quinta-feira, março 30, 2017

(S) Uma orquestra muito especial

Que ideia mais estapafúrdia a de criar uma orquestra com jovens músicos curos, cristãos e árabes no Iraque. Mas foi a que se propôs o chefe de orquestra escocês Paul McAlindin, que acaba de publicar em livro a sua experiência infelizmente destruída pela ocupação de Mossul pelo Daesh.
Em «Upbeat» corrobora a mesma sensação colhida por Daniel Barenboim com a sua orquestra, constituída por israelitas e palestinianos, em como a música pode fomentar a coexistência pacífica entre comunidades com confissões e valores diferentes, mas a partilharem o mesmo espaço geográfico.
Não terá sido um projeto isento de perigos muito sérios: apesar da violência, dos atentados e das ruínas à  sua volta, os jovens músicos compareciam aos ensaios e desafiavam quem considerava a música clássica um tabu. Por isso quem percorria as ruas com o estojo do violino ou violoncelo arriscava converter-se em alvo de fanáticos. Sobretudo sendo mulheres.
Outra novidade incrível encontrada por McAlindin foi a forma como muitos desses jovens músicos tinham aprendido a sua arte: quase todos por esforço autodidata consultando o youtube.
Em 2011 McAllindin e a sua orquestra ainda atuaram em vários palcos europeus (data de então o desempenho aqui linkado) até ver-se obrigado a abandoná-la por força das circunstâncias da guerra.
«Upbeat» acaba por testemunhar a possibilidade de, também no Iraque, ser possível construir outra realidade.



(S) Frederic Rzewski, um compositor atento ao presente

De que lado estás da barricada? Era a pergunta que Florence Reece a mulher de um mineiro de Harlan County, fazia aos vizinhos no poema, que criou a partir da música de um conhecido hino da igreja batista.
A luta dos trabalhadores contra o patronato conhecia, então, uma violência desmedida, e a canção servia para favorecer a mobilização em prol de condições de trabalho e de remuneração mais justas.
Foi esse tema que o compositor Frederic Rzewski trabalhou até resultar nesta composição para piano com 12 minutos de duração, que Conrad Tao interpretará este domingo no Grande Auditório da Gulbenkian.
No alinhamento das peças do programa esta será a primeira e dará a conhecer um compositor progressista do nosso tempo - ele fará em breve 79 anos! -  para quem a estética não se dissocia das preocupações com o tipo de sociedade em que gostaria de viver. Por isso lhe importa dar nova vida a canções de protesto, que integraram o cancioneiro de muitas lutas dos trabalhadores do seu país.



terça-feira, março 28, 2017

(DIM) «Comédia Sexual numa Noite de Verão» de Woody Allen na 5ª feira no Cineclube Gandaia

