quinta-feira, setembro 29, 2016

(L) «O Escrivão Público» de Tahar Ben Jelloun (IV)

Ao regressar a casa para viver alguns períodos de férias, o narrador olha para os pais e interroga-se se eles terão sentido alguma vez amor entre si: “Há tanto silêncio e incompreensão a pesar na vida deste casal que, à força de pudor, excluiu das suas relações toda a ternura.” (pág. 143)
Se eles lhe parecem distantes, o país natal suscita-lhe sentimentos contraditórios. Por um lado reconhece que “o país não vai na minha mala; fica no seu lugar, inamovível, presente em cada uma das minhas palavras, nos meus gestos, nas minhas ilusões. Não falo de recordações. Este país não se reduz a esse estado de coisas”. (pág. 146)
Mas, meia dúzia de páginas adiante reconhece que cada regresso a casa acontece por necessidade de sobrevivência, de tantas saudades. Sofridas: “quando cá volto apenas percorro o longo caminho do Inverno, procurando uma saída no labirinto, uma porta que dê para um espaço despido, branco, afastado do pensamento e da recordação.” (pág. 152)
A pacificação final com o espaço identitário acontece uma noite, num café de Tânger, depois de o ver encerrar as portas, e sentindo-se ali eivado de uma emoção clarificadora: “ Vou passar a noite nesta cadeira, sem fechar os olhos, sem pedir ajuda. Esperarei, acorrentado a mim mesmo, liberto da minha sombra, com um rosto que sei sereno e um coração reconciliado com o país interior, a terra que respira, vive e avança. Esperarei até que apareça com a aurora o rosto da amada, o único capaz de me levar para casa, para todos os lugares em que os meus pés descalços são aquecidos pelas pedras da ilha, para todos os lugares em que o rosto desmente o desespero de viver, e nas mãos delas nascem as estrelas da manhã.” (pág. 162)
Conclui-se, assim, esse encadeamento de retornos ao passado, que ainda evoca muitos dos pressupostos do «nouveau roman». A busca da identidade faz-se através do questionamento do tempo, da história, da morte, dos motivos da errância, do exílio, da angústia sem esquecer o poder das palavras.  O romance não deixa de ser uma interrogação sobre a escrita em si e sobre a experiência extática do escritor.


