domingo, março 06, 2016

DIÁRIO DE LEITURAS: Exorcizar o luto

“Como não tive filhos, o que de mais importante me aconteceu na vida foram os meus mortos, e com isto refiro-me à morte dos meus entes queridos. Achas lúgubre, quem sabe até doentio? Eu não o vejo assim. Parece-me, pelo contrário, tão lógico, tão natural, tão certo. Só nos nascimentos e nas mortes saímos do tempo; a Terra detém a sua rotação, e as trivialidades em que desperdiçamos as horas caem ao chão como pó de purpurina. Quando uma criança nasce ou uma pessoa morre, o presente parte-se ao meio e deixa-nos espreitar por um instante a frincha da verdade: monumental, ardente e imutável. Nunca nos sentimos tão autênticos como quando bordejamos as fronteiras biológicas: temos a consciência clara de estar a viver uma coisa em grande. Há muitos anos, o jornalista Inaki Gabilondo con tou-me numa entrevista que a morte da sua primeira mulher, que morreu muito nova com um cancro, fora duríssima, sim, mas tam bém o que de mais transcendente lhe tinha acontecido. As palavras dele impressionaram-me: de facto, ainda me lembro delas, embora tenha em geral uma memória de mosquito. Nessa altura, julguei ter compreendido bem o que me queria dizer; mas, depois de o viver, en tendi melhor. Nem tudo é horrível na morte, embora pareça mentira (espanto-me ao ouvir-me a proferi-lo).
Mas este não é um livro sobre a morte.”

Estes dois parágrafos - um muito longo, o outro muito curto - iniciam o livro através do qual Rosa Montero exorcizou a morte do seu companheiro de vinte e um anos de vida em comum, os últimos dez meses dos quais condicionados pela doença.
À partida o estímulo para abordar a biografia de Marie Curie residiu na encomenda para o prefácio à edição do diário escrito pela nobelizada cientista no ano subsequente à morte inesperada de Pierre, que foi atropelado por um coche movido a cavalos.
O sofrimento de que ela dera mostras nesse texto, amiúde pungente, coincidia com o da escritora, subitamente confrontada com a contradição de sempre ter visto negativamente a forma como Eric Clapton e Isabel Allende tinham exorcizado publicamente as mortes dos respetivos filhos e, agora, ela própria se via tentada a imitá-los.
Mas, como ela avisa na curta frase do segundo parágrafo do livro, ele não será sobre a morte, mas sobre a vida, e nomeadamente sobre as dificuldades de afirmação feminina numa sociedade muito marcada pelo poder masculino nas suas mais diversas vertentes.
Sem aparentar um encadeamento linear, Rosa Montero redigiu capítulos, que assumem alguma forma de coloquialidade como se fosse desfiando os seus pensamentos sobre a sua vida e a de Marie, mas também a de todas as mulheres, que muito porfiaram para conseguirem a realização das suas próprias identidades num mundo apostado em aniquilá-las.

Sem comentários: