quarta-feira, fevereiro 27, 2019

(C) Quando precisamos de inventar um Universo para fazermos uma tarte de maçã


Ao iniciar a leitura de «História da Origem—A Grande História de Tudo» veio-me à memória um colega, que conheci nos primeiros anos das minhas viagens marítimas. António Leitão, assim se chamava, era uma espécie de hippie retardatário, que assumia a intenção de trabalhar alguns meses por ano como oficial da marinha mercante para financiar as atividades a que estava ligado em terra, relacionadas com o que era então uma originalidade extravagante: um ideário ecológico.
Havia um paradoxo singular: das duas ou três vezes, que integrámos a mesma tripulação, os navios em causa eram petroleiros, cujo potencial poluidor era então muito maior do que atualmente o permite a legislação internacional. Mas o Leitão também tinha uma outra conceção interessante, que veria depois plasmada no pensamento de Edgar Morin: depois de todos os saberes acumulados na Antiguidade se terem aglutinado na Filosofia grega, haviam-se  dissociado em diferentes disciplinas, com elevada especialização em cada uma delas, urgindo reagrega-los em sentido contrário para possibilitarem leituras transversais mais aprofundadas.
No fundo, e aplicando a lógica da Segunda Lei da Termodinâmica, a da Entropia, o saber estruturado numa única disciplina há dois mil e quinhentos anos tendera para a desordem e procurara recuperar a sua consistência através de progressiva complexidade. Isso suscitara uma constatação possível nos idos dessa década de 1970 do século passado: alguns conceitos de diferentes disciplinas possuíam o mesmo argumentário lógico, mas adotando designações completamente diferentes, e em aparência nada tendo a ver umas com as outras.
O que David Christian faz com esta viagem por 13 800 milhões de anos ocorridos desde o Big Bang decorre do que o António Leitão pressupunha como fundamental: associar os saberes das várias ciências e conseguir uma interpretação tão científica quanto possível de como ter-se-á manifestado a evolução do nosso universo. Divide-a em quatro partes: o Cosmos, a Biosfera, Nós e o Futuro, possibilitando-nos a revisão ou a clarificação de tanto conhecimento acumulado pelas gerações dos cérebros humanos, que nos antecederam.
Infelizmente o António Leitão nem sequer suspeitou do que as décadas seguintes iriam significar na consagração do que, então, entendia como necessário: numa estadia em São Tomé foi apanhado ocasionalmente entre fogos de duas fações, que se combatiam durante um inesperado golpe de estado, e acabou mortalmente baleado numa valeta da capital da ilha.
(O título deste texto tem a ver com uma citação de Carl Sagan inserida neste livro)

terça-feira, fevereiro 26, 2019

(DIM) «Antes de Manhã», Gonçalo Galvão Teles (2007)


A filmografia portuguesa escasseia em títulos ficcionais, que tenham a Revolução de Abril como tema principal ou mesmo de segundo plano. Acaso me incumbisse de um ciclo alusivo ao acontecimento lembrar-me-ia do «Capitães de Abril» de Maria de Medeiros, do «Amanhã» de Solveig Nordlung e deste «Antes da Manhã» de Gonçalo Galvão Teles. Outros só com aturada pesquisa que, provavelmente, redundaria na decisão de acrescentar documentários à programação em causa.
O filme do realizador de «Soldado Milhões» parte-se de um conto publicado por Mário de Carvalho em 1999 - «Apuros de um pessimista em fuga» - onde deparamos com  um fotógrafo obrigado a fugir , quando a Pide o foi buscar á casa onde vivia. Procurando junto de familiares ou amigos quem o albergue na noite seguinte, depara com a cobardia medrosa dos que julgaria disponíveis para o apoiarem em tal transe.
Em voz off Mário vai partilhando a visão negativa do país sem imaginar quão próxima está a sua libertação. Mesmo quando de madrugada é demorado por um sem número de viaturas militares pejadas de soldados, crê tratarem-se de mobilizados para embarcarem até aos teatros de guerra africanos.
O desapontamento é imenso, quando chega ao encontro marcado com quem o poderá garantir a fuga para o estrangeiro e depara com a Calçada da Ajuda desértica à hora em que, junto a uma cabina telefónica, deveria ver alguém. Afinal esse já era, segundo Sophia de Mello Breyner Andresen, o “dia inicial inteiro e limpo. Onde emergimos da noite e do silêncio. E livres habitamos a substância do tempo.”
Para Mário deixava de haver razões para continuar a fugir e, quiçá, para se manter tão pessimista.

