sábado, julho 30, 2022

Eva, Joseph Losey, 1962

 

Baseia-se num romance do mestre James Hadley Chase, mas pouco possui da natureza dos filmes negros a que os romances dele deram ensejo. 

Passando-se entre Roma e Veneza encontramos um bem sucedido argumentista de cinema, Tyvian Jones, que muito explora o glamour do  seu proclamado passado de mineiro no País de Gales natal. Agora todos o admiram, sobretudo depois do sucesso do filme resultante do primeiro romance, e a maior defensora é Francesca, uma executiva da indústria cinematográfica com quem se apresta a casar. Acaso tudo decorresse de acordo com o que perspetivava estar-lhe-ia reservado o futuro tranquilo dos autores de fraudes, que sabem gerir os equívocos sobre que fundamentaram a ascensão ao topo. Mas, uma noite, junto à ilha veneziana onde tem casa, um barco avaria-se e é assim que conhece Eva, uma prostituta de luxo por quem ganha avassaladora obsessão, e sobre ele exerce um ascendente baseado em sucessivos jogos sadomasoquistas.

O triângulo amoroso entre Tyvian, Francesca e Eva (que é quadrado se contarmos com o produtor do filme baseado no bestseller do galês desejoso, ele próprio, de casar com a sua assistente) acabará em tragédia, quando os jogos do gato e do rato entre seduzido e sedutora são levados até à contraditória lógica de um e do outro.

Embora possamos presumir referências aos filmes de Antonioni e de Fellini rodados na viragem dos anos 50 para a década em que este se estreou, Eva é proposta pouco simpática, porque não é possível sentir qualquer empatia com nenhum dos personagens. Talvez porque olhar para os muitos espelhos, que Losey espalhou pelo filme, lembre que podem existir abismos entre o que possamos desejar e as realidades que possamos alcançar. 

quinta-feira, julho 28, 2022

Conversation avec Romy Scnheider, Patrick Jeudy, 2018

 

Aprecio os documentários assinados por Patrick Jeudy, quer reportem a personalidades da sétima arte (Marilyn Monroe, Jayne Mansfield, Gérard Philipe), da política (De Gaulle, Churchill) ou com ela aparentadas (Jackie Kennedy, Eleanor Roosevelt). Em todos detalha a evolução dos acontecimentos e tenta explica-los à luz da educação colhida nas respetivas infâncias (amiúde traumáticas) como se os desideratos infelizes posteriores tivessem algo de determinista.

Datado de 2018, Conversa com Romy Schneider focaliza-se prioritariamente no testemunho da jornalista Alice Schwarzer a quem a atriz se confiou abertamente numa noite muito especial de dezembro de 1976 a pretexto de fazer capa da revista feminina, que estaria para se lançar nesse natal. E são as revelações sobre o passado nazi dos pais, que permitiram-lhe compreender melhor algumas das situações estranhas vividas na infância, ou o assédio sexual do padrasto, quiçá facilitado por uma mãe interesseira, que sempre dela se procurou aproveitar como forma de recuperar o perdido brilho de quando fora uma das estrelas da UFA.

O longo testemunho gravado em áudio permite perceber como Romy sempre se viu destratada pela Alemanha e procurara em França outros amores e modos de encarar a vida. O fracasso da relação com Alain Delon tê-la-á feito infletir para logo compreender quão inacessível era a felicidade do outro lado da fronteira, onde um casamento e o nascimento do primeiro filho demonstrou a inaptidão para se acomodar à vida rotineira de “mãe de família”.

O filme elucida, igualmente, a frustração de quase nunca se ver dirigida pelos grandes realizadores do seu tempo: se Visconti a procurou para o seu Ludwig  foi por não haver quem melhor personificasse Sissi e o encontro com Orson Welles em O Processo correspondeu a uma passagem quase clandestina do filme pelos ecrãs de então. Por isso rendeu-se à colaboração com nomes estimáveis da época - Claude Chabrol, Costa Gravas, Bertrand Tavernier - muito embora em maior numero de contassem os, ainda que conceituados, tarimbeiros (Demy ou Sautet).

