banalidade dos dias já conhecida em Emma Bovary. Não se surpreende, pois que, na sequência de um acidente alérgico com uma abelha a veja aproximar-se afetivamente do jovem  Hervé de Bressigny, que a socorrera, e vive no castelo da aldeia para onde viera preparar os seus exames de Direito. A paixão súbita de ambos torna-se quase incontrolável, levando Gemma a correr grandes riscos para que Charles lhe não descubra o adultério.
Se ainda tinha alguma dúvida, Martin já as esclareceu: o rapaz é a personificação de Rodolphe no romance, e por isso terá de dar tratos à imaginação para evitar a Gemma o triste desenlace de Emma Bovary.
Arma, por isso, uma cilada a Hervé e escreve por ele uma carta de despedida, que deixará Gemma transtornada. Tanto mais que, ciente do que andava a acontecer, também Charles a deixa no mesmo dia, regressando a Londres.
Quando Martin já descansa quanto ao perigo de vida, em que Gemma incorria devido à volubilidade dos seus sentimentos, eis que surge Patrick, um antigo namorado apostado em reconquistá-la. É ele, afinal, quem presenciará a morte dela num dia em que a tenta convencer a voltar para o seus braços e ela morre engasgada com um pedaço de pão confecionado amorosamente por Martin.
Será que é demasiado arriscada a imitação da vida a partir dos romances? Eis a questão deixada pelo filme, que logo a desconstrói, quando o filho de Martin o convence da origem russa dos novos vizinhos, que até se chamariam Kalenina e, afinal, é apenas um logro para dele troçar.
O melhor será convence Martin que ficção é ficção e realidade é realidade, nada havendo a interliga-las...

terça-feira, agosto 25, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: «A Imensa Boca Dessa Angústia e outras histórias» de Urbano Tavares Rodrigues (I)

Nos anos derradeiros da sua vida, Urbano Tavares Rodrigues apostou em textos mais curtos à medida das forças, que lhe iam faltando e da visão, quase perdida. No entanto, lendo os contos do seu derradeiro livro publicado - «A Imensa Boca Dessa Angústia e outras histórias» - tem de se constatar a presença das características fundamentais de toda a sua obra: um posicionamento ideológico sempre em favor dos mais desfavorecidos, um estilo simples e depurado, mas onde ressalta uma evidente riqueza lexical; e uma sensualidade omnipresente, quase sempre a interagir com a expressão genuína dos afetos.
No entanto, perante a iminência do fim, Urbano coloca, logo no primeiro conto (o que dá título ao livro!), a questão da angústia. Euclides, o protagonista, passeia-se por todos os continentes sem em nenhum deles encontrar paliativo para as súbitas crises, que o prostram.
Em «Mais um Fado no Fado» a doença está omnipresente e o narrador goza os derradeiros prazeres carnais no corpo generoso de uma pintora, dentro de quem ansiaria morrer.
Existe, igualmente, a questão de Deus existir ou não, o que não deixa de surpreender num autor em quem apostávamos a convicção firme na sua total inexistência. Mas Sálvio, o personagem de «Encontro com um Deus instantâneo», consegue sossegar quanto à inquietação de o saber por perto.
Aqui e além, os pequenos textos refletem a intenção da autobiografia, como ocorre em «À Procura de Mim»: o narrador tem um percurso idêntico ao do autor, com o nascimento no Alentejo, em família privilegiada mas ciente  das injustiças sociais, e um posterior empenhamento jornalístico, sempre com a ditadura à perna. Mas a  efabulação apodera-se da história e ei-lo convertido em ator de teatro e em piloto aviador. Seriam vocações em tempos almejadas por Urbano e que ficaram por experimentar?
Em «No Ardor das Chamas» o narrador e o irmão arriscam-se a saltar para as chamas de um terreiro de candomblé, chamuscam os pés, mas … arranjam namoradas. 
Algo de semelhante ao que parece suceder-lhe em Rostock, na antiga Alemanha de Leste, onde vai apresentar a tradução de um romance seu e acaba nos braços da capitosa Bárbara, que lhe servia de guia. Está tudo no texto «Andanças pelo Norte do Sonho com Bárbara tão Amada».
Outra história, que muito deve ao mundo dos sonhos, embora iniciando-se de forma autobiográfica, é «A Feiticeira do Azul»,  passada na Póvoa do Varzim, no decorrer de um dos seus encontros literários. Após passar umas horas em amena convivência com o diretor do «JL», eis o narrador estranhamente envolvido em experiência erótica com uma mulher azulada, muito provavelmente uma sereia liberta momentaneamente do cárcere marinho. Compreendendo, no final, que se deixara levar pelo cansaço e adormecera num banco junto à praia.
Dentro da mesma lógica surge «Navio Perdido num Golfo de Luz» em que um navegador, incapaz de ter encontrado o amor nas muitas mulheres com quem se deitara, vai parar a uma espécie de Ilha dos Amores, onde um autêntico harém faz dele macho cobridor. O que o leva a querer fugir, ciente de não poder aguentar por muito tempo aquela provação.
O sonho pode, porém, significar o regresso a um espaço perdido, como ocorre a Camilo Ventura, protagonista de «Na Cidade Aberta como um Coração», que se vira injustamente acusado de atentado ao pudor, sendo por isso preso. Conseguindo fugir, vive dolorosamente o exílio até se saber inocentado e poder regressar.
O sonho, a divagação surrealista, é outra das tentações criativas do autor como se verifica em «As Vertiginosas Geometrias da Cidade Abstrata», a história estranha de um tal Idálio Sepúlveda, que chega a um espaço urbano desconhecido, onde começa por se ver alvo de indiferença, e acaba agredido. Mas não se tratará de uma metáfora aplicável a todas as ditaduras?
Algo absurda, mas ideologicamente esclarecedora a história de «Os Merdosos» em que uns jovens miseráveis são vestidos como príncipes e levados a uma festa num palacete do Campo Grande, acabando quase todos por vestir a farda do patamar social em que os tinham mascarado.
Mas as histórias resultantes de divagações nem sempre acabam bem como vemos em «Curvas e Contracurvas», onde o narrador tem um acidente de automóvel e vai parar a um aparatoso mundo irreal onde, apesar da tentação erótica de um ser alado, não se consegue adaptar.