(S) A Fantasia segundo J. S. Bach , de Ferruccio Busoni

(C) A Física Quântica acessível a todos quantos a queira conhecer


Além de notável cientista, Richard Feynman foi excelente pedagogo, conhecido por dizer aos alunos de pouco valer o quanto sabiam da teoria da relatividade ou da mecânica quântica se não as soubessem explicar às respetivas avós analfabetas. Se elas ficassem sem perceber o que os netos lhe dissessem a tal respeito era porque estes nada tinham percebido do que tanto julgavam saber.
Se essa boutade é um grande clássico de Feynman, ele tem muitas outras, das quais vale a pena resgatar outra: “pouco importa que a vossa teoria seja bela, que vocês sejam inteligentes ou célebres. Se ela não coincidir com os resultados da experiência é falsa. Ponto final!”
Surgida na década entre 1925 e 1935, a física quântica assumiu-se como uma nova forma de olhar para a realidade tangível, procurando uma explicação consistente para o comportamento bizarro dos átomos e das partículas. Nesse período inventaram-se conceitos totalmente novos, que deram da matéria e suas interações outras perspetivas.
Essa década de efervescência criativa resultou numa das mais belas construções intelectuais alguma vez imaginadas pelo génio humano. Só que, quase um século passado desde então, a física quântica, com as suas estranhas equações, continua a ser vista como abstrata e contraintuitiva, paradoxal e quase incompreensível. No meio científico discute-se como tais conceitos podem ser validados por experiências incontestáveis e que regras devem ser, nesse caso, satisfeitas.
Foi para sugerir algumas respostas, que Julien Bobroff, professor da Universidade Paris-Sud, reorientou os seus trabalhos das subtilezas do magnetismo e da supercondutividade, em que se vinha especializando, para, com a sua equipa, construir uma dezena de experiências, descrevendo-as e apresentando resultados concretos dessa tradução concreta das equações quânticas num livro de divulgação intitulado «Mon Grand Mécano Quantique». A exemplo do grande mestre norte-americano, que lhe serve de referência, Bobroff procura tornar fácil o que, á partida, era tido como inacessível á compreensão dos vulgares humanos...

(S) Daniil Trifonov a interpretar a Partita nº 2 de Bach no estudo de Brahms para a mão esquerda