Para concluirmos o ciclo dedicado a Woody Allen, optámos por o iniciar e terminar com filmes ligeiros e divertidos, intrometendo-lhes os mais sérios e sombrios. No entanto, «Comédia Sexual numa Noite de Verão» é enganadoramente frívolo, porque interpela-nos a todos sobre alguns dos mais importantes dilemas com que nos defrontamos.  E reside nessa constatação muito do seu encanto.
O vaudeville conheceu a sua época de glória entre 1880 e 1930, tendo o francês Georges Feydeau como seu importante expoente. Nas suas peças era comum a escolha de um grupo de casais circunscritos a um espaço e a um tempo limitados explorando-se os equívocos de a maioria dos personagens não se sentir satisfeitos com a atual situação afetiva, cobiçando a mulher ou o marido alheios. O divertimento resultava da descoberta dos flagrantes delitos e das discussões e zangas correspondentes.
Woody Allen optou por abordar o género no intervalo entre produções mais ambiciosas e como forma de suavizar uma filmografia, que estava a adensar-se e a perder os favores do público.
Porque Ingmar Bergman continuava a ser a sua referência cinéfila mais influente tomou como modelo «Sorrisos de uma noite de verão», que o  sueco realizara em 1955 numa variante da conhecida peça de Shakespeare. Mas o ambiente campestre em que Allen mergulha os seus personagens - é uma das raras ocasiões em que ele opta por os evadir das grandes cidades! - também remete para o bucolismo de Tchekov. Recorre por isso mesmo à magnífica fotografia de Gordon Willis e à música romanticamente envolvente de Mendelssohn.
Deparamo-nos assim com uma história passada em 1905, quando Andrew e Adrian Hobbs convidam dois outros casais para passarem o fim-de-semana na sua casa de campo.
Léopold é primo de Andrew e faz-se acompanhar de Ariel em quem o anfitrião reconhece uma das suas mais assolapadas paixões da juventude. Razão para tentar recuperá-la, tanto mais que a frigidez de Adrian o insatisfaz.
Quem igualmente assedia Ariel é o dr. Maxwell Jordan, que se faz acompanhar da enfermeira Dulcy em quem Adrian busca conselho para resolver os seus problemas sexuais.
Não gostando de ver a namorada requestada pelo velho médico, Léopold não deixa de fisgar gulosamente Dulcy para ver se tem alguma hipótese de com ela pular a cerca.
Numa noite mágica - como já víramos acontecer na peça de Shakespeare e no filme de Bergman - os amores efémeros concretizam-se no meio de toda a confusão, que suscitam. Mas a ligeireza do tema acaba por ser algo enganadora, porque o seu lado divertido não esconde problemas bem sérios: o da dificuldade de amar, o medo da morte, a ânsia de se ser feliz. Estamos, pois, perante questões pertinentes para a maioria de todos nós: como nos realizarmos afetivamente, quando a iminência de um fim definitivo se coloca mais cedo ou mais tarde.
Para o próximo mês o Cineclube Gandaia irá comemorar abril com um conjunto de filmes portugueses que, no modelo ficcional ou de documentário, aborda o que fomos, somos e poderemos vir a ser enquanto moradores deste cantinho à beira-mar plantado.

segunda-feira, março 27, 2017

(DIM) ESTÓRIAS DO CINEMA: Woody Allen, Roy Ward Baker e Rebecca Zlotowski

1. Em 1966 o nome de Woody Allen aparecia pela primeira vez no genérico de um filme como realizador, apesar de ele o ter querido apagar dos seus registos filmográficos. «What’s up, Tiger Lily» parece durar uma eternidade apesar de se ficar pelos setenta e cinco minutos.
Woody pegou num medíocre policial japonês, remontou-o e criou-lhe novos diálogos na tentativa de o tornar divertido. Apesar de algumas piadas relativamente conseguidas, o filme ficaria como mera curiosidade histórica de quem viria a fazer bastante melhor.
«Inimigo Público» (1969) já começa a aproximar-se de quanto poderíamos esperar do talento do autor. Ainda que as fragilidades sejam muitas, a estória de um delinquente sem jeito, que alterna entre prisões e evasões e sobre quem os familiares, amigos e conhecidos prestam testemunho, já tem a consistência de um projeto mais complexo do que seguir a estratégia de mera acumulação de gags. O humor já surge aqui interligado aos sentimentos amorosos, que virão a ser explorados com maior sucesso em «Manhattan».
2. Quem imaginaria que, apenas doze anos passados sobre o final da 2ª Guerra Mundial, os ingleses produziriam um filme sobre um alemão simpático que põe o engenho a funcionar para conseguir a fuga dos campos de prisioneiros por onde vai passando. O filme chama-se «The One that got away» e foi realizado em 1957 por Roy Ward Baker.
Seria interessante saber o que terão pensado os espectadores britânicos dessa época perante um tão veemente apelo à empatia com um suposto inimigo. A menos que se tratasse de, em época de Guerra Fria, tornar secundário o ódio aos alemães para, mais facilmente, o transferir para os soviéticos.
3. Que eu desse por isso o filme de 2016 de Rebecca Zlotowski intitulado «Planetarium» não passou pelos ecrãs nacionais apesar de contar no elenco com Natalie Portman e Louis Garrel. Mas se a qualidade da reconstituição histórica foi elogiada, já muitas dúvidas se levantaram a propósito da consistência de um argumento sobre a produção de um filme em vésperas da 2ª Guerra Mundial e em que as protagonistas eram duas irmãs espíritas americanas.
O projeto pareceu tão desconchavado, que se tornaria num dos fracassos mais notórios do ano. 