(L) A correspondência entre dois grandes artistas

Uma das lendas mais consolidadas no mundo das artes é a da rutura entre Cézanne e Zola em 1886 na sequência da publicação por este último de «A Obra», que retrataria de forma pouco lisonjeira o seu amigo de infância.
Essa história está tão divulgada que, ainda há poucos meses, justificou um filme estreado em França e que tinha precisamente por tema as circunstâncias de tal corte.
Ora o  próprio Zola foi muito claro quando confessou ter procurado integrar na personalidade de Lantier os quatro tipos humanos mais influenciados hereditariamente pelo que se pode reconhecer na nossa espécie: o assassino, a prostituta, o padre e o artista. Não havia nele qualquer intenção de colar a tal personagem uma específica referência biográfica.
A publicação «Lettres Croisés», que reúne a correspondência dos dois artistas entre 1858 e 1887 permite desmistificar os motivos do afastamento verificado após essa última data.
A amizade entre o futuro escritor e o futuro pintor iniciara-se quando ambos estudavam no liceu de Aix em 1853 ou 1854, e perduraria durante mais de trinta e cinco anos, apesar de irregular no condicionamento de passarem grandes temporadas sem se verem. A escrita funcionava, então, como paliativo apesar da conhecida preguiça de Cézanne em exprimir-se pela palavra. Mas as afinidades reconhecidas nessa juventude, prolongar-se-iam com o interesse pelos mesmos temas e tertúlias artísticas, e uma recusa comum ao academismo e às convenções.
Esta edição constitui a primeira tentativa de agregar as 115 cartas, que sobreviveram às vicissitudes do tempo, e cuja importância pouco deve às alusões sobre as respetivas vidas familiares ou sociais, porque representam a ilustração do pensamento de ambos quanto aos motivos e às estratégias criativas, que andavam a ensaiar.
A explicação mais plausível para Cézanne não voltar a contactar Zola depois da carta de 4 de abril de 1886, é a de um desejo subconsciente de impossibilitar a substituição do pai verdadeiro, recentemente desaparecido, por um progenitor de substituição não menos terrível e suscitador de angústias, apesar da inequívoca generosidade. É que, por mais de uma vez, o escritor vira-se ripostado sem cerimónias por um artista com pouca capacidade de aceitação de outras perspetivas, que não as suas. Daí que Zola tenha sempre presente os cuidados a investir no que lhe escreve para evitar ofendê-lo.
E, no entanto, as conceções de ambos, em suportes diferentes - num a escrita, no outro a tela! - equivalem-se amiúde em idêntica paixão pelo real e sua representação. Uma das limitações deste livro é o facto de as cartas remeterem para conversas por eles tidas presencialmente e que complementavam com os textos, que depois trocavam.
Poderíamos, por exemplo, atribuir a Cézanne o texto efetivamente assinado por Zola no «Figaro» em dezembro de 1892: “Quando evoco os objetos que vi, revejo-os tal qual são nas suas linhas, formas, cores ou sons. Faço-lhes uma materialização à revelia da sua presença. A luz que os iluminava continua a impressionar-me, o odor a sufocar-me. Mas os detalhes são tantos, que me impedem de ter uma visão de conjunto. Daí que necessite de algum tempo para os voltar a recapturar.”
A harmonia é outro conceito, que está nos textos de ambos, embora pertença a Cézanne esta afirmação: “ Pintar não significa copiar servilmente o objeto: é captar uma harmonia entre inúmeras relações. É transpô-las numa gama pessoal, desenvolvendo-as numa lógica nova e original.”.
Atendamos agora a um exemplo do que, a tal propósito, escrevia Zola: “utilizo as harmonias ao inverter a ordem das palavras nas frases, conseguindo um efeito sonoro do mudo significado das coisas.(…) A verdade é sentir-me um poeta com as obras a construírem-se como se fossem grandes sinfonias musicais.”
Apesar desse distanciamento, que hoje se rejeita ter-se tratado de uma rutura - quantos de nós nos afastámos de antigos amigos aos quais já nada de novo nos sobrava para dizer? - pode-se concluir pela cumplicidade tácita do que ambos criaram depois de 1887. Porque, quer um, quer outro, poderiam ter subscrito o que Zola escreveu sobre o conceito da composição: “Notaram como construo os meus livros? (…) Eles são labirintos onde encontram, se os olharem de perto, os vestíbulos e os santuários, os espaços abertos e os que são secretos, os corredores sombrios e as salas iluminadas. São monumentos, ou seja, numa só palavra, são composições.”
O que «Lettres Croisés» aclara é uma fraternidade artística baseado numa visão contrastada, contraditória e dialética do mundo natural e humano.

quarta-feira, setembro 28, 2016

(L) «O Escrivão Público» de Tahar Ben Jelloun (III)