(EdH) O El Dorado sempre lá esteve


E se afinal o capitão Francisco Orellana tivesse estado no El Dorado sem o saber, quando fez a viagem de exploração do Amazonas a partir dos Andes na direção da foz? O padre Gaspar de Carvajal, que fez o relato da aventura, bem enunciou as tribos numerosas com que contactaram, quer para delas receberem graciosamente os alimentos de que tanto necessitavam, quer para serem atacadas e roubadas, quando se mostravam resistentes a fazerem a vontade ao «conquistador». E nelas comprovou a existência de peças em cerâmica duma sofisticação, que não estava ao alcance dos artesãos europeus. Mas para quem estava à espera de pirâmides douradas e palácios majestosos, não eram os objetos artísticos que convenceriam da proximidade do objetivo! De qualquer forma esse testemunho foi tão pouco levado a sério que, quando os sobreviventes da expedição chegaram à corte espanhola em 1544, foi fechado a sete chaves durante trezentos anos, só sendo publicado em meados do século XIX para gáudio dos que não desistiam de alimentar o mito de uma civilização perdida nas profundezas amazónicas.
Perceval Fawcett terá, igualmente, encontrado os vestígios desse El Dorado, quando, acompanhado do filho, de um amigo deste e de uns quantos guias índios, avançou floresta adentro em 1925 para nunca mais dele se encontrar qualquer vestígio? A região dos índios Xingu em que se internou é, precisamente, onde arqueólogos brasileiros vêm descobrindo a «terra preta», um solo enriquecido pela mão humana e cuja composição ainda está por esclarecer. Foi ela a responsável pelas colheitas fartas e pomares pejados de frutos, outrora responsáveis por darem alimento ao milhão de ameríndios a viverem na região. Muitos mais do que os especialistas conjeturaram durante décadas, ao atribuírem à pobreza do solo escondido pela floresta tropical a impossibilidade de existirem civilizações importantes na região.
As escavações mais recentes comprovam a dimensão importante e o desenvolvimento efetivo de uma civilização aí existente antes da chegada dos europeus. Foram estes quem causaram sucessivos genocídios por conta dos vírus trazidos de além-mar e para os quais os ameríndios não estavam imunizados. A gripe, a varicela e outras doenças, fulminaram populações condenadas a regredirem depois de terem conhecido prosperidade e esplendor, que só as lendas locais conservariam nas memórias coletivas.

segunda-feira, fevereiro 25, 2019

(S) Gidon Kremer a interpretar a Partita nº 2 de J. S. Bach

(DIM) Os Lobos não choram, mas têm bons motivos para o fazer


Há certos filmes que, mesmo não ganhando o estatuto de clássicos, justificação bastante para a sua apetecível revisão ao longo dos anos, nos continuam a suscitar agrado quando os acasos no-los trazem de volta por permitirem concluir que não envelheceram mal.
Vem isto a propósito de «Never Cry Wolf», de Carroll Ballard, que vi por alturas do nascimento da minha filha, em 1983, e muito então me agradara. Agora revisitado confirmou esse pretérito juízo.
De início temos um biólogo chamado Tyler a contas com a intimidação da paisagem: desejara tão ardentemente conhecer o norte do Canadá, que recebera com alegria a missão de descobrir a razão da excessiva mortalidade dos caribus. Abandonado no meio de nenhures com as parcas bagagens, estremece-o a perplexidade de aferir como poderá resistir a temperaturas tão inóspitas, a ventos bravios e, sobretudo, à solidão a que fica condenado.
À partida não questiona a tese, que lhe pediram para corroborar: os animais em migração estariam a ser dizimados pelas numerosas alcateias de lobos na região. Mas dois esquimós, o velho Ootek e o  jovem Mike, vêm juntar-se-lhe no acampamento, ensinando-lhe os rudimentos da arte de viver a tão altas latitudes. O ancião estimula-lhe as convicções quanto ao que pretenderá comprovar.
Quando a migração começa, Tyler percebe a razão efetiva da redução dos animais envolvidos nessa impressionante movimentação: há uma doença que os está a vitimar, facilitando a caçada dos lobos, apenas interessados nos espécimes mais fragilizados. Inserindo-se no meio da manada de caribus, e imitando o comportamento dos seus predadores, Tyler empatiza com um casal, George e Angeline, que descobre terem uma ninhada de filhotes. Mas, quando está prestes a concluir a missão, e ser devolvido à civilização, compreende que o casal de lobos foi assassinado para que as suas peles fossem vendidas aos turistas, crescentes invasores daquelas paisagens selvagens.
A Tyler resta a infeliz conclusão de ter contribuído para a atroz chacina, porque constituíra-se como foco de atenção de Mike, que vira no seu ato criminoso a forma expedita de arranjar dinheiro bastante para arranjar os dentes e vencer o estigma de pôr a léguas as raparigas a cuja corte pretendia candidatar-se.

domingo, fevereiro 24, 2019

(DIM) No trilho dos Apalaches com Robert Redford e Nick Nolte (com a Emma Thompson como bónus)