(DL) «O Trevo de Adão» de Luís Carmelo

Antes de entrar no romance vale a pena determo-nos nas informações prévias sobre o que nele encontraremos:  sem saber como nem porquê, um homem irá viver três vidas diferentes sob as identidades sucessivas de Adão, Caim e Abel. Ainda tendo bem presente o mais recente romance de Paul Auster, preparo-me para estória similar, mas as referências se as houver que referir, são mais pessoanas nos seus diversos heterónimos do que qualquer outra coisa.
Nas primeiras páginas ficamos a saber que Adão nasceu em noite de aurora boreal sobre Lisboa e com a avó Albe a saudar a sua entrada na vida, despindo-se o suficiente para ir à janela  e mostrar as mamas ao sol. É isso que Abel começa a contar a um espantado interlocutor, Zorba,  quando o encontra junto ao Tejo.
Na pele de Adão casara com Luísa de quem tivera uma filha, mas, cansando-se da entediante conjugalidade, abandonara-as para seguir a vocação de cantor de música pimba. Nas digressões pela província conhecera a vistosa Arlete a quem logo tratara de instalar em Lisboa, quando se estava a tornar no mediático apresentador de um programa televisivo de variedades.
O grupo de ouvintes, que começa a seguir Abel, vai aumentando em número: a Zorba somara-se a filha, Isabel, a mulher, Joana, e a neta, Júlia. E estranha-lhes o facto de o não reconhecerem pois fora rico e famoso sob os pseudónimos de Ezequiel, enquanto cantor pimba, e César Leme enquanto fadista. Sempre disputado pelas várias televisões, que recorriam a todos os meios para lhe garantirem o exclusivo.
O relato é tão interessante para quem o ouve, que as manifestações sindicais, que lhes passam ao lado, não merecem a mínima atenção.
Abel chega então à parte em que Adão desmaiara durante um programa e fora levado para o hospital onde os médicos lhe anunciaram a singularidade do seu corpo, onde bombeavam dois corações.
Ora por ser novidade perturbadora, ora pelo cansaço do passeio, o grupo faz um breve intervalo na Igreja do Corpo Santo. E já o sentimos com o seu quê de crístico, pois Abel já está acompanhado de doze ouvintes, como se todos participassem na Última Ceia. O final do romance confirmará esta presunção nesta altura ainda sem grande fundamento.
Relatada a morte súbita do cantor e os grandes funerais com que o homenagearam, logo Abel revela o céu avermelhado com que dera por si no jardim da Estrela sem saber como se livrar do caixão. Dirigira-se à casa da Bica donde Arlete desaparecera, mas onde escondera um cofre cheio de dinheiro com que se dirigira para Badajoz.  O objetivo final era Barcelona onde sabia existir competente clínica de cirurgia plástica.  No comboio em trânsito pelos campos de Castela surgiu a oportunidade para reverenciar o Quixote de Cervantes, na pessoa de Alonso, uma réplica de Sancho Pança, que ganhava a vida a lançar fogo-de-artifício de terra em terra. E não adivinhamos que está aqui lançada mais uma pista para o epílogo do romance.
Fora numa clínica de Pedralbes, que Adão se convertera em Caim e conhecera a enfermeira Sara com quem regressara a Lisboa. Sem dinheiro fora a nova companheira a arranjar solução: lançaram-se no negócio dos bordéis para clientela VIP, um em Lisboa e outro no Porto Brandão.
