quinta-feira, julho 30, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: Memórias de um genocídio

A experiência de repórter de guerra no Ruanda foi tão marcante para Jean Hatzfeld, que, vinte anos depois, ele continua assombrado por ela publicando sucessivos livros, que o ajudem a exorciza-la.
Infelizmente os livros do antigo jornalista do «Libération» não têm chegado a Portugal nos últimos anos. A exceção já tem mais de uma década e intitulava-se «Tempo das Catanas».
Ao contrário do que se possa considerar o massacre dos tutsis ruandeses pelos vizinhos hutis não é assunto que se deva arrumar na prateleira dos fenómenos circunscritos à região centro-africana onde ocorreram.
Entre abril e julho de 1994, desde os alvores da manhã até às  três da tarde, turbas de  assassinos juntavam-se em grupos ruidosos para massacrar e roubar os vizinhos, não se privando de, no entretanto, violar as mulheres que lhes caíssem no cerco.
Muitos desses assassinos eram comandados pelos seus padres católicos, que não lhes vedavam a entrada nas igrejas onde os perseguidos buscavam inútil refúgio. Pelo contrário até os instigavam a praticar os crimes no espaço sagrado.
Hatzfeld, que era de origem judaica, não deixou de evocar a similitude entre o comportamento das vítimas ruandesas com a dos judeus chacinados nos campos de concentração, quer pela incompreensível passividade, quer pela sensação posterior de culpabilidade dos sobreviventes por, precisamente, terem escapado com vida de toda aquela tragédia.
Semelhança igualmente entre os algozes hutis e os nazis: a mesma arrogância de quem se julga investido de um direito quase divino para negar ao Outro o direito a existir.
Ao entrevistar alguns desses assassinos, Hatzfeld surpreendeu-se pelo facto de não expressarem a posteriori qualquer vestígio de arrependimento. Se o assumiam era por não terem concluído o “trabalho”, erradicando os tutsis da face da Terra.
Nos relatos de Hatzfeld sobra ainda a crítica para o comportamento dos europeus, que facilitaram o genocídio retirando os “capacetes azuis” da região, quando parecia iminente o massacre e divulgando nos jornais de língua francesa uma versão mentirosa dos factos, dando dos tutsis uma imagem de criminosos e dos hutis a de injustiçados.
A exemplo do que sugerira Hannah Arendt sobre Eichmann, existe uma banalidade do mal nos assassinos, que reagiam de acordo com o que entendiam esperar-se deles  jamais abrindo campo para o seu próprio questionamento.
A grande lição transmitida por Hatzfeld, até por também ter sido repórter de guerra na antiga Jugoslávia, é que assume a dimensão de um terrível engano a apreciação de uma paisagem humana como sendo pacífica. Basta nela soltarem-se os piores demónios e ei-la a servir de cenário aos instintos mais hediondos...

quarta-feira, julho 29, 2015

ARTES: Berthe Morisot, uma artista subestimada (1ª parte)