segunda-feira, agosto 24, 2015

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: O cinema de Asghar Farhadi

Se tivesse de escolher a vintena dos melhores filmes, que vi nos últimos cinco anos, «A Separação» de Asghar Farhadi teria necessariamente de constar de tal lista. Porque, embora aparentando ter tudo a ver com a realidade de uma classe média iraniana incompatibilizada com o regime teocrático dos aiatolas, consegue ter um alcance mais universal do que a maioria dos filmes rodados nas sociedades ocidentais a que estamos vinculados.
O ponto de partida é o de uma família quase de malas feitas para voar em direção ao exílio. Simin e Nader têm um estatuto cultural e financeiro, que lhes permite encarar com otimismo a integração numa sociedade mais aberta, onde a filha adolescente, Termeh, se possa emancipar.
O problema é declarar-se a doença de Alzheimer no pai de Nader e este teimar em ficar.
Para Simin a decisão do conjugue é vista como uma traição às expetativas entretanto criadas, e mantém a intenção em partir com a filha. O divórcio acaba por ser a alternativa indesejada, mas imprescindível ao seu intento.
Mas Nader não terá apenas problemas conjugais a resolver: a empregada que contrata para cuidar do pai é Razieh, pertencente a uma classe desfavorecida em recursos económicos, mas com preconceitos a mais: além de se fazer acompanhar pela filha pequena, ela é casada com um sapateiro deprimido, que vem ajustar contas com o patrão da mulher, ao compreender a situação de a ter tido a trabalhar na casa de um homem divorciado.
Além de contar com interpretações irrepreensíveis, Asghar Farhadi tem um argumento que prende a atenção do espetador desde o primeiro momento, graças a um sentido do detalhe em que as questões da mentira e da justiça se enquadram nos antagonismos entre classes, entre conjugues e, até, entre pais e filhos.
Numa entrevista, o realizador explicava que a Separação do título era bem mais do que a de um casal ou a verificada entre classes sociais: “É a separação que cada um traz em si, entre o que é o que deseja ser. Trata-se do que separa os seres humanos dos seus sonhos”. 

domingo, agosto 23, 2015

ESCÁRNIO E MALDIZER: para acabar de uma vez por todas com ... Nuno Júdice!