Ele comprazia-se com essa “segunda vida após a insondável morte  - uma metamorfose real, a que não faltava ímpeto, mulher, desejo, dinheiro e sobretudo a redescoberta de facetas radicalmente novas em si, incluindo as físicas.” (pág. 102)
A tranquilidade viu-se perturbada um ano depois quando, vítima de uma emboscada, Caim foi violentamente agredido em Monsanto até aceder  em pagar generosa comissão a uma mafia liderada por polícias no ativo.
Essa nova realidade tornara menos lucrativo o negócio, que se passara a limitar à casa da margem sul e doravante destinada a clientela menos abonada. A relação do casal também perdera fulgor, não gostando Caim de ver a amante a dar o corpo ao manifesto em noites de mais numerosa clientela.
Por essa altura do relato das suas aventuras, já Abel está a conduzir o grupo dos seus acompanhantes até ao Príncipe Real. É então que chega à parte em que Caim foi à Tailândia para aí se prover de novas meretrizes, mas tudo não passara de uma burla engendrada por Sara e um dos mafiosos para ali o abandonarem sem dinheiro sequer para regressar à Europa. Valera-lhe o encontro com o gigante Porfírio, que lhe deu a solução: embarcar como tripulante num navio com destino á Europa. As escalas por onde passaram são as das viagens dos tempos dos Descobrimentos, mas em sentido contrário, e com passagem pelo canal do Suez.
Porfírio também o ajudara a vingar-se dos traidores, quando chegaram a Lisboa, mas se Sara e o novo amante morreram, também o mesmo sucedera aos dois recém-chegados.  No dia do funeral, uma vez mais Caim dera por si sentado num banco do jardim do Lumiar.
Dois anos depois encontramo-lo na pele do mesmo Abel, que continua a contar a estória aos seus discípulos.  Tornara-se taxista em Belas, e qual Camões, enamorara-se de Leonor, que namorara em adolescente, quando frequentara a Praia das Maçãs.
Não adivinhava que um bíblico Isaías, já então profeta desempregado, anunciara a vinda de um “homem de várias vidas, o qual, parecendo estra morto, continua ainda vivo no seu corpo e espírito, cruzando mundos e o mais que a natureza e os deuses criadores desde o princípio interditaram”. (pág. 186)
O cerco em torno de Abel fora-se formando: do Egito um mágico de nome Mubarak anunciara que Adão não morrera, tendo-se convertido em Caim, primeiro, e Abel depois. E a própria Leonor - amiga de Luísa, a mulher com quem começara por ser casado numa anodina circularidade nos acontecimentos - acabara por lhe desmascarar o pseudónimo, pois, quer em particularidades físicas, quer na voz idêntica à de Adão enquanto cantor pimba, ele continuava a ser o mesmo.
Tendo fugido para Lisboa e contado toda a sua aventura aos doze acompanhantes, Abel cumpre o último momento do seu calvário, subindo aos céus em vistoso fogo-de-artifício com transmissão em direto pelas televisões.
Romance irónico ao tomar muitos dos atavismos do início do século XXI como alvo, «O Trevo de Abel» é um projeto ambicioso e inteligente, a exigir ao leitor uma concentração acima do comum se não quiser perder-se na riqueza sintática das suas férteis descrições.

