quinta-feira, abril 25, 2024

Histórias Exemplares (XXIV) - Quando Paris era uma festa!

 

Não é que dê significado transcendente à coincidência, mas sempre me interessaram os acontecimentos do ano em que nasci. Talvez por facultarem-me um contexto sociocultural ao meu surgimento e condicionando-o doravante de acordo com as transformações incutidas nesse molde.

Um dos factos desse ano de 1956 foi Hemingway ter recebido os pertences deixados trinta anos antes no hotel parisiense onde vivera. Entre eles contavam-se cadernos com escritos de quando ainda não publicara o primeiro romance e era tão-só um jornalista norte-americano a contar os francos para aceder às experiências boémias, que tinha no salão de Gertrude Stein um dos pontos altos.

Nem dotado da arrogância que o êxito lhe potenciaria e, muito menos do alcoolismo para que não possuía os recursos, Hemingway vivia na insegurança quanto a um futuro imprevisível, embora as leituras dos clássicos, mormente Shakespeare, ou de autores polémicos na sua contemporaneidade (o Ulisses do Joyce) , o fossem preparando para a carreira literária.

Da revisita aos papéis esquecidos, Hemingway formulou a ideia de um romance, que deixou inacabado, mas veio a ser publicado com o título de Paris é uma Festa. Que, apesar de estar numa das prateleiras recuadas da minha biblioteca, nunca li pela desconfiança pessoal para com todos os projetos inacabados, a que os autores não tiveram tempo para dar a forma definitiva. Afinal a mesma razão porque, gostando tanto da obra de Gabriel Garcia Marquez, ainda não me decidi a comprar o recém-publicado romance póstumo apesar de, folheado, lhe detetar muito do que, no estilo e nos temas, justificaram esse apego antigo desde que, em muito jovem, li os Cem Anos de Solidão.

Talvez, um destes dias, acabe por procurar o título do escritor norte-americano e o leia abrindo parêntesis ao tal preconceito. Quanto mais não seja porque, a exemplo do protagonista de um saboroso filme do Woody Allen, também não enjeitasse o reencontro noturno com o conjunto de fascinantes personalidades que fizeram das noites parisienses dos anos vinte do século passado uma mítica festa. Mas isso só seria possível se a tal transcendência não fosse coisa de somenos...

domingo, abril 21, 2024

Histórias Exemplares (XXIII) - Paradoxos de alguns inteligentes

 

Pode um texto entusiasmar na primeira metade e desiludir na parte restante?

Pode e demonstra-o o dedicado por Dulce Maria Cardoso a um episódio deste “correr escangalhado das nossas vidas”  de que são feitos os dias e emudece o medo.

No texto em causa , inserido na Visão desta semana, ela fala do injusto cancro surgido num amigo que, já em miúdo, definia a alegria como “dar gritos de cowboy em campos pintados de amarelo”.

O panegírico aos méritos milagreiros de Fátima veio, porém, incomodar-me enquanto ateu, que olha com sobranceiramente para quem se rende a algo tão absurdo como o é uma qualquer entidade divina.  Ser alguém de irrefutável inteligência a fazê-lo torna essa constatação ainda mais paradoxal. Porque, nunca nos muitos apertos com que a vida me brindou, encontrei justificação para entregar a celestial providência a solução para o que só a mim incumbia enfrentar ... e resolver!

quinta-feira, abril 18, 2024

Histórias Exemplares (XXII) - Uma descoberta inspiradora

 

A história de um pai e de uma filha de 11 anos a passearem numa praia inglesa e a encontrarem uns ossos, que o interesse mútuo pela paleontologia identificou como pré-históricos, tem o seu quê de inspirador.

É claro que se, eu e a Elza, encontrássemos esse tipo de vestígios num dos costumados passeios pelo areal a sul da Fonte da Telha, não nos passaria pela cabeça tão excelsa hipótese. Mas isso somos nós, míopes a quem nem os óculos facultam maior argúcia observativa.

É por isso que o episódio é inspirador: às vezes podemos ter uma desconhecida realidade mesmo à frente dos olhos e não a vermos por não sermos capazes. E isso tanto vale para estes ossos pertencentes à mandíbula de um ictiossauro, o maior réptil marinho de sempre - o sucedido a Justin e a Ruby -, como, sendo mais imaginativos o podemos conotar com a escolha eleitoral dos portugueses, que nos dota de um desgoverno prometido para extinção tão fulminante quanto a dos dinossauros há 200 milhões de anos.

O que há a retirar desta história exemplar é a importância de estarmos sempre atentos e abertos a possibilidades, que o comum dos mortais parece ter esquecido. Por exemplo que o capitalismo é coisa com principio, meio e fim, estando agora muito mais próximo deste prometido desiderato do que da fulgurante capacidade para se multiplicar por várias vidas. No fundo, se ao conde Drácula bastou espetarem-lhe uma cruz no peito, e aos dinossauros um fabuloso fogo de artifício, só nos falta conhecer o clímax, que levará a Humanidade para um futuro mais sustentável e justo... 

segunda-feira, abril 15, 2024

Histórias Exemplares (XXI) - Os pesadelos de quem foram tidos como deploráveis

 

É livro que obriga a ganhar fôlego, tão exigente é a leitura das mais de seiscentas páginas dedicadas a uma região do Kentucky onde a pobreza é estrutural nesses que Hilary Clinton desqualificou como «deploráveis» e lhe devolveram o insulto votando em Trump.