Em 1941, aquando da retrospetiva de 1941 organizada no Museu de l’Orangerie, Paul Valéry considerou-a uma personalidade à parte no conjunto do grupo impressionista. Esse distanciamento tinha a ver com a sua modéstia, mas também com os constrangimentos inerentes à condição de mulher. De facto aliar esse género à pintura implicava enfrentar grandes desafios num contexto de grande ambiguidade.
Conhecida durante muito tempo como a modelo preferida de Édouard Manet, que viria a ser seu cunhado, Berthe Morisot ficou tempo demais na sombra dos seus confrades impressionistas por muito que eles a considerassem sua igual.
Ela nasceu em Bourges em 1841 e cedo sentiu-se herdeira das restrições e do conforto do ambiente burguês em que vivia. Se a mãe encorajava os primeiros passos de duas das suas filhas, Berthe e Edma, na pintura, desencorajou-as a limitarem-se a essa atividade artística, porquanto deveriam, a seu ver, privilegiar a possibilidade de criarem as suas próprias famílias.
Se Edma acaba por acatar o conselho materno, Berthe mantem-se inflexível na intenção de se dedicar exclusivamente à pintura.
A família mudara-se para Paris em 1852 para garantir aos filhos uma educação clássica facultada inicialmente pelo pintor Geoffroy-Alphonse Chocarne, e depois por Joseph Guichard, que fora aluno de Ingres e lhes inculcaria o sentido do rigor na composição do desenho.
É Camille Corot quem, corroborando os conselhos de Guichard, as inicia ao ar livre para que usufruam por inteiro a importância então reconhecida à paisagem natural.
Entre 1861 e 1863, Berthe Morisot passa algumas semanas de verão na companhia de pintores paisagistas entre Ville d’Avray e Auvers.
Infelizmente conhecem-se poucas obras de Berthe dos seus primeiros tempos enquanto artista, já que, insatisfeita, ela destruía-as com demasiada frequência.
É no Louvre, aonde passa dias a copiar obras alheias, que Berthe conhece Manet, que lhe é apresentado por Henri Fantin-Latour. Não tarda a servir-lhe de modelo para o quadro «A Varanda» (1868).
Berthe integra-se, então, numa tertúlia, que conta com Edgar Degas, Pierre Puvis de Chavanne, Mallarmé e Zola, discutindo acaloradamente sobre o sentido das novas expressões artísticas.
Uma das suas obras mais antigas data de 1871 e é um “Retrato da Srª Pontillon”, ainda muito influenciada pelos seus amigos impressionistas. Mas convicta do seu talento, Berthe Morisot dedica-se aos seus quadros com o empenho de quem pretende participar ativamente na revolução estética, que depressa se imporá aos cânones académicos.

terça-feira, julho 28, 2015

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: «Táxi» de Jafar Panahi

Ao que se sabe as condições de detenção domiciliária do cineasta Jafar Panahi têm-se aligeirado, apesar de continuar impedido de mostrar as suas obras no seu país. É curioso como ele vai testando continuamente o nível de repressão a que o regime dos ayattollahs o vai sujeitando, mandando às urtigas a proibição para não filmar durante vinte anos e saindo de casa para registar o estado das coisas nas ruas de Teerão.
Se em “Isto não é um Filme” conseguia rodar uma longa-metragem sem quase sair da sua sala de estar, em “Táxi” ele retoma um tipo de narrativa já ensaiada por Abbas Kiarostami em “Dez”, mas com um fio condutor a nível do argumento, que rejeita a lógica de sketches do seu compatriota.
A facilidade com que se executam pessoas, a censura através da qual o regime pretende manter a sua juventude no desconhecimento do cinema ocidental ou a pobreza responsável pelo crescimento da delinquência são alguns dos temas abordados por Panahi no filme em que assume o lugar de um taxista e vai partilhando o seu espaço em movimento com outras pessoas.
Há também a evidência das crendices populares, as palas com que a escola tenta cercear a liberdade das crianças ou as dificuldades das viúvas se não tiverem a defendê-las um testamento do marido quanto à ganância dos familiares.
Não estamos perante uma obra-prima, e nem o próprio Panahi o pretenderia. Mas temos aqui um testemunho muito impressivo sobre o que se passa hoje em Teerão. Uma sociedade feita de pessoas iguais a nós quanto às suas preocupações e ambições, mas com um regime político difícil de apear.
Como instrumento militante destinado a mexer alguma coisa nesse contexto, “Táxi” cumpre muito bem a sua missão. Até porque não tenhamos dúvidas: por muito que a censura impeça a sua ampla divulgação, ele andará agora de mão em mão através da clandestina distribuição de filmes, que constitui promissor negócio no Irão dos nossos dias.