Contraditória, mas também muito frágil, Romy acabou por ser uma personagem de tragédia e, como tal, uma protagonista adequada ao perfil tão esmiuçado por Jeudy na sua filmografia. 

domingo, julho 17, 2022

A Metamorfose dos Pássaros, Catarina Vasconcelos, 2021

 

Muitas são as razões, porque gosto bastante deste filme de Catarina Vasconcelos, que agora voltei a rever. Por um lado, porque utiliza abundantemente a correspondência entre o avô Henrique e a avó Beatriz trocada nas longas permanências dele nas viagens por mar. Ora também, eu e a Elza, trocámos milhares de páginas nos vinte e quatro anos em que a Marinha Mercante me serviu de meio de vida, e as palavras escritas ganharam a dimensão dos sentimentos, que por elas se alavancavam. Enquanto se adiava a verdadeira vida, só possível quando se sucediam os reencontros, essas páginas mantinham o elo sentimental, que tornava possível a sensação de não se terem passado tantos meses, porque quase na véspera nos despedíramos.

Há depois a questão do luto, a perda de quem se ama e cuja ausência não tem cura. E essa é ameaça que por mim pairou no ano passado, quando a estadia da Elza no hospital durou setenta e três longos dias nos quais quase sempre esteve incerta a probabilidade de regressar a casa. Ou o quanto doravante vi demonstrada a ilação viniciusiana de ser o amor eterno enquanto dure, mas estar-nos prometida uma fronteira para os desconhecidos territórios do Nada passando a constituir preocupação presente o deixar legado de uma memorabilia rica sobre quem se foi e o quanto se transmitiu pelo multifacetado ADN.

O filme é um exemplo maior desse tipo de legado, que nos pode servir de bitola para o nosso idêntico projeto. E daí que essas tenham constituído as razões pessoais, que justificaram o reencontro com a obra de Catarina Vasconcelos.

Mas há muito mais do que isso, porque se trata de filme muito bem construído e extremamente belo numa estética, que apetece passar fotograma a fotograma, porque muitos constituem verdadeiras obras de arte na forma como revelam a meticulosidade no tratamento da cor e da textura a par da composição das naturezas mortas em que se fundamentam.

Trata-se de um belo filme, mas é, de facto, muito mais do que isso. 

segunda-feira, julho 11, 2022

A Casa das Testemunhas, Matti Geschonneck, 2014

 

Foi ambicioso o telefilme assinado por Geschomeck e baseado num romance de Christiane Kohl. Mas, se o entretenimento se aguenta, a verosimilhança começa logo no conceito: em 1945 uma casa de Nuremberga, gerida por uma baronesa húngara, acolhe ao mesmo tempo testemunhas de acusação e possíveis criminosos de guerra, que serão chamados a depor em tribunal.

Para além dos que sobreviveram e vivem com o sentimento de culpa de terem contornado os escrúpulos para chegarem vivos àquele dia, em detrimento dos que eram mais fracos ou não possuíam as suas competências de resiliência, há também o fotógrafo pessoal de Hitler, a esposa do líder da Juventude Nazi, a secretária pessoal de Goering e dois outros assassinos, um a fazer-se passar pelo irmão comunista, o outro como cúmplice dos que tinham tentado contra o ditador, mesmo estando antes na origem da Gestapo.

Alimenta-se a ambiguidade sobre quem é, ou não, culpado e, como balanço, fica uma certa relativização entre a natureza de uns e de outros. Como se não fosse assim tanta a diferença! 

domingo, julho 10, 2022

Mir – uma vida no Afeganistão, Phil Grabsky, Shoaib Sharafi e Mir Hussain, 2022

 

Anos atrás Robert Linklater foi incensado pelo «achado» de esperar doze anos para concluir um projeto - Boyhood - que implicava ir rodando as cenas com o jovem protagonista à medida que ele ia crescendo.

Antes de Linklater Phil Grabsky fez o mesmo com Mir Hussein durante vinte anos e, para além do reconhecimento de uns quantos festivais, não consta que o tenham promovido a quase estatuto de génio como sucedeu com o colega texano.

A primeira vez que o realizador britânico deu com o rapaz tinha ele 7 anos e vivia com a família nas grutas de Bamyân já depois dos talibãs terem destruído os Budas com a sua artilharia pesada.

Nos anos seguintes foi acompanhando a evolução do rapaz, primeiro reencontrando-o na terra natal, onde faltava à escola para ajudar a família no pastoreio ou, depois, enquanto mineiro nas jazidas de carvão. Por essa altura já Grabsky montara o material com ele filmado em dois documentários: The Boy who plays on the Budhas of Bamyân (2004) e The Boy Mir (2011).

