domingo, agosto 30, 2020

(DL) Quando Mérimée tirocinava para criar a Carmen


Em 1834 Prosper Mérimée era um próspero burguês parisiense, que demoraria mais uma década até escrever e publicar Carmen, depois imortalizada na ópera composta por Bizet em 1875. Titular do cargo de inspetor-geral dos Monumentos Históricos empreendeu naquele ano uma longa viagem pelos Pirenéus Orientais, surpreendendo-se com a paisagem lunar e os muitos vestígios medievais. Norteava-o a ambição de salvar o património nacional, em acelerado risco de se perder, como relata no livro Notes d’un voyage dans le Midi de la France, publicado em 1835. Mas, como segundo ofício, o da literatura, procurava secundar o esforço de alguns amigos próximos - Stendhal e Musset -, que ambicionavam dissociar-se do romantismo, abjurando o seu excessivo sentimentalismo.
Em 11 de novembro estava em Perpignan para assistir à colorida festa em honra de São Martinho, fascinando-o o exotismo ruidoso, os fatos tradicionais e a arquitetura gótica da cidade, que o fizeram sentir-se num desconhecido mundo à parte.
Ao dirigir-se para sul, quase até à fronteira espanhola, as paisagens continuaram a espantá-lo ao mesmo tempo que ia congeminando uma história, que tivesse algo do misticismo alheio ao seu pensamento cartesiano, mas presente no estranho sarcófago em mármore visitado na velha igreja de Arles-sur-Tech. Ali estariam depositadas as relíquias de dois santos e, de uma pedra, que o encimava, brotava uma água miraculosa cuja origem não se conseguia atribuir a uma qualquer nascente ou ribeiro conhecido.
Imaginou então a história de uma estátua de bronze descoberta na região por dois arqueólogos, que a identificavam como representação da deusa romana Vénus. Mas vozes populares atribuiram-lhe poderes maléficos, que logo se pareceram confirmar quando uma dezena de vítimas pereceram depois de vandalizarem importantes peças do património local.  Essa intriga, que Mérimée concebeu para a novela La Venus d’Ille até teve algo de aparentado com o que ali viveu por essa altura: a breve estadia na aldeia em causa coincidiu com o assassinato de um conhecido camponês sem que ninguém soubesse dos porquês ou da autoria do crime.
Multiplicando por dez o número de mortos e explicando-os como tratando-se de uma vingança clandestina contra quem punha em causa a sobrevivência dos monumentos por ele tutelados, Mérimée criou uma lenda moderna, logo acrescentada às muitas de que essa região era tão fértil.

(DIM) A Vida e a Morte de Marina Abramovic


Robert Wilson é um dos grandes encenadores do nosso tempo. O Festival de Teatro de Almada tem apresentado alguns dos seus trabalhos (o mais recente foi com Isabelle Huppert no ano passado) e, no início dos anos 90, o galerista Luís Serpa convidou-o para aquela que designou como a sua Lisbon Experience.
Alguns documentários têm-nos feito, igualmente, aceder a outras criações exultantes, que só podemos lamentar não ter podido assistir ao vivo, mas demonstram a sua arte. Uma delas aconteceu na Estónia, quando encenou uma das obras maiores de Arvo Pärt: Adam’s Passion e conseguiu, através dos atores-esculturas a movimentarem-se em cena, dar o devido valor ao silêncio entre as notas musicais, que  o compositor tanto enfatiza como imprescindível para se entender a vertente divina a elas subjacente.
Vimos agora Bob Wilson´s Life and Death of Marina Abramovic, realizado por Giada Colagrande enquanto making of do espetáculo levado à cena em 2012 e com a participação superlativa da performer, de Willem Dafoe, de Antony Hegarty e do grupo de música tradicional sérvia liderado por Svetlana Spajic.
Com um tal núcleo de gente talentosa esperar-se-ia um documentário enquadrável na classificação máxima de cinco estrelas. Mas elas não chegam para dar conta do quanto foi jubilatória a experiência desses 57 minutos: a notável sagacidade de Wilson e Abramovic em pegarem na biografia dela, sobretudo da infância, que Baudelaire dizia ser a origem da genialidade, e transformarem os acontecimentos por ela vividos numa dramaturgia empolgante, ademais debitada pela histriónica interpretação de Willem Dafoe, que continua a ser um dos mais versáteis atores do nosso tempo. E, igualmente, a música de Antony Hegarty (hoje Anohni), cuja voz há quem associe à dos anjos, mesmo quando aqui enverga trajo a lembrar a mozartiana Rainha da Noite. E sem esquecer os sons balcânicos, cuja beleza nunca nos deixam de encantar.
Inicialmente Marina Abramovic pretendia que Wilson lhe encenasse o funeral, ele decidiu-se por tomá-lo como início e depois partir em busca de quem ela fora como explicação para tudo quanto depois fizera. Houve quem estranhasse a quase ausência de Ulay na detalhada sucessão do seu percurso, tanto mais que, dois anos antes, haviam tido memorável reencontro no MOMA aquando da performance The Artist is Present, mas num percurso tão longo quanto multifacetado entende-se que a estrutura da peça tinha de fazer opções, mesmo que difíceis. Sobretudo pelo que a rutura significara para a protagonista.
Doravante apontarei sempre Bob Wilson´s Life and Death of Marina Abramovic como um dos grandes filmes da minha vida.