SONORIDADES: os Canzonieri Grecanico Salentino

Na recente edição do Festival, que Sines dedica anualmente às Músicas do Mundo, estiveram presentes os Canzoniere Grecanico Salentino, que dão expressão à dança tarantina ao som da pizzica.
Se já tomáramos conhecimento desta tradição através da bailarina Anna  Dego, que se tem exibido entre nós com a formação dos Arpeggiata, esta versão parece ainda mais genuína, porque estamos perante um grupo apostado exclusivamente no aprofundamento do conhecimento e da divulgação deste género popular. Embora devamos reconhecer a seriedade com que Cristina Pluhar tem sido uma esforçada propagandista desta manifestação artística.
A partir da expressão corporal da dor decorrente de uma possível ferroada de tarântula, os povos do Sul de Itália encontraram forma de exorcizarem os seus sofrimentos.  E é a ela que os Canzoniere Grecanico Salentino se dedicam. O filme aqui linkado garante quase meia hora de prazer... 

domingo, julho 26, 2015

PALCOS: «As Raposas« de Lillian Hellman, no Teatro Aberto

Esperei pela última representação para ir ao Teatro Aberto ver «As Raposas» de Lillian Hellman.
Tenho sempre grandes dúvidas em me deslocar àquele palco: tenho a certeza de ir ver uma boa peça, bem interpretada, melhor encenada, com meios apreciáveis investidos no guarda-roupa e no cenário, mas … incapaz de me surpreender.
Quando quero regressar a casa galvanizado por algo de inesquecível não é ali que encontrarei espetáculo disso capaz. Ao contrário do que sucede quase sempre no Bando, muitas vezes no Meridional ou no Elétrico, e algumas vezes no Teatro do Bairro ou na Barraca.
No mesmo estilo de teatro mais tradicional a Cornucópia costumava sair-se bem melhor, mas, hélas, dificilmente nos poderá voltar a dar satisfações ao nível do que nos propiciou nos seus melhores anos.
Voltemos, então, à peça do Teatro Aberto para reconhecer que o texto de Lillian Hellman era estimulante ao demonstrar como a família pode ser um cenário de guerra tremendo com ódios e falta de escrúpulos equivalentes aos dos mais impiedosos campos de batalha. E a origem dessa luta sem tréguas tem a ver com a mesma ganância, que constatáramos no personagem de Michael Douglas em «Wall Street»: o capitalismo atiça o que de pior pode haver de egoísmo na espécie humana. E que importam os ordenados justos e os direitos laborais se os acionistas das empresas querem sempre mais e mais lucros?
Escrita em 1939, a peça da escritora norte-americana mantém a devida atualidade, podendo ajustar-se perfeitamente ao que constatamos nos nossos dias.
Na interpretação, embora Luísa Cruz não seja Bette Davis (que desempenhou o mesmo papel na adaptação que William Wyler fez para o cinema em 1941) consegue credibilizar a frieza da mulher apostada em cumprir todos os seus sonhos nem que para tal avance até ao homicídio.
João Perry é  superlativo no desempenho do banqueiro a quem a doença fez vislumbrar uma realidade de que não se tinha dado conta e que descobrirá já não ter condições para mudar.
O restante elenco cumpre bem o que dele se espera nessa sucessão de crises em que os momentos de tensão quase nunca chegam a gerar outros de distensão passíveis de aligeirar o tom em que tudo ocorre.
No final o público foi comedido nas palmas, porventura por sentir que se tratou de mais uma experiência tipo chiclete: mastigou-se e deitou-se fora.  Daqui a umas semanas já poucos se lembrarão de ali ter estado a ver meia dúzia de vidas a desfilarem à sua frente durante duas horas. 