Nuno Júdice é um professor universitário de quem poucos alunos guardarão grande recordação - a não ser por passar as aulas a falar para o infinito, sem com eles estabelecer qualquer interação de olhares.
Como poeta tem sido continuamente sobrevalorizado, de acordo com o hábito bem português da promoção entre amigos, cuja influência faz questionar sobre o que terão feito para a  merecerem. A verdade é que, daqui a meio século ninguém se lembrará que houve um poeta assim chamado.
Mas Nuno Júdice olha para o umbigo e julga-se mais importante do que a sua vulgaridade justifica. E temo-lo, pois, entre os signatários da candidatura presidencial de Maria de Belém. Como se o seu nome acrescentasse algum valor ao das dezenas de outros indigentes, que se associaram a tal iniciativa.
Voltando atrás no tempo podemos recordar-nos do mesmo Nuno Júdice a manifestar-se em frente ao Museu de Arte Antiga, quando o governo de José Sócrates  demitiu Dalila Rodrigues de diretora da instituição. Essa manifestação foi apadrinhada por cavaco silva, que tinha por ela uma estima reveladora.
Os tempos vieram dar razão ao governo de Sócrates: não só o museu das Janelas Verdes ganhou impressionante dinamismo com a sua saída como Dalila Rodrigues acabou corrida dos cargos para que a direita a foi depois nomeando - Centro Cultural de Belém e  A Casa das Histórias em Cascais.
Pode-se concluir que Dalila Rodrigues até é historiadora de arte estimável, e pode ser administradora de algum museu de província, mas não tem competências para cargos de maior exigência.
É essa incapacidade em reconhecer que  há patamares de competências acima do que as dalilas ou as marias têm, que impede Nuno Júdice de ter alguma clarividência nas suas opções.
Pudera! Se ele há muito que se tornou na demonstração ambulante do Princípio de Peter! 

DIÁRIO DE LEITURAS: Pelo Condado de Yoknapatawpha

William Faulkner escreveu »Na Minha Morte», quando estava a trabalhar numa central elétrica e ia transportando carvão para as caldeiras.
Em seis semanas construiu aquele que é tido como um dos livros mais sugestivos do século XX por constituir um exemplo notável da riqueza e da complexidade adquiridas por Faulkner em apenas quatro anos: entre «A Recompensa de um Soldado», que escrevera em 1926, e este romance apenas tinham decorrido quatro anos.
Na viagem  da família Bundren para enterrar o cadáver da matriarca em Jefferson, enfrentando a fúria das águas e do fogo, temos quinze personagens a darem as suas diferentes perspetivas sobre o que vivem, mesmo que todas elas influenciadas pelo monólogo da moribunda que acusa a linguagem de fonte de todas as alienações, preferindo a comunicação pelos olhares. Por isso, apesar de muitos diálogos, toda a intriga parece mergulhada numa espécie de silêncio onírico, povoado de evocações sulistas, da violência das paisagens e da vertigem cataclísmica dos fenómenos naturais.
Perante tudo quanto o condiciona, o ser humano sente-se minúsculo, incapaz de conseguir a concretização das secretas aspirações, que justificavam a participação no esforço coletivo dos demais membros da família.
Faulkner explicaria que o título decorria de um verso da Odisseia de Homero na sua versão inglesa:  "As I lay dying, the woman with the dog's eyes would not close my eyes as I descended into Hades". E há algo de errância caótica no percurso até ao cemitério de Jefferson.
Mais sintético, Jean Louis Barrault considerou estarmos perante teatro no seu estado primitivo. 

sexta-feira, agosto 21, 2015

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: «Objetivo Monte Branco» de Vincent Perazio