Há uma dezena de anos, quando a minha filha acabava de se instalar em Londres, previ que as futuras deslocações às terras de Sua Majestade possibilitariam surtidas fora da capital para conhecer outras regiões, que não a de Warwick, onde, nos finais dos anos oitenta estivera por razões profissionais. Tanto bastou para me chamar a atenção um livro de Bill Bryson sobre os seus passeios pela Cornualha, descoberta sem recurso a outros meios de transporte, que não os autocarros de passageiros, os comboios ou os próprios pés.
Preferindo as pequenas aldeias aos grandes aglomerados urbanos, ele partilhava descobertas e reflexões com o leitor, estimulado a imaginar-se nessas mesmas deambulações.
Voltei a encontrar referência ao escritor no filme que Ken Kwapis rodou em 2015 intitulado «Por Aqui  e por Ali», que tinha por interesse maior as interpretações de Robert Redford e de Nick Nolte. Ambos assumem os papéis de dois sexagenários apostados em percorrerem os 3500 quilómetros do Trilho dos Apalaches, apesar de todos à volta os tentarem dissuadir do que lhes parece esforço suicida.
Tal qual se passara com o romance  preteritamente lido, tão só esgotada a boa ideia inicial, o enfado foi crescendo com as sucessivas vicissitudes exploradas unicamente para alcançar duração, que justificasse a condição de longa-metragem. Embora seja de enaltecer o facto de, nem Redford, nem Nolte, adotarem a postura de canastrões, que as circunstâncias potenciariam,  dificilmente poderiam fazer mais para aguentar um argumento demasiado pobre para sustentabilizar a atenção.
É claro que os dois aventureiros nem a meio chegam, o que acaba por ser o mais interessante no filme: estamos tão habituados a finais felizes, que um projeto frustrado nos confronta com a estranheza de termos passado hora e meia perante uma narrativa previsível, terminada afinal sem o dramatismo, que pudesse justificar a singela desistência dos protagonistas.

(E) As vagas de fundo, que agitam a antiga Bombaim


A única vez que estive em Bombaim foi no seu aeroporto durante um par de horas para seguir na direção da Austrália. Porque nunca ali estivera pus de lado a tentação de prosseguir no sono, enquanto durava o reabastecimento, e fui espreitar o movimento de pessoas à gare apesar de, sendo madrugada, o frenesim em nada se comparasse com o que ali ocorreria durante as horas diurnas.
À distância de tantos anos fica-me a sensação de um espaço mal iluminado com uns cafés abertos onde aproveitei para beber alguma coisa. Nada, em suma, que me desse uma aproximação do que era o espírito daquele lugar.
Agora, em dois dias seguidos, vi reportagens sobre a cidade nos dias de hoje, quando o nome já mudou para Mumbai por pressão dos fundamentalistas hindus, que com ele quiseram vincar a legitimidade de só ali residirem os prosélitos das suas crenças, tornando ainda mais malquistos os muçulmanos. Não admira que, há uns quantos anos, um comando desse credo rival tenha invadido o seu hotel mais luxuoso, o Taj Mahal e ali tenha causado uma terrível carnificina. Há ódios, que convém não atiçar em demasia. Na outra reportagem constatava-se como a cidade está rebentar pelas costuras com os seus vinte milhões de habitantes, muitos dos quais a viverem na rua.
A poucas semanas das eleições, que poderão devolver ao Partido do Congresso a liderança governativa, a grande metrópole  está em expansão e a especulação imobiliária tende a empurrar ainda mais para as margens os que, socialmente já assim vivem, mormente os que habitam o enorme bairro-da-lata de Dharavi. Daí que haja muitos jovens a mobilizarem os familiares e vizinhos para não se deixarem intimidar pelos que defendem a prioridade do direito de propriedade  sobre o da ocupação de vastos espaços, que o Estado reivindica comercializar em seu exclusivo proveito. A luta de classes continua agudizada num país capaz de revelar obsceno luxo ao lado de repulsiva miséria.