PALCOS: «As Raposas« de Lillian Hellman, no Teatro Aberto

Esperei pela última representação para ir ao Teatro Aberto ver «As Raposas» de Lillian Hellman.
Tenho sempre grandes dúvidas em me deslocar àquele palco: tenho a certeza de ir ver uma boa peça, bem interpretada, melhor encenada, com meios apreciáveis investidos no guarda-roupa e no cenário, mas … incapaz de me surpreender.
Quando quero regressar a casa galvanizado por algo de inesquecível não é ali que encontrarei espetáculo disso capaz. Ao contrário do que sucede quase sempre no Bando, muitas vezes no Meridional ou no Elétrico, e algumas vezes no Teatro do Bairro ou na Barraca.
No mesmo estilo de teatro mais tradicional a Cornucópia costumava sair-se bem melhor, mas, hélas, dificilmente nos poderá voltar a dar satisfações ao nível do que nos propiciou nos seus melhores anos.
Voltemos, então, à peça do Teatro Aberto para reconhecer que o texto de Lillian Hellman era estimulante ao demonstrar como a família pode ser um cenário de guerra tremendo com ódios e falta de escrúpulos equivalentes aos dos mais impiedosos campos de batalha. E a origem dessa luta sem tréguas tem a ver com a mesma ganância, que constatáramos no personagem de Michael Douglas em «Wall Street»: o capitalismo atiça o que de pior pode haver de egoísmo na espécie humana. E que importam os ordenados justos e os direitos laborais se os acionistas das empresas querem sempre mais e mais lucros?
Escrita em 1939, a peça da escritora norte-americana mantém a devida atualidade, podendo ajustar-se perfeitamente ao que constatamos nos nossos dias.
Na interpretação, embora Luísa Cruz não seja Bette Davis (que desempenhou o mesmo papel na adaptação que William Wyler fez para o cinema em 1941) consegue credibilizar a frieza da mulher apostada em cumprir todos os seus sonhos nem que para tal avance até ao homicídio.
João Perry é  superlativo no desempenho do banqueiro a quem a doença fez vislumbrar uma realidade de que não se tinha dado conta e que descobrirá já não ter condições para mudar.
O restante elenco cumpre bem o que dele se espera nessa sucessão de crises em que os momentos de tensão quase nunca chegam a gerar outros de distensão passíveis de aligeirar o tom em que tudo ocorre.
No final o público foi comedido nas palmas, porventura por sentir que se tratou de mais uma experiência tipo chiclete: mastigou-se e deitou-se fora.  Daqui a umas semanas já poucos se lembrarão de ali ter estado a ver meia dúzia de vidas a desfilarem à sua frente durante duas horas. 

SONORIDADES: «Clari», uma ópera de Jacques Fromental Halévy

Já o primeiro quartel do século XIX se concluíra, quando Maria Malibran - a grande soprano da época -, viu em Londres um espetáculo com uma trama, que lhe interessava: os amores entre uma camponesa e um grande senhor, inicialmente tidos por este como um divertimento, mas com a sua rendição incondicional quando pressentiu o fim abrupto daqueles encantos.
De regresso a Paris a cantora contactou Jacques-Frommental Halévy, na altura a trabalhar no Thêatre des Italiens, para que lhe compusesse uma obra com o mesmo tema.
Surgiu assim a ópera «Clari», que Malibran protagonizou na estreia ocorrida em 9 de dezembro de 1828 naquele mesmo teatro.
Na época a crítica foi entusiástica pela surpresa e ligeireza conseguida pelo compositor, que virou costas à grandiloquência da ópera tradicional e adotou um estilo italiano, que justificou com a classificação de «ópera semiseria».
Oitenta anos depois encontramos Cecilia Bartoli a protagonizar o mesmo papel num espetáculo estreado na Opernhaus de Zurique.
Fã confessa da antecessora, muito embora nunca possamos ter uma ideia concreta da excelência da sua voz tendo em conta o quanto ainda faltava para se inventarem os primeiros registos fonográficos, Bartoli interpretou o papel de Clari com entusiasmo contando com John Osborn num competente Duque e com uma encenação apostada em cores claras e primárias a que alguma crítica torceu o nariz por distrair o espectador daquilo que supostamente o deveria mais interessar: a grande música de Halévy.
A relevância atribuída por Cecilia Bartoli ao reportório de Maria Malibran foi tal que, posteriormente, lhe dedicaria um disco por inteiro. 

DIÁRIO DE LEITURAS: «Um Veio de Loucura» de Alice Munro

É o conto mais longo da coletânea «O Progresso do Amor», que me deu o ensejo de conhecer o universo e a escrita da canadiana Alice Munro, já depois de a ver galardoada com o Nobel.
Do que dela tenho conhecido, confesso-me longe da rendição. Só para falar de vizinhos do sul, a Academia Sueca bem poderia ter optado por Don DeLillo ou James Salter se a ideia era premiar um autor da América do Norte. Mas bem sabemos como os desígnios do júri de Estocolmo são quase tão insondáveis como os que se atribuem a Deus.
Temos agora como protagonista a primogénita de um casal de agricultores. Opal Violet, que cedo descobre uma evidência: “no mundo que ela conhecia, havia sempre muitas coisas obscuras e os adultos gostavam pouco de que lhes fizessem perguntas.” (pág.210).
Cumprido o liceu ela está a estudar para professora, quando se enamora de Trevor Auston, ele próprio a acabar a ordenação para pastor da Igreja Unida, uma religião ainda mais severa do que a Anglicana a que ela se habituara em criança. Mas o noivado dissolve-se, quando ele compreende a impossibilidade de nela detetar as características de mosca morta, que considerava imprescindíveis à condição de mulher de um clérigo.
É que cartas anónimas a ameaçarem de morte os pais obrigam-na a voltar a casa e a descobrir quem afinal as escrevia: a sua irmã Dawn Rose, que parecia padecer de uma espécie inquietante de loucura. Torna-se incontornável o dever de ali ficar para dar alguma aparência de ordem à desestruturação evidente da família.
Os anos passam e o pai morre. Depois, as irmãs empregam-se na fábrica de sapatos e casam, deixando-a sozinha em casa com a mãe. Violet está então empregada nos escritórios da empresa municipal de telefones e a partida da maioria dos homens para a Segunda Guerra Mundial facilita-lhe a rápida promoção a gerente.
Dawn morre de trombose, cabendo a Violet cuidar do sobrinho Dane, a quem não passa despercebida a relação clandestina da tia com Wyck Tebbutt, um agente de seguros que, em tempos, jogara basebol.
Numa história, que decorre ao longo de várias décadas, voltamos a encontrar Dane como adulto a viver da sua profissão de arquiteto e partilhando a casa com o amante, Theo, que é assistente social.
Não tardará que esse sobrinho assista à progressiva degenerescência de Violet: ela chega a pegar fogo à sua casa, quando decide queimar uns papéis. Três dias depois morre no hospital, talvez de reação retardada ao choque causado por tal sinistro.
O que dizer de uma história tão anódina? É verdade que está bem escrita, com personagens mais consistentes do que a sua eventual redução a estereótipos se caíssem na alçada de escritores menos talentosos. Mas pode estranhar-se que Alice Munro, tanto afiance ter sido Violet a primeira a comprar carro na sua região natal, e páginas depois dê essa “honra” a uma vizinha de Annabelle, quando a protagonista ainda nem sequer ali se voltara a radicar.
Após mais de duzentas páginas lidas, posso já concluir que a escrita de Alice Munro alimenta-me alguma curiosidade, mas desperta-me um entusiasmo assaz comedido... 

sábado, julho 25, 2015

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: «Too Big to Fail» de Curtis Hanson

Em setembro de 2008 pouco faltou para que o sistema capitalista entrasse em colapso e desse origem a um caos coletivo de consequências imprevisíveis.
A tal ter sucedido não é possível imaginar o que teria surgido em seu lugar. Uma sociedade apocalítica ao estilo de «Mad Max»? Ou uma sociedade devolvida à utopia marxista, a única teoria ainda capaz de antepor uma alternativa viável à atual exploração do homem pelo homem?
Em 2007 a economia americana via-se sacudida pela crise dos subprimes. O mundo vacila, mas a compra da Bear and Sterns pelo J.P. Morgan faz crer na capacidade regeneradora do sistema bancário internacional...
Nomeado por George W. Bush para o cargo de Secretário do Tesouro, Henry Paulson vê-se incumbido de elaborar um plano para salvaguardar os bancos dos riscos de uma falência generalizada. As somas investidas para tal - 700 mil milhões de dólares - representam o mais avultado investimento alguma vez programado para evitar um crash financeiro.
Para o ajudar, Paulson conta com Neel Kashkari, que, a seu exemplo, viera da Goldman Sachs…
No verão seguinte a crise anterior potencia-se em efeitos mais gravosos: o quarto maior banco dos EUA, o histórico Lehman Brothers, surge à beira da falência. Os mercados entram em pânico, as ações caem a pique, o sistema bancário ameaça ruir a nível global .
Durante várias semanas a Administração americana tenta encontrar soluções para evitar o pior, ajudando os bancos causadores dessa crise.
Três anos depois a cadeia televisiva HBO apresentou este thriller entusiasmante, ao  associar estratégias políticas, dados económicos e rivalidades humanas num mesmo pacote.
Baseado numa investigação jornalística assinada por Andrew Ross Sorkin e publicada no New York Times, a intriga escalpeliza os mecanismos da crise financeira  à medida que acompanha a batalha de Henry Paulson para a resolver.
Reuniões ao mais alto nível, conferências de imprensa para acalmar os mercados, tentativas de sedução do Congresso, pressões destinadas a conseguir o envolvimento do setor privado. Eis algumas das estratégias seguidas pelos colaboradores de Paulson. Que compreendem a estupidez de se ter desregulamentado o setor, desde então lançado numa vertigem descontrolada em busca de lucros exponenciais.
Realizado por Curtis Hanson e interpretado por atores da dimensão de William Hurt ou Paul Giamatti, «Too Big To Fail» mostra uma corrida contrarrelógio  para estancar u  processo aparentemente irreversível…
Desta feita conseguiram. E para a próxima? 

PLANOS CRUZADOS: Vampirizações

Há menos de um ano já aqui escrevi um texto sobre Amy Winehouse a pretexto de um documentário de Andreas Kanonenberg. Nessa altura recordei aquele breve instante em que com ela nos cruzámos numa avenida de Londres:
“Pessoalmente será difícil que venha a esquecer um determinado dia de julho de 2010, quando saía de um restaurante grego de Marylebone Road e a Elza, que se adiantara a chegar à rua, me apertou a mão para chamar a atenção de quem connosco se estava a cruzar tomando a direção da Regent Street, e vinda dos lados de Camden onde morava.
Com o seu penteado característico, e seguida de um dos seus guarda-costas, Amy Winehouse denotava alguma dificuldade em manter um rumo certo para os seus passos e desapareceria do nosso olhar atento, quando virou para os lados de Piccadilly Circus.
Esse deixou de ser o dia em que estivéramos numa das mais elevadas colinas de Londres (Primrose Hill), percorrêramos o Regent Park ou andáramos a passear o olhar pelas muitas obras da Wallace Collection, porque passou a ser aquele em que estivemos cara-a-cara com Amy Winehouse. Mesmo sem adivinharmos que, daí a um ano, ela morreria de forma trágica desmentindo quem não queria acreditar num desenlace à medida de outros grandes nomes da música também desaparecidos aos 27 anos.”
Agora, a pretexto dos quatro anos entretanto decorridos desde a sua morte, estreou-se em Lisboa um outro documentário sobre a cantora, merecendo honras de primeira página nalguns jornais e notícias aprofundadas nas televisões. Mas, desta feita, confesso-me pouco estimulado pela ideia de me deslocar para ver tal filme. Muito embora até seja provável uma maior identificação com a opinião deste realizador, Asif Kapadia, do que com a do que me levara a escrever o texto do ano transato.
É que, ao contrário de Kanonenberg, Kapadia atribui grande responsabilidade pelo sucedido ao pai de Amy, que dela só quis saber quando a soube bem sucedida e capaz de lhe garantir proveitos apetecíveis. Sem que deixe de considerar as próprias culpas do ex-namorado e da própria Amy!
A exemplo de outros «anjos caídos» da história do rock, Amy não aguentou a pressão de se converter num produto de grande consumo, sem que ninguém desse particular atenção às carências afetivas jamais satisfeitas. E a imagem da sua degradação só fez ganhar valor comercial ao produto que encarnara. Sob a capa da falsa compaixão, o público adora vampirizar ídolos com cuja queda secretamente se congratula.
E é precisamente isso que me leva a passar ao lado do filme de Asif Kapadia: é que denunciando essa utilização abusiva de Amy enquanto pessoa, ele não deixa de fazer exatamente isso mesmo... 

DIÁRIO DE LEITURAS: «A Lua na Pista de Gelo de Orange Street» de Alice Munro

“Sam teve uma surpresa ao entrar na loja de miudezas de Callie. Esperava encontrar o espaço atravancado de artigos de mercearia, guloseimas e rolos de papel, um odor a bafio, quiçá decorações natalícias do ano anterior já descoradas. Em vez disso descobriu que o local estava essencialmente tomado por jogos de vídeo”. (pág. 135)
Este início do conto «A Lua na Pista de Gelo de Orange Street» remete para uma das características, que vou identificando na obra de Alice Munro: a falta de correspondência entre as conjeturas de um personagem e a realidade com que se confronta num contexto diverso ao que em tempos viveu no mesmo espaço.
Sam tem 69 anos, é viúvo e para em Gallagher no percurso para casa da filha na Pensilvânia. Pensionista endinheirado, vem reencontrar o passado, que ali determinara muito do que viera a ser.
Conhecera Callie quando ela tinha 19 anos e trabalhava na hospedaria Kernaghan, aonde ele e o primo Edgar se tinham alojado para frequentarem a escola comercial.
Devido ao corpo franzino Callie conseguia esgueirar-se pelo telhado da pista de gelo e aceder a uma porta nas traseiras por onde eles entravam para irem patinar à borla. No inverno repetiam essa aventura às segundas-feiras por ser o dia em que a patroa dela ia jogar bingo ao Legion Hall.
Numa dessas noites os rapazes violam Callie, que reage entre chateada e submissa.
Dias depois, temeroso de tê-la engravidado os rapazes decidem fugir para Toronto.
“Não era a primeira vez que Sam se sentia metido em sarilhos, mas das vezes anteriores ele sabia exatamente em que consistia esse sarilho e qual o castigo que o esperava e conseguia imaginar uma saída. Agora, sentia que  havia sarilhos  cuja extensão não conseguíamos abarcar, e cujo castigo era impossível prever.” (pág. 154)
Quando já se julgavam a salvo, com o comboio a despedir-se da estação de Gallagher, Sam e Edgar veem Callie, disfarçada de rapaz andrajoso, sentar-se a seu lado.
“Os três seguiram em frente, e (…) muita coisa aconteceu. Ele próprio sentiu, nesses  humilhantes e confusos primeiros dias em Toronto, que um lugar como aquele, uma grande cidade, com as suas estreitas e sombrias ruas da baixa, com os seus edifícios de decoração austera, e permanente movimento de pessoas e estrepitosos carros elétricos, podia ser o lugar certo para si. Um lugar para trabalhar e ganhar dinheiro.” (pág. 160)
Não tardaria que Callie e Edgar casassem e regressassem a casa da menina Kernaghan, que descobrira não poder viver sem eles. Ela nunca engravidara e vivia ainda com esse homem que, tendo sofrido um ataque há quatro anos, não saía defronte da televisão.
Passara-se meio século, mas Sam constata algo que o intriga: “ Aquele momento de felicidade partilhada permaneceu para sempre na mente de Sam, mas ele nunca chegou a compreendê-lo. Significarão tais momentos aquilo que aparentam - ou seja, que temos uma vida de felicidade, com a qual só nos cruzamos ocasionalmente e de forma consciente? Lançarão eles uma tal luz antes e depois que tudo o que aconteceu - ou que fizemos acontecer - nas nossas vidas pode ser dissolvido?” (pág. 162)
Nota: conto inserido na coletânea «O Progresso do Amor»,  Relógio de Água, 2011