Sempre considerei que, se alguma vez me dedicasse ao alpinismo, não faria a coisa por menos: o objetivo seria o Evereste.
Só há uma dúzia de anos me convenci da impossibilidade de colocar um visto nesse item da check list  das coisas a cumprir antes de envelhecer. Uma folha que, lamentavelmente, deixa inúmeras linhas por anteceder com a sinalética das metas alcançadas.
Porém, ao ver este documentário de Vincent Perazio sobre a tentativa de uma climatóloga, de um físico e de dum vulcanólogo em alcançarem o ponto mais elevado dos Alpes, fui levado a concluir que esticara demasiado a corda de tal ambição. Tomara eu ter conseguido cumprir esta mesma aventura quanto mais a de colocar a barreira demasiado alta para as minhas capacidades. .
O maciço do Monte Branco formou-se há 240 milhões de anos e fica na fronteira entre a França, a Itália e a Suíça. No seu cume mais elevado está-se a 4810 metros de altitude, acima de qualquer outro rival europeu.
Eis-nos, pois, a acompanhar Martine Rebetez, Étienne Klein, e Jacques-Marie Bardintzeff, enquanto progridiam em dois grupos distintos, guiados por Jean-Franck Charlet e François-Régis Thévenet, e pelo médico Hugo Nespoulet.
Nos dois primeiros dias da aventura eles aclimatam-se à montanha para limitarem os efeitos da altitude nos seus organismos.
A ascensão é perigosa, entre o glaciar e o cume pretendido. E o realizador vai intercalando-a com entrevistas a especialistas de diversas disciplinas: geologia, paleontologia, geomorfologia, glaciologia, botânica e ecologia.
Esses cientistas manifestam, quase unanimemente, as suas apreensões a respeito da sobrevivência de muitos dos ecossistemas ali existentes à medida que se alargarem os efeitos do aquecimento global. Durante o século XX, a temperatura média na região aumentou de 1,5ºC, ou seja três vezes mais do que o sucedido á escala mundial. Se ela aumentar mais 3ºC a superfície gelada dos Alpes diminuiria cerca de 80%
É esse o principal móbil do filme: alertar quem o veja para as consequências da forma irresponsável como estamos a gerir os recursos nas nossas sociedades desenvolvidas.
E há também uma verdadeira homenagem ao esforço dos cientistas, dos quais só a climatóloga conseguiu alcançar o cume. Tendo por prémio uma paisagem belíssima, de quase cortar a respiração...


DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: «Teorema Zero» de Terry Gilliam (2013)

Uma distopia: um mundo onde a publicidade está permanentemente a bombardear a população com as suas múltiplas promessas.
Qohen Leth sente-se num mundo estranho e confuso, onde todos os dias parecem iguais. Por isso pretende-se circunscrever à enorme residência monacal, onde vive. Mas é-lhe difícil convencer os responsáveis da empresa da imprescindibilidade de lhe reconhecerem a incapacidade para prosseguir o vaivém diário entre ela e o seu caótico lar.
Existe ainda uma outra razão para ficar em casa: em tempos atendeu um telefonema em que, do outro lado lhe prometiam a revelação do sentido da vida e da razão de existir, mas  ficara tão desvairado, que desligara involuntariamente a chamada. Agora obceca-o a possibilidade de lhe voltarem a ligar.
Bainsley, uma cal girl, que conhece numa festa, relativiza-lhe a importância de tal ligação: provavelmente tratava-se de uma qualquer campanha publicitária para venda de timeshare em Maiorca…
Ele tem, porém, a sorte de ser incumbido pela Gerência (papel desempenhado por Matt Damon) de demonstrar o Teorema Zero, nem que isso o obrigue a trabalhar até à exaustão, se não mesmo até à loucura. Por isso existem câmaras a escrutinarem-lhe o mínimo movimento nas vinte e quatro horas por dia.
Mas o Teorema em causa prima pela futilidade: tende a demonstrar que o Universo é em si uma inutilidade. Por isso nunca conseguirá concluir o trabalho, apesar da ajuda de Bainsley (que o vem distrair com uma falsa felicidade virtual) e de Bob, o génio informático de quinze anos, que já sabia programar antes de nascer.
Qohen acaba por destruir as câmaras, que o vigiam, bem como os instrumentos de trabalho, acabando por se precipitar no Buraco Negro onde, porventura, será possível a regeneração.
Embora fustigado pela crítica internacional, o filme do ex-Monty Pithon tem o habitual delírio visual, com que tenta passar conteúdos irreverentes, quase invisíveis dentro da alucinação presente do primeiro ao último minuto...