(DL) Avraham Yehoshua, o derradeiro sobrevivente de uma brilhante geração


Tanto quanto me apercebi nunca nenhum romance de Avraham Yehoshua foi publicado em Portugal, embora se trate de um dos grandes nomes da literatura israelita e, nela, um dos últimos a ter nascido antes da criação do Estado de Israel.
Nascido em Jerusalém em 1936, aí viveu a infância e a juventude, antes de passar uns anos em Paris, instalando-se depois em Haifa. Militando durante muitos anos no campo dos defensores da solução de dois Estados distintos, um para israelitas e outro para árabes, ter-se-á zangado com Amos Oz, antes deste morrer recentemente, por alterar a sua perspetiva e defender a existência de um só, laico e republicano, com direitos iguais para uns e para outros. Razão dessa mudança: os sucessivos governos israelitas terem sabotado a solução anterior de forma tão drástica, que deixou de existir a possibilidade de dividir Jerusalém em duas metades, ou garantir um território contínuo e homogéneo para os palestinianos sem obrigar  boa parte dos colonatos a desaparecerem.
Para o sucesso desse Estado multicultural, Yehoshua considera fundamental que, árabes e judeus deixem de se sentir tolhidos pelas respetivas memórias. É o apego a estas últimas, que inviabiliza a exequibilidade de soluções flexíveis, que substituam a animosidade entre os dois povos por um diálogo franco e profícuo.
No seu romance mais recente, que acaba de lançar em França - «Le Tunnel» - há um protagonista apostado em escavar um túnel de passagem para os animais por baixo de uma estrada movimentada, mas enfrentando a dificuldade de, para tal, ver-se obrigado a desalojar uma família. Através de uma estória muito simples, metaforiza-se eficientemente a realidade presente naquela região do Médio Oriente.

sexta-feira, fevereiro 22, 2019

(DL) O terrível Eldorado que tantas mortes tem suscitado


Em 2006 o francês Laurent Gaudé publicou um romance que, infelizmente, continua a estar demasiado atual. «Eldorado» inicia-se com uma estranha mulher a dirigir-se a Salvatore Piracci para lhe fazer um pedido inesperado. Dois anos antes, enquanto comandante de uma fragata italiana ao largo da costa siciliana, incumbira-se de salvar os sobreviventes de uma leva de refugiados abandonados à sua sorte no meio do Mediterrâneo por uma tripulação, que cuidara de se pôr a milhas durante a noite. Agora impunha-lhe a responsabilidade moral de lhe dar a pistola com que mataria em Beirute ou Damasco o organizador daquela terrível viagem. Tal crápula, não só enriquecera com os quinhentos desgraçados, que lhe haviam pago fortunas para alcançarem a Europa, mas também congeminara a torpe malvadez de os condenar a uma morte terrível só evitada pela intervenção da embarcação militar italiana. Mas o filho dela tinha sofrido uma morte hedionda, que a assombraria até ao fim dos seus dias.
Piracci nunca mais será o mesmo e quando participa em nova operação de salvação de desgraçados abandonados por um navio líbio em cinco baleeiras numa noite de temporal, da qual só consegue encontrar duas, não evita o gesto indignado de agredir o comandante em causa, quando o encontra em terra e o sabe culpado de tantos corpos tragados pelas águas.
Poupando-se ao conselho militar, que o humilhará com uma repreensão ou, mesmo uma suspensão, decide abandonar tudo quanto até então fora. Compra um barco de pesca, aporta ao norte de África e irá morrer atropelado num descampado, quando já nada tinha para sobreviver. Mas antes desse desiderato trágico encontra Soleiman, um jovem que partira da aldeia natal e cumprira árdua e sofrida odisseia em busca desse eldorado, que Piracci gostaria de denunciar como falso, se acaso o quisessem efetivamente ouvir. Mas quem quer ouvir a descrição da realidade, quando só a ilusão pode justificar a vontade de conhecer vida menos madrasta?
Desta tragédia que, nos últimos anos, tem sido feita de multidões sujeitas a tanta violência e sofrimento para acederem ao que julgam ser a solução de todos os problemas, não conheço romance que dê melhor descrição de todas as variáveis nela em jogo. Gaudé não facilita o leitor, se estava à espera de piedosa narrativa com um final feliz para compensar o que de mais incómodo se vai passando pelo meio. Há bebés, que morrem de fome e de sede, cadáveres abandonados sem que ninguém lhes dê sepultura, pobres que roubam a outros pobres, porque os meios justificam os fins, mas sobretudo o alheamento de uma Europa falsamente rica, que não encara essas migrações com o sentido de humanidade, que deveria estar subjacente à sua suposta identidade judaico-cristã.

(DIM) Quando o Cinema podia ser irreverente


Que prazer o de rever extratos de filmes de Charlie Chaplin e de Buster Keaton a pretexto da abordagem das específicas características, que  os distinguiam. O documentário de Simon Backès revela como um era socialmente mais interventivo - e por isso viria a ter dissabores durante o período da caça às bruxas em Hollywood! -, e o outro dedicava-se a pôr-se no centro do ecrã, enquanto tudo à volta rodopiava, ou, pelo menos, se desestabilizava.
A tentativa de criação de uma rivalidade entre ambos foi tão esdrúxula, que a amizade sobrepôs-se a essas intrigas, algumas das quais intentadas pelos críticos dos Cahiers du Cinema. Em «Luzes da Ribalta», quando Chaplin quis homenagear os cómicos do passado, que a modernidade tornara dispensáveis, haveria de recorrer ao amigo com quem contracenaria numa das partes mais memoráveis do filme.
Passados tantos anos é curioso como os filmes dos dois atores e realizadores continuam a suscitar reações de agrado nas crianças, que os veem. Nesse sentido aguardo pela oportunidade de os dar a conhecer às minhas netas. Porque, como se demonstra no documentário de Backès, a irreverência manifestada em tantos filmes das três primeiras décadas da História do Cinema, passaria a ser travada pelos tycoons de Hollywood, quando conseguiram transformar a arte das imagens em movimento num negócio destinado a encher-lhes lautamente os bolsos. Ideologicamente os títulos saídos da «fábrica de sonhos» passaram a ser orientados prioritariamente no sentido pretendido por quem os produzia.

(DIM) Homenagem a Bruno Ganz


Bruno Ganz morreu há uma semana e a ARTE dedicou-lhe uma das suas noites temáticas, possibilitando o reencontro com «As Asas do Desejo», um documentário sobre o seu percurso biográfico e profissional e um concerto em que deu a voz à obra composta por Beethoven para abrir uma representação da peça «Egmont» de Goethe.
Usufruída a experiência saí dela ainda mais rendido a um ator, conhecido no final dos anos 70, em «O Amigo Americano», que me desvendou, igualmente, o universo literário de Patricia Highsmith.
No balanço de todo o seu percurso na vida, nos palcos ou nas rodagens de filmes, podemos admirar-lhe o talento natural, que o dispensou de formação prévia nas artes cénicas, porque a colheu com os grandes encenadores (Peter Zadek, Peter Stein, Luc Bondy entre muitos outros) com quem trabalhou nos palcos de Bremen ou de Berlim (mormente no prestigiadíssimo Schaubuhne), tal qual viria a superar-se no cinema ao colaborar com Wenders, Handke, Schlondorff, Herzog ou Angelopoulos (neste caso no maravilhoso «A Eternidade e um dia»).
O grande público lembrar-se-á dele, sobretudo pelo desempenho do patético Adolf Hitler em «A Queda» (2004), mas todos os extratos das peças e dos filmes, agora revistos, só confirmam o que sabia: cada personagem merecia-lhe uma preparação esforçada, depois traduzida num desempenho perfeito.
Embora haja disponível no youtube a versão de «Egmont», que Ganz interpretou sob a direção de Claudio Abbado em 1976, é curioso comparar essa versão com a de 2012, com que pudemos agora deliciar-nos. Embora já muito doente - morreria daí a ano e meio - o maestro italiano há muito encontrara a quinta essência do seu saber. Nos concertos dispensava as pautas, porque retinha na memória as notas que nelas tinham sido registadas. E aquelas mãos moviam-se com uma leveza etérea, que mais ninguém consegue replicar. Quanto a Ganz, encontrara uma maturidade na dicção dos textos de Goethe, que antes ainda eram ditos com competência, mas sem a expressividade depois assumida. Sobretudo porque as palavras viam-se emitidas com uma pujança, que a língua alemã melhor possibilita. Num e noutro caso ambos demonstraram nesse concerto quanta diferença há entre o enorme talento e a sua exponencial alavancagem pelo saber de experiência feito.
Na redação de hagiografias necrológicas costumam-se utilizar muitos lugares-comuns que, de tão repetidos, perdem toda a relevância. Por isso de Ganz dever-se-á apenas assinalar que, com a sua morte, desapareceu um Ator com maiúscula, de quem sempre lamentaremos ter-nos ficado por descobrir quase toda a sua obra...