O narrador do romance que Tahar Ben Jelloun não assumiu como autobiográfico, mas também o não desmentiu, chega à vida adulta com a nomeação para ensinar filosofia num liceu de Tetouan. Depois da experiência de prisão durante dois anos, por causa das ideias políticas, a intenção é dedicar-se o mais possível à profissão.
Mas as dificuldades não tardam: “Alguns pais viam em mim um elemento subversivo semeando a dúvida, encorajando a contestação, suscitando debates e questões numa cidade fechada, tranquila, sossegada, conhecida pelo seu respeito religioso dos valores seguros tradicionais, uma cidade onde nada deveria mudar, cidade do imutável, ecrã erguido diante das torpezas vividas secretamente.(pág. 94)
O sentimento de asfixia diluir-se-á com a chegada a Paris em 11 de setembro de 1971. Não era a primeira vez que ali estava, porque a visitara fugazmente em anos anteriores. Mas agora a intenção era estudar e escrever, nomeadamente sobre os seus compatriotas emigrantes cujas condições reais desconhecia.
“Paris era, antes de mais, a cinzentez naquelas caras compostas, naqueles corpos gastos, naqueles olhares desalentados. Em Marrocos, eu não estava ao corrente. Os emigrantes estavam longe. Nunca se falava deles. Víamo-los chegar no verão em grandes carros sobrecarregados. Algumas pessoas invejavam-nos. Ninguém os lamentava. Eles próprios calavam a realidade das suas condições de vida e de trabalho. Evocavam apenas o lado bom. Inventavam para si um sonho, recordações iluminadas e radiosas. A imagem assim embelezada devia preservá-los de um destino infeliz. Era assim que resistiam!” (pág. 103)
Convenhamos que o retrato social aqui descrito por Jelloun nada difere da que correspondia aos nossos compatriotas por essa mesma época nos bidonvilles.
Nas primeiras cem páginas do romance nunca se sentiu uma ligação do autor à religião maioritária na sua cultura.  Por isso mesmo é com alguma surpresa, que o vemos descrever a peregrinação a Meca concretizada quase logo a seguir: “ao princípio eu estava completamente perdido. Não conseguia libertar-me do entorpecimento que me invadira. Não me reconhecia de todo naquela desordem de cor, de barulho e de pó. Parecia um turista ridículo, esgazeado no meio de uma fauna estranha, particularmente à vontade e até de bom humor”. (pág. 117)
Sente-se então um desenquadramento do narrador em relação aos locais onde vai passando, nunca se sentindo verdadeiramente identificado com nenhum deles. Se a capital parisiense lhe suscita a sensação de nunca deixar de ser um estrangeiro, os episódicos regressos a casa fazem-no sentir como já ali não pertencendo.
O romance tende a revelar-se uma tentativa de ordenar o caos interior suscitado por valores, estímulos e inquietações que o desorientam, o pressionam a encontrar uma âncora efetiva aonde se possa fixar.

terça-feira, setembro 27, 2016

(V) Debaixo do gelo, um oceano

A notícia da confirmação de existência de um oceano de água debaixo da espessa camada de gelo do planeta Europa, que se junta a Encelade nessa característica, não é propriamente uma novidade para os cientistas. A hipótese já era consistente e só carecia ser demonstrada na prática.
O interesse maior do que se passa nessas duas luas de Júpiter tem a ver com a nossa sempiterna necessidade de sacudirmos o sentimento de solidão de quem olha para a vastidão do Universo e se crê nele sozinho. Se a água - elemento fundamental da criação da Vida - é tão frequente no Sistema Solar, decerto o será também nos milhões de planetas já acessíveis aos nossos telescópios.
Presumimos que a vida extraterrestre existe. Só falta encontra-la e com ela interagir...