O regresso ao Afeganistão aconteceu em vésperas da saída da NATO do seu território, justificada pela morte de 3500 dos seus militares e quando Mir, já com 27 anos, associou-se ao realizador enquanto operador de câmara apostado em colher imagens do caos criado pelos atentados suicidas, um dos quais quase o vitimou. Casado com uma rapariga, que se revela bastante lúcida perante as circunstâncias em que vivem, Mir é mais um dos que, na semiclandestinidade de Cabul, procura solução para, na emigração para o ocidente, garantir à família o sossego e a qualidade de vida ali impossibilitada.

Pelo rosto concreto do rapaz e dos familiares fica o retrato eloquente de uma realidade política, que constitui uma nódoa - mais uma!  - no criminoso imperialismo norte-americano.



 

quarta-feira, julho 06, 2022

A obnubilação grega de Flaubert

 

Pode a paisagem assoberbar um autor de forma a deixá-lo incapaz de nela escolher que melhor ficção dela reportará?

Terá sido isso o que sentiu Gustave Flaubert no verão de 1850 quando, ainda andando pelos trinta anos, regressou do Egito fazendo escala na Grécia.

Não é que tenha desperdiçado a oportunidade perdendo-se nos muitos motivos por que o recém-independente país poderia fascina-lo. Pelo contrário procurou Édipo em Delfos ou o local onde decorrera a batalha das Termópilas, mesmo que atulhado pelas camadas de sedimentos neles acumulados por tantos séculos entretanto passados, ou pior, desvirtuados pela destruição operada pelo cego fanatismo cristão.

Quando se despediu do espaço helénico, Flaubert apenas trouxe consigo as notas, que incluiria nos seus testemunhos de viajante, apostando o ofício de romancista noutras civilizações  - nomeadamente a de Cartago em Salambô - que menos dispersão criativa lhe suscitaria.

terça-feira, julho 05, 2022

1944 : il faut bombarder Auschwitz , Tim Dunn, 2019

 

Parece regra incontornável da História: quando algo é por demais conhecido lançam-se hipóteses sobre cenários alternativos. Por isso, e a propósito deste documentário de Tim Dunn, apregoa-se como sendo um dos grandes dilemas morais do século XX o de se entender justificada ou não a passividade dos Aliados perante o conhecimento das atrocidades então em curso em Auschwitz-Birkenau e o adiamento sucessivo da decisão de lhes pôr fim mediante profilático bombardeamento.

Foi a 10 de abril de 1944 que dois jovens eslovacos, Rudolf Vrba e Alfred Wetzler, conseguiram fugir do inferno e alcançar Zilina para contactarem responsáveis pelo Conselho Judeu e darem-lhes conta de quanto tinham presenciado e se preparava. Sujeitos a interrogatórios em separado, para aferir se se contradiziam, assinaram um relatório doravante conhecido como «protocolo de Auschwitz». 

Esse documento foi abundantemente distribuído e discutido pelos Aliados com os políticos a considerarem urgente o bombardeamento do campo se queriam evitar a morte dos 800 mil judeus húngaros, por essa altura a serem transportados para os campos da morte, e os chefes militares a subalternizarem-no a pretexto de se focalizarem no iminente desembarque na Normandia. E, no entanto, estava-se então em acelerada vertigem assassina com um ritmo diário de mais de cinco mil vítimas empurradas para os fornos crematórios.

Alegavam as autoridades militares para o risco de bombardear as camaratas dos próprios prisioneiros dos campos, porque a pontaria dos aviões aliados deixava muito a desejar - assim o demonstrou o bombardeamento da fábrica da IG Farben, adjacente ao campo e onde os alemães fabricavam borracha sintética, que acertou involuntariamente no perímetro do campo aí causando 40 vítimas entre os prisioneiros e 15 nos seus carcereiros.

Seria preciso esperar pelo dia 27 de janeiro de 1945 para que o Exército Vermelho libertasse o campo e confirmasse o que Vrba e Wetzler haviam denunciado: mais de um milhão de deportados tinham sido aí exterminados.

Interessante na mistura de entrevistas e materiais de arquivos, a eles se associando verosímeis reconstituições com atores, o documentário de Tim Dunn serve para reavivar memórias de um crime contra a Humanidade, que muitos querem fazer esquecer.