(EQ) Imitamos os netos, mas sentimo-nos desafinados...


Imagino-nos perante o quadro que Brueghel pintou em 1560 retratando duzentas e trinta crianças ocupadas em oitenta e três brincadeiras e espalhadas por uma praça e duas ruas perpendicularmente entrecruzadas numa aldeia do seu tempo. E avaliamos as diferenças de perceção se o víssemos ao lado das nossas netas numa das muitas salas do Museu Kunsthistorisches em Viena.
Quase por certo elas apostariam que, para captar aquela perspetiva, o pintor utilizara um drone, pois só de cima se afigura possível tudo aquilo ver. Nós nem de tal nos lembraríamos tão natural é aceitarmos capacidade dos artistas quinhentistas em contornarem a divergência entre o que viam de facto e o que suporiam ser o olhar de uma qualquer ave que os sobrevoasse.
Não incentivássemos as miúdas a permanecerem mais alguns instantes em frente ao quadro, e procurassem detetar o que estariam a fazer os seus personagens, quase por certo debandariam para outras obras ali ao lado. As novas gerações são tão permanentemente estimuladas por efémeros influxos de informação, que não se deixam prender pelo que se lhes afigura como excessivos detalhes. Os focos de atenção cingem-se a escassos segundos e logo derivam para outros, que lhes deem mais grata compensação.
Se aceitassem o desafio, pouco compreenderiam daquilo em que as personagens da sua idade estariam ocupadas. Tudo se resumiria a enorme confusão, apesar de partilharem com o autor a naturalidade neerlandesa, razão para culturalmente se sentirem mais próximas da sua proposta.
Outra seria a nossa interpretação, porque jogámos ao eixo, conduzimos um aro com uma vara de arame, subimos às árvores, fizemos piruetas em postes horizontais, repetimos infinitas vezes o mamã dá licença para sabermos quantos passos avançaríamos e tantas outras brincadeiras, que Brueghel reproduziu fazendo jus à formação em pintor miniaturista.
Paradoxal conclusão poderíamos retirar da experiência: em muitas coisas estamos mais próximos dos antepassados de há quase quinhentos anos que das gerações subsequentes à nossa. As novas tecnologias alteraram a identidade dos humanos de hoje, tornando-nos obsoletos, cientes de pouco estar ao nosso alcance para o evitarmos.
Podemos passar horas à frente dos computadores, acompanhando as últimas novidades de hard e de software ou dotarmo-nos dos novos telemóveis topos de gama já preparados para a quinta geração. Forçosa a sensação de contarmos com unhas inábeis para tão exigentes instrumentos.
Imitamos os netos, mas sentimo-nos desafinados...

sábado, agosto 29, 2020

(EdH) As epidemias ao longo da História – 2ª parte


A cólera é uma bactéria que mata por desidratação. Em 1834 um surto proveniente de Bengala, detetado em 1817, chegou ao porto de Marselha, depois de atravessar toda a Rússia e a bacia mediterrânica.
As autoridades impuseram o controle das fronteiras e a quarentena causando grande polémica pública entre os seus defensores e os que nela viam entrave ao prosseguimento das atividades económicas (onde já vimos isto?). Os efeitos dissuasores da propagação da doença não surtiram efeito e só com os trabalhos de Robert Koch, na segunda metade do século, é que se consolidou a ideia de causa-efeito entre as péssimas condições sanitárias e a doença que, até hoje, já conheceu sete grandes epidemias e saldou-se por milhões de vítimas.
A gripe espanhola, na realidade norte-americana, surgiu em 1918, atravessando rapidamente o Atlântico e aproveitando as péssimas condições sanitárias do final da Primeira Guerra Mundial para, em três vagas sucessivas, causar 50 milhões de vítimas mortais (5% da população mundial), muitas mais do que os 19 milhões resultantes do conflito em si.
Apesar dos progressos da medicina e dos cuidados de higiene, nova gripe devastadora surgiu em 1968 em Hong Kong, logo potenciada com o avanço do inverno de 1969.
Surge logo a seguir a epidemia da Sida, transmitida sexualmente ou através do sangue, mas oriunda do sul da República dos Camarões, onde passara dos chimpanzés para os seres humanos. Em 1981 irradiou da Califórnia, e muito particularmente de São Francisco, num alarme internacional motivado pela letalidade da doença que, em quarenta anos matou 32 milhões de pessoas e, hoje me dia, apesar dos progressos dos tratamentos antivirais, ainda vitima anualmente 800 mil, sobretudo na África e na Ásia.
Outra epidemia assustadora, sobretudo por matar uma em cada duas pessoas afetadas pelo vírus, é a do Ébola, embora se mantenha cingida geograficamente na Libéria, na Guiné, na Serra leoa e na Republica Democrática do Congo, todos eles países em acelerada desflorestação, que favorece o contacto entre espécies selvagens outrora distantes dos contactos com os homens e a eles subitamente forçados.
Neste século, antes do covid, duas outras epidemias com coronavírus surgiram na Ásia e ali ficaram circunscritas.: o SARS em 2003, que grassou na China, em Taiwan e Hong Kong e o MERS em 2012 na Arábia Saudita, nos Emiratos Árabes e na Coreia do Sul. Uma vez mais constatou-se neste último síndroma respiratório, que a transmissão proviera de morcegos, que tinham passado o vírus aos dromedários.
E assim chegamos a esta crise atual, que detetada em Wuhan, se viu potenciada pela enorme migração anual suscitada pelas festas do Ano Novo chinês. Para já o resultado é uma crise económica com dimensão bem maior do que a verificada durante a Grande Depressão de 1929.

sexta-feira, agosto 28, 2020

(DIM) O racismo que há quem queira esconder


Na programação de hoje da Cinemateca esteve em evidência o cinema do mauritano Med Hondo de quem se puderam ver duas obras: como aperitivo a curta Mes Voisins (1971), que seria integrado dois anos depois na longa-metragem Les Bicots-Negres, vos voisins, seguindo-se-lhe o anterior Soleil Ô (1970). O pretexto para essa apresentação foi o integrarem-se na evocação que o Festival Indie está a dedicar aos 50 anos da Berlinale, onde esses filmes foram apresentados no início dos anos 70.
Med Hondo faleceu em Paris no ano passado depois de aí viver seis décadas. A princípio com as ilusões de quem aí aportara com pouco mais de vinte anos e julgava-se capaz de ser bem sucedido sem que a questão da cor da pele fosse problema. Tão entusiasmado militante político, quanto do cinema e do teatro, foi como ator, que começou a destacar-se, revigorando a tradição dos griots africanos, que conhecera através do próprio avô, um notável contador de histórias capaz de fascinar quem acorria a ouvi-lo. Muitas delas passadas ainda na época em que se sujeitara a usar as grilhetas impostas aos escravos.
A consciência do colonialismo e das suas versões recauchutadas depois das independências, sempre nortearam as preocupações de Hondo, nomeadamente quando passou para trás da câmara e criou os primeiros filmes.  O racismo e a vida difícil dos imigrantes africanos na sociedade ocidental passou a ser tema recorrente, tornando-o particularmente impressivo através das soluções de escolha de planos (nomeadamente os fixos, com as vozes em off) e de acompanhamento sonoro escolhidos para denunciar a persistência das injustiças ignoradas pela população branca, que nunca sentiu os olhares, as humilhações, as manipulações - o papel do proselitismo católico junto de quem era portador de outra cultura e valores civilizacionais surge aqui bem escalpelizado! - e outras estratégias de poder utilizadas por quantos pretendem manter incólume o atual estado das coisas.
Numa altura em que um perigoso Aldrabão anda a mobilizar imbecis para os convencer em como não existe racismo em Portugal, estes filmes, rodados há quase meio-século, continuam perfeitamente atuais.