(L) Em busca das emoções cinéfilas perdidas

Para David Thomson quem vê um filme torna-se de alguma forma seu autor. E este é um conceito com que me identifico cada vez mais. Se houve um tempo em que me preocupavam os filmes como obras de arte, e como tal consideradas, essa conceção do cinema, ainda que não totalmente abandonada, vai dando lugar à de responder a esta questão: o que me dizem essas imagens? Que efeito têm em mim? Mudam algo no que sei ou no que penso ou são tipo chiclete que tão só mastigada é atirada para o caixote do lixo?
Interessam-me os filmes de que me aproprio, que me levam a pensar no que seriam se a narrativa fosse a de um dos seus personagens secundários, ou como eles evoluiriam depois de concluída a passagem do genérico final.
É por isso que, muitas vezes, quem escreve sobre filmes está de algum modo a descrever-se, a revelar-se.
Estamos, porém, a constatar um declínio do cinema, que deixou há muito de ser o grande momento da semana vivido por famílias inteiras nos tempos das salas com oitocentos ou mil espectadores. Era uma época em que se produziam menos filmes e eles conseguiam cativar um público mais alargado. Daí que nenhum dos muitos filmes hoje rodados sobre a crise financeira de 2008 consiga ter o impacto e a relevância de «As Vinhas da Ira» cujo tema tinha a ver com os efeitos da Grande Depressão de 1929.
Ademais, se o acesso aos filmes estava cingido à programação das salas de cinema, com a chegada da televisão, dos clubes de vídeo, da internet e das power boxes ficou facilitado o acesso à descoberta de qualquer título objeto do nosso interesse, encontrando-o rapidamente disponível numa das múltiplas plataformas disponíveis. O problema é que as condições para os ver são quase sempre deficientes em relação ao que significavam numa sala de cinema, quanto mais não seja por serem irreproduzíveis o impacto do ecrã de 70 mm ou o deslumbramento do technicolor.
Não  se pode, igualmente, considerar que se vê cinema como era visto no passado, porque a atenção concentrada de então passou a ser desviada pelos sons das pipocas nas salas multiplex ou pela atividade circundante no ambiente caseiro.
Conclua-se com o efeito perverso do ainda remanescente star system em que tantos filmes são ou não viabilizados pela industria em função de com quem se conta em cartaz, continuando-se a dar atenção prioritária a quem interpreta o filme em vez de se cuidar sobre o que ele trata.
Para quem vive a cinefilia há já umas quantas décadas não é fácil continuar a ter o prazer encontrado em tempos idos. Restam-nos poucas salas comerciais, a Cinemateca e os Festivais (Indie, DocLisboa, etc) para viver a Sétima Arte como algo mais do que um entretenimento passageiro. Continuando em busca de experiências exaltantes... 

segunda-feira, setembro 26, 2016

(L) A libertação sexual nos Himalaias

Nos contrafortes dos Himalaias os Mossos reinventam as relações amorosas e o papel das mulheres nas sociedades ditas tradicionais, de acordo com um reportagem agora publicada no «Libération Voyages».
Segundo Pierre de Vallombreuse, que os andou a visitar, a mulher é quem dá o nome à descendência sendo o homem albergado em casa dos sogros. A educação dos filhos não é confiada ao pai, mas ao tio materno. E é a mulher quem tudo possui: os bens, o dinheiro e a casa.
Um provérbio deste povo diz que o homem é como a água da chuva na erva, porque pouco importa quem a rega, o que conta é a mulher que é regada.
Os hábitos sexuais também espantaram os ocidentais: quando uma rapariga chega à adolescência costuma-se-lhe dar um quarto no rés-do-chão para que possa aí receber os amantes. Quando um par de jovens são do agrado um do outro apertam a mão ao mesmo tempo que fazem cócegas na palma, o que significa que um espera o outro nessa mesma noite.
Estes costumes já surpreendiam os chineses que, a propósito das mulheres  mossos costumavam dizer que elas copulam desabridamente e sem nuca se casarem.
Hoje todas estar tradições estão a converter-se numa espécie de folclore com fluxos de turistas a ir visitá-los para darem largas ao seu voyeurismo lúbrico. O próprio Vallombreuse conta ter vivido uma situação delicada depois de um funeral quando no albergue local viu as mulheres nele envolvidas a comerem e a beberem, optando por vencer a tristeza escolhendo homens para levar para os quartos do primeiro andar.

domingo, setembro 25, 2016

(L) «O Escrivão Público» de Tahar Ben Jelloun (II)

O protagonista deste romance de Tahar Ben Jelloun - que se confunde com o narrador e o próprio autor! -,  sente como traumatizante os dois anos de internamento obrigatório num campo disciplinar para quem tinha atividades contestatárias: “a aldeia de Dew Teït fica a uns trinta quilómetros de Meknés. Uma aldeia pobre e rude onde o ar é puro, incrustada no alto de um penedo na orla de uma mata de pinheiros de cedros” (pág. 70)
É curioso como, na época, a repressão das atividades revolucionárias assumia sempre a forma de degredo para regiões  periféricas, só variando na dureza, porque não se pode comparar a aqui exposta, ou a vivida por alguns italianos nalgumas ilhas adriáticas durante o consulado mussoliniano, e a recorrida pelo salazarismo com o campo da morte lenta no Tarrafal.
A explicação sobre o título acontece num pequeno episódio, bastante secundário, quando se dirige para lá. Passa-se no comboio onde encontra  alguém que dizia ter sido escrivão público: “ainda me lembro do rosto daquele homem, sem idade, rosto marcado pela inquietação e pelo tormento. Dir-se-ia, pela cor da pele, que vinha do deserto. Recordo ainda com precisão os longos olhares, a voz dele.” (pág. 73)
Esse tempo de espera faz com que perca a primeira namorada com quem a relação sempre fora inibidora de verdadeira realização afetiva: “A presença da tradição e das convenções sociais fez com que a nossa sexualidade tivesse sido enferma, inacabada, frustrada» (pág. 57)
Quando regressa a casa sente-se mudado: “É curioso como a gente se habitua, até mesmo à ausência de carícias. Esquecemo-nos. A vida deixa de ser ritmada pelo desejo. Nem sequer temos saudades disso”. (pág. 83)
Em março de 1965 assiste ao levantamento de Casablanca com miúdos, homens e mulheres sem trabalho  a insurgirem-se contra a miséria em que viviam e a acabarem massacrados: “Talvez que se não tivesse vivido esses dias de terror e de angústia em que me era revelado o rosto banal, vulgar, brutal da ordem e da injustiça, talvez eu nunca tivesse escrito”. (pág. 88)
Nesta confissão temos um dos motivos mais nobres do escritor: contar o quanto se viveu, dando conta das arbitrariedades com que nunca será possível ficar conformado. Porque as vítimas carecem ser recuperadas do esquecimento e, se possível, vingadas com a imposição de uma outra ordem política capaz de lhes devolver tardiamente a razão.
Tetouan é onde se radica a seguir num périplo, que já se adivinha não se conformar com as fronteiras do país ou do continente para satisfazer a vontade de encontrar maior realização pessoal: “Cidade asmática, cidadela de aparência, um corpo altivo, acoitando-se para lá do olhar e das mãos. Penetrar ali é uma audácia, uma ilusão. Mesmo o vento, quando lá chega, mais não faz do que andar às voltas” (pág. 91)
Os incessantes mergulhos na memória pessoal e no testemunho da História coletiva (não só o massacre de Casablanca, mas também os ecos das guerras - a Primeira Mundial, a da Argélia, a do Líbano) estilhaçam a linearidade da narrativa e da cronologia.
Até chegarmos ao final, quando está num terraço de café em Tânger, e sente-se reconciliado com o «país interior», ainda muito será resgatado da memória.

(V) Os homens querem-se bonitos e musculados?

«Curtes o meu corpo?»
Confesso a estupefação quando, no balneário do ginásio vi dois dos cultores mais entusiastas dos halteres a terem esse tipo de diálogo um com o outro.
Por natureza tento livrar-me o mais possível dos preconceitos homofóbicos alimentados por esta sociedade demasiado inquinada pelos valores do salazarismo-cerejeirismo, mas estranhei o tipo de conversa, que não fizera por alcovitar, antes acontecia com toda a naturalidade ali ao meu lado.
Recordei este episódio ao ver uma reportagem da BBC sobre a moda masculina de dar grande importância à aparência do corpo. Não sei se o conceito de metrossexualidade é uma moda ou veio para ficar, mas a dos que andam horas a levantar pesos para ganhar corpos musculados parece-me sustentável tanto mais que a peça jornalística interroga cada um dos jovens ali entrevistados e todos são unânimes em reconhecerem um passado como vítimas de bullying. Uns porque eram demasiado gordos, outros por serem trinca-espinhas, uns por serem tidos como muito feios, outros como excessivamente bonitos, todos contavam histórias pessoais agora justificativas do seu culto com o corpo.
Mas essa obsessão tem um lado negro, igualmente, inquietante: o do uso dos esteroides para acelerar a formação de ostensivos músculos. E isso constatei-o nesse mesmo ginásio onde um dos gerentes tinha conversas a meia-voz com alguns dos frequentadores daquele espaço sobre certos produtos especiais a que sugeria ter acesso.
O problema são as consequências colaterais da utilização dessas drogas, a maior parte delas comercializadas através da net, e causadoras de fulminantes AVC’s e outros problemas incapacitantes para quem delas abusa.
Há muitos anos um filósofo alemão procurava que se desse mais importância ao Ser do que ao Ter. Na época atual teria de ir mais longe, porque deveria enfatizar a supremacia do Ser em relação ao Aparentar. Porque essa é uma das mais absurdas vertentes dos nossos dias: aceitarmos viver numa sociedade pouco genuína, onde as máscaras escondem as verdadeiras personalidades de quem se socializa, criando problemas de identidade e desadaptação ao tortuoso mundo das aparências.


sábado, setembro 24, 2016

(V) «Julieta» de Almodovar

A maior diferença que encontro entre a maternidade e a paternidade está na dimensão do sacrifício, que se pode fazer pelos próprios filhos. No caso dos pais essa devoção passa, normalmente, por se garantir o máximo de rendimentos possíveis para que nada falte aos rebentos, enquanto no caso das mães essa capacidade de sacrifício vai até ao limite de se prescindir da própria vida.
Julieta assim o confirma. Convidada pelo namorado, Lorenzo, a vir para Portugal passar uma temporada enquanto ele escreve o próximo romance, um encontro casual com uma amiga de infância da filha muda-lhe subitamente os planos. Bea encontrara Antia numa povoação à beira do lago Como e soubera-a mãe de três filhos.
Para Julieta essa informação é a luz ao fundo de um longo túnel, iniciado anos atrás, quando, sem nada o fazer prever, a filha escapulira-se-lhe na sequência de um retiro nos Pirenéus.
A longa carta que escreve em sua intenção no apartamento alugado no prédio madrileno onde haviam vivido depois da morte do marido, permite a Julieta regressar às recordações passadas, que a tinham conduzido até ali já na condição de mulher de meia-idade.
Sabemos, assim, que visitara Redes, na Galiza, depois de viver um episódio, que lhe estimulara o sentimento de culpa: num comboio um homem inquietante dirigira-lhe a palavra, ela evitara-o e não tardaria a vê-lo atirar-se para debaixo da composição. Se o tivesse escutado poderia ter-lhe evitado desenlace tão trágico?
Acaba por ficar na província nortenha ao casar-se com Xoan, um jovem que vive da atividade piscatória no seu pequeno barco de que é único tripulante. Mas esse enlace obriga-a a conviver com a empregada, a sinistra Marian que lembra a srª Danvers na «Rebecca» de Hitchcock quanto ao amor inconfessado pelo patrão e pelo desejo de dificultar o mais possível a vida à rival por ele trazida para a residência.
Durante uma dúzia de anos vivem felizes apesar de Julieta não aprovar a relação do progenitor com a empregada marroquina, que contratara para cuidar da mulher durante o estado terminal da sua doença.
O drama acontece, quando Antia está num acampamento. Julieta empurrara Marian para a reforma compulsiva e ela vinga-se: antes dela ali viver Xoan passava as noites com Ava, uma pintora local, de que ela se tornara amiga, e continuara a fazê-lo nas ocasiões em que se deslocara à Andaluzia para visitar a mãe doente.
A vontade de rutura conjugal é imediata e Xoan sente-o ao chegar a casa e ela dali sair para dar um passeio junto ao mar. Ora, indo pescar nesse mesmo dia, ele morre no naufrágio suscitado pelo inesperado temporal, que se gera durante a tarde.
Para Julieta é forçoso sentir a culpa por ter tido do marido uma despedida tão oposta ao amor, que com ele vivera até então.
Essa culpa torna-se, então, no eixo da intriga, porque dela se sentindo possuída, Julieta não perdoa ao pai a traição a que sujeitara a mãe, numa réplica paralela à sua própria história.
Muda-se, então, para Madrid com Antia, que terá em Béa, conhecida no acampamento, a sua melhor amiga. Nos anos seguintes, até ela chegar aos dezoito anos, tudo quanto faz é canalizado para essa filha, cujos dias controla quase até à asfixia.
Desconhece que ela viveu os últimos anos a remoer-lhe a acusação de culpada pela morte do pai, já que soubera por Marian as circunstâncias de desequilíbrio conjugal, que poderia ter explicado o acidente de Xoan. E, chegada à maioridade, decidira castigar a mãe, não só aderindo a uma seita fanática, mas também sonegando-lhe qualquer informação quanto ao seu paradeiro. 
Cheguei a temer o pior, quando o final pareceu encaminhar-se para um xaroposo happy end, mas seria negar a Almodovar a sapiência outrora reconhecida a Douglas Sirk como o mais talentoso criador hollywoodiano de melodramas. 
O final em aberto deixa-nos perante múltiplas hipóteses que não deixam de conter uma inequívoca mensagem moral: o cuidado a ter quando se culpa alguém, porque, mais cedo ou mais tarde, essa prova de intolerância pode voltar-se contra nós.
Perfilho eu esta lógica? Não, definitivamente não. Assumo a costela intolerante, que me faz nunca poder desculpar quem, sobretudo na política, adota comportamentos arrivistas, delatores ou de prejuízo em relação ao bem comum. Mas não preciso de partilhar essa lógica moralista de Almodovar para concluir que estamos perante um dos seus melhores filmes de entre os que recentemente rodou.

sexta-feira, setembro 23, 2016

(V) «Os Dominadores» de John Ford (II)

O que eu admiro em John Ford é a sua posição de princípio ao manifestar a sua solidariedade com os realizadores, argumentistas, atores e muitos outros técnicos de cinema que, no auge da Guerra Fria, se viram perseguidos pela caça às bruxas em Hollywood. E reconheçamos que «As Vinhas da Ira» sempre integrará a História dos filmes mais progressistas de entre todos quantos foram feitos nesta sétima arte.
Diga-se em favor do realizador que, apesar de os convidar para serem os maus da fita, a contratação de índios navajos para figurantes dos seus filmes - deste e dos que se seguiriam! -, tinha um objetivo humanista a não esquecer: a remuneração por esse desempenho permitia-lhes mitigar a extrema miséria em que viviam.
Acrescente-se que transmite, igualmente, uma imagem subliminarmente positiva das nações índias, no quanto sentem orgulho pela sua cultura e tradições, apesar das contradições entre os seus mais jovens guerreiros e os velhos chefes, um dos quais amigo do personagem principal interpretado por John Wayne.
Ademais conclua-se, para desmontar os mitos sobre o belicismo de John Ford contra os índios, que, neste filme, só se veem efetivamente três brancos a serem por eles mortos, todos eles odiosos traficantes de armas.
Podemos, pois, considerar que, mesmo sendo um homem conservador, John Ford não se coaduna com uma certa imagem de racismo e de intolerância, que se lhe possa colar.
O título português é, nesse sentido, deturpador do sentido geral da história. Que pena ter sido preterida a tradução literal do original - «She Wore a Yellow Ribbon» - que, na utilização do seu tempo passado, condiz com a nostalgia por um universo em vias de ser eliminado, até pelo facto de Nathan Brittles deixar a vida ativa, onde imperara a integração num grupo, para se ver condenado à solidão de quem dela se retira.
Mas se podemos enfatizar o génio de John Ford não podemos esquecer os méritos do argumento, assinado por Laurence Stallings e Frank S. Nugent. Devem-se-lhe momentos lindíssimos como aquele em que, recortado no céu avermelhado do crepúsculo, Nathan confia à mulher, junto a cuja cova se perfila, o que fizera durante o dia. De repente cresce uma sombra na pedra e a câmara sobe para revelar a presença de Olívia, que lhe vem oferecer algum consolo. Ou também a cena exaltante em que desfilando uma última vez perante os homens, que comandara, recebe um relógio de prata, cuja inscrição o obriga a pôr os óculos para a ler (ideia de Wayne durante a rodagem da cena!).
As sucessivas revisões do filme justificam-se pela oportunidade em detetar os pequenos gestos, que diferenciam uma obra-prima de uma coisa banal carpinteirada por um tarefeiro. Momentos únicos como o de Brittles a dar um toque no ombro de Olívia para a confortar ou esse mascar de tabaco no momento de tomar as grandes decisões s~~ao disso lapidares exemplos.
Muito mais do que um filme de «cóbóis» este título de Ford merece ser reavaliado e valorizado como uma das grandes obras do cinema americano dos anos 40.

L) «O Escrivão Público» de Tahar Bem Jelloun (I)

Este romance recorre à máscara da autobiografia para, através de um escriba, cedo convertido em narrador habituado a efabular, contar a história da vida de um homem apressado, sempre dividido entre duas viagens e dois amores.
“Escreverei esta história em voz baixa na esperança de discernir a imagem desfocada do espalho. Trata-se de alguém que conheço bem, com que me dei durante algum tempo. Não é um amigo, é um desconhecido”. (pág. 7)
A exemplo do próprio Jelloun, o protagonista nasceu em Fez, passou uns anos em Tânger, exilou-se em Paris, fez a peregrinação a Meca e a Medina, regressando a Marrocos onde se passou a sentir um estrangeiro.
Na infância “tinha motivos para criar asas e propulsar-me na estranheza de várias vidas. Aprendi assim a olhar, a escutar e a rodopiar no ar. O sentimento de fragilidade não me foi de todo ensinado. Experimentava-o todos os dias. Eu mais não era do que um passageiro na infância. (pág. 23)
Podendo ser confundido com um romance de viagens, é sobretudo o itinerário de uma descida até à sensibilidade e ao imaginário com cada etapa a significar reminiscências de acontecimentos e emoções.
Na infância a doença prendeu-o tempo demasiado na proteção do lar: “Eu era uma coisita encolhida num canto da casa, um pequeno montículo que os assustava porque toda a vida, recusada, impedida, se me concentrara nos olhos. O meu olhar perscrutador metia-lhes medo. Como já sabem, eu via tudo, captava tudo nos mínimos detalhes. “ (pág. 23)
Quando ultrapassa essas limitações a reação é contraditória:  “Não me dava muito bem com a saúde. A gente habitua-se a tudo, até mesmo a uma residência de palha entrançada. Tinha saudades do tempo da alcova em que era mais livre, senhor do meu ritmo, feiticeiro e guardião dos meus sonhos. Estava curado, devolvido à massa de crianças a correr pelas ruas ou pelos corredores da escola”. (pág. 29)
O texto acompanha as experiências múltiplas do personagem-narrador, desde o quarto infantil onde, doente, inventava sinais, passando pelas ilusões e deceções da adolescência em Fez, cidade que lhe suscita comentário depreciativo: “Sinto falta do mar. Sinto falta da largueza do horizonte. É disso que mais sinto falta nesta cidade subterrânea, uma cidade clandestina, privada de mar, de cor e de horizonte. Deixo Fez como quem abandona uma esposa infiel ou uma má mãe.” (pág. 39)
A mudança para Tânger onde o pai vai lançar-se numa nova loja suscita-lhe reação mais animosa: “Os tempos eram difíceis e a disposição do meu pai nem sempre boa. Trabalhara toda a vida e via-se, aos cinquenta anos, ~tão pobre como no princípio. (pág. 46).
No próximo texto já apanharemos o narrador nessa adolescência eivada de inquietações.