quinta-feira, fevereiro 21, 2019

(DIM) «Eu Estou bem, não se preocupem» de Philippe Lioret (2006)


As vidas comuns, as que afetam os nossos vizinhos nas desumanizadas metrópoles em que vivemos, e a quem nem sequer costumamos dirigir a palavra, podem ser muito complicadas. As suas expressões carregadas, porventura tristes, podem albergar dramas, que nem suspeitávamos de quanto sofrimento pudessem implicar. É essa a conclusão a retirar deste filme de 2006 sobre a família Tellier, imersa num segredo, que nos é desvendado antes do genérico final, mas desconhecemos por quanto tempo mais continuará latente entre os quatro protagonistas, todos dele inteirados, mas impedindo-se de o verbalizarem.
De início temos Lili que, aos dezanove anos, regressa de umas férias passadas em Barcelona e, surpreendida pela ausência do irmão gémeo, Loïc. Ela não vê razões justificativas para a sua saída de casa uns dias antes. Incapaz de compreender o gesto, e muito menos o silêncio às suas mensagens para o telemóvel, entra num processo depressivo, que impõe o internamento como forma de a obrigarem a comer e a beber, algo de que se privara nove dias a fio.
O que se segue é uma descrição do sistema hospitalar na vertente psiquiátrica como um microcosmos concentracionário em que as próprias famílias ficam impedidas de contactar com os pacientes. A irreversibilidade do seu estado parece inevitável, quando recebe uma carta do irmão, a contar-lhe das andanças de cidade em cidade, até encontrar poiso que sinta como seu. Manifesta, sobretudo, um ódio visceral pelo pai, cujo comportamento pequeno-burguês verbera.
Nessa altura do filme conjeturamos muitas possibilidades para quanto está a acontecer, menos aquela que virá a desvendar-se. Lili, já recuperada, e a compensar a saudade do irmão com uma relação amorosa prometedora, descobre ser o pai o verdadeiro autor das missivas de Loïc. Sob a fachada conservadora ele conseguira congeminar uma solução possível para evitar a perda da filha. Porque, como o namorado dela descobrirá por mero acaso, Loïc morrera na sua ausência em Barcelona, quando praticava escalada. E o casal Tellier decidira, algo incompreensivelmente, silenciar a tragédia para a poupar a uma dor, que se revelara afinal bem maior. Porque pior do que saber-se a razão da perda, é a de permanecer inexplicável, sem razão que a fundamente...
Não se trata de um daqueles filmes, que mereçam perdurar duradouramente nas nossas memórias, mas é exemplar na capacidade de suscitar fruição enquanto se o vê. Porque sabe manter o mistério até se justificar esclarece-lo e nos testar na capacidade de evitarmos conjeturas, que, acaso fossem as escolhidas por quem escreveu a estória, e depois a adaptou ao cinema, seriam bastante mais estereotipadas...