Barbara Kingsolver até rejeita a ideia de uma enorme maioria racista e xenófoba nessa região dos Apalaches, mas entende urgente o conhecimento das características de uma população intencionalmente mantida em níveis de baixa instrução pela indústria mineira para dela dispor como mão-de-obra barata, mesmo não lhes garantindo qualquer futuro quando a produção deixou de ser viável ou passou a recorrer a tecnologia avançada. Daí sentirem a frustração de se verem no fundo da escala social de um país propalado como o da fácil concretização dos sonhos, e se converteu numa sucessão de pesadelos sem fim. Daí a enraivecerem-nos a reivindicação dos direitos das minorias, que exigem uma qualidade de vida, também a eles negada, vai um passo difícil de suavizar e, sobretudo, racionalizar em estratégias mais consequentes.

Tomando como inspiração o David Copperfield  de  Charles Dickens, Barbara Kingsolver replicou-lhe os personagens, mas situou-as no tempo presente, quando as famílias adotivas passaram a ter nos opiáceos uma das principais razões para a disfuncionalidade. A preocupação de todos é sobreviver a qualquer custo, mesmo se o miúdo Demon lhe associe a ambição de tornar-se super-herói e ver o mar..

Motivos bastantes para o júri do Pulitzer do ano passado o ter laureado. 

quarta-feira, abril 10, 2024

Histórias Exemplares (XX) - Deslumbremo-nos, pois!

 

Ainda que continuando a validar uma check list pessoal de espetáculos ao vivo com grandes nomes da música erudita - ainda há dias isso sucedeu com o Gidon Kremer e a sua Kremerata Baltica! -  há aqueles que, hélas, nunca me propiciarão esse prazer. O Maurizio Pollini, há pouco desaparecido, é um deles, embora por três vezes tivesse demonstrado incomensurável saber e talento no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian. O Claudio Abbado é outro exemplo e, nesse caso, a passagem por Lisboa coincidiu com as minhas deambulações oceânicas por outras geografias.

A alternativa reside, pois, em assistir aos concertos por eles proporcionados em diversas ocasiões e perenizados em gravações, que nos garantem a sua admirativa evocação.

No do Festival de Lucerna em 2004, quando Abbado ainda estava a recuperar do cancro, que o apoquentara quatro anos antes e, dez anos depois, o levaria à irreparável recaída - agora recordado pela programação da Arte no passado domingo - estão lá todos os argumentos para os incensarmos: na interpretação do Concerto para piano nº 4 de Beethoven, Pollini parece ter vinte dedos ao dar conta dos momentos mais intensos da obra. E é um luxo olharmos para a direção de Abbado ao usar a mão esquerda para bem mais do que apenas acompanhar os movimentos da direita: cada uma delas tem a própria autonomia, dirigindo-se a naipes distintos, inspirando até harmonias distintas.

A grande música continua a ser-me fonte de inexcedíveis deslumbramentos...

sábado, abril 06, 2024

Histórias Exemplares (XIX) - Cheiremos, pois!

 

Depois de tanto ter estado na ordem do dia literário, quando Patrick Süskind publicou o Perfume em 1985, os odores retomam um certo efeito de moda com vários narradores (e, sobretudo, narradoras!) a relatarem a relação com eles.

Um dos títulos mais interessantes desse aparente efeito de moda é o L’Appel des Odeurs, que Ryoko Sekiguchi publicou na P.O.L. e é um conjunto de quase duas dúzias de contos passados em geografias e épocas variadas, envolvendo, ou não, aventuras amorosas, porque também são convocados os progenitores admirados nos ofícios de tipógrafos ou cozinheiros, ou as criações artísticas baseadas nessas sensações.

Logo no início temos uma personagem feminina, que se deixa levar pelo êxtase de quem cheira e sobre que escreve abundantemente num caderno de notas com uma linguagem cada vez mais olfativa.  E por isso ali surgem descrições do cheiro coalhado, do da pele húmida, do do feno podre, do das ondas, do da tinta, do da fome, do de uma voz, do de uma história, do de mentiras, do de uma sombra, do de uma criança, do do pressentimento, do do amor, do de uma pintura, do da separação, do do desaparecimento ou do da primeira palavra.

E, no entanto, quão difícil é descrever o que não se vê e só se identifica a partir do que lhe serve de causa... 

quarta-feira, abril 03, 2024

Histórias Exemplares (XVIII) - Viver para conta-lo

 

Entre os bairros populares da periferia de Paris, onde encontrara o hotel barato compatível com as fracas posses, quando aí chegara oriundo da Bélgica natal, e o sofisticado Claridge onde convivia com os mais abonados e famosos de então, Georges Simenon encontrou os personagens e as desigualdades sociais, que alimentariam as histórias protagonizadas pelo comissário Maigret. Sem esquecer os cafés, onde passava boa parte dos dias, olhando para a clientela de que recolhia as caracterizações e os diálogos capazes de assegurarem verosimilhança aos personagens. E assim criou, em quantidade e qualidade, uma das mais curiosas obras do seu tempo.

terça-feira, abril 02, 2024

Apontamentos Cinéfilos (VII): duelo no alto-mar

 

Morituri é um filme algo esquecido de 1965, mas com bastantes motivos de interesse: porque assina-o Bernhard Wicki que, seis anos antes, fizera o também menosprezado A Ponte (apesar do Óscar para melhor filme estrangeiro), há o clima asfixiante de um navio no alto mar mas, sobretudo, o confronto entre dois excelentes atores, Yul Brynner e Marlon Brando, um a fazer de comandante alcoólico incumbido de fazer chegar a Bordeus uma carga de borracha fundamental para o esforço de guerra nazi, e o outro a gerir três identidades diferentes.

Filme de guerra, mas também de espionagem, conjuga o suspense com as cenas de ação para revelar um painel de personagens envolvidos num conflito que os ultrapassa e feito de resistência e cobardia.