domingo, março 26, 2017

(C) A Odisseia Rosetta novecentos dias depois

Na Odisseia cumprida pela nave Rosetta, que viajou até 6,4 mil milhões de quilómetros da Terra ao encontro do cometa Tchouriomov-Guérassimenko, lamentar-se-á sempre que o robô Philae, incumbido de nele aterrar e colher dados, não tenha sido bem sucedido. Deslocado para uma fissura onde os raios solares não chegavam, viu abortado logo de início a sua missão. No entanto este segundo filme de Jean-Christophe Ribot a acompanhar as diversas equipas de cientistas do projeto é tão, ou mais, interessante do que o produzido dois anos trás, quando era questão de mostrar como fora concebido, preparado e concretizado até ao dia 12 de novembro de 2014, quando se chegara ao seu momento culminante.
Desenvolvida a partir de 1993, o que a Agência Espacial Europeia pretendia com esta missão  era a comprovação de uma tese: esses viajantes do espaço, que regularmente nos vão visitando de acordo com as suas órbitas mais ou menos dilatadas, trazem consigo os elementos necessários à propagação da vida por todo o Universo. O que os espectrómetros e outros equipamentos de medição pretendiam captar eram as evidências da presença de água e de aminoácidos propiciadores da criação de proteínas.
A sua confirmação, efetivamente conseguida, corrobora a tese segundo a qual a nossa existência deve-se ao bombardeamento da Terra, ainda em fase muito recuada da existência, com cometas deste tipo, que nele semearam as matérias necessárias para a criação de vida. E, generalizando. pode-se presumir, que o mesmo aconteceu em muitos outros planetas do Sistema Solar, e não só, onde outros seres, humanoides ou não, podem estar neste momento a seguir com as suas vidas.
O documentário é muito interessante de seguir, não só pelas fotografias de grande pormenor sobre a superfície do cometa, mas também pelos testemunhos de diversos cientistas, sempre divididos entre as suas dúvidas e o entusiasmo com o que iam descobrindo.
Os muitos milhares de euros investidos nesta missão tiveram o condão de nos dar a conhecer o que apenas podemos adivinhar quando, nas noites estreladas, nos pomos a olhar para o céu. Existirá sensação mais contundente do que a consciência da nossa pequenez perante a imensidade do cosmos? E, no entanto, que isto não sirva para legitimar uma qualquer ilação religiosa. O que temos a descobrir mais não é do que a infinita manifestação da matéria. ..


sábado, março 25, 2017

(A) Pissarro; entre a grandeza e a humildade


Pissarro foi o primeiro dos impressionistas quanto mais não seja por ser dez anos mais velho do que Monet ou Cézanne, vinte e nove do que Seurat ou trinta e três se considerarmos Signac.
Da vasta obra vale a pena aqui realçar cinco quadros. O primeiro data de 1870 e capta a neve  da estrada de Versailles, lembrando uma obra posterior de Monet, «Avenida Saint Denis, Argenteuil no inverno», que muito lhe deve em influência.
Ambos partilham as ideias e Pissarro adota do amigo o conceito de séries sobre o mesmo tema: enquanto Monet focaliza a atenção nas suas catedrais de Rouen, aquele multiplica as versões sobre a Ponte Boeildieu ou o cais da Bolsa, prenúncios da reflexão sobre a forma como a luz evolui numa paisagem urbana, que evidencia nas conhecidas representações parisienses do Pont-Neuf ou da Praça do Théâtre Français.
Pissarro mostrava que, tendo começado por ser o mestre, não desdenhava a influência dos antigos discípulos..
O quarto quadro é o admirável «Praça do Velho Cemitério em Pontoise», de 1872, que pintou quando estava hospedado num hotel em Saint-Ouen, do outro lado do rio. Cézanne, que também ali estava, saiu do período sombrio, abandonando as cores escuras e abrindo-se à luz graças ao vizinho, que adotara como pai espiritual.
O quinto quadro - «A Colheita das Maçãs» - data de 1886, quando Pissarro tornara-se no responsável pela Exposição dos Impressionistas.  Desejoso de renovar o estilo, descobrira as obras de Seurat e Signac, que pareciam aprofundar a sua própria estética. Por isso bateu-se pela entrada de «Uma tarde na Ilha da Grande Jatte» na exposição, e ele próprio confessava-se decidido a criar o neoimpressionismo. Infelizmente a hostilidade do agente, Durand-Ruel, dissuade-o dessa direção.
Quem dele deu testemunho descreveu-o como um grande pintor sempre pronto a ajudar os outros, e suficientemente modesto para inspirar-se em artistas mais novos do que ele.
Lawrence Gowing, que foi um dos principais estudiosos de Cézanne, situa o ano de 1872 como o da grande viragem na obra do artista e atribui-a a dois fatores essenciais: a Hortense que, por essa altura o fez pai, mas também pelo convívio com Pissarro. Opinião reveladora da sua admirável personalidade.



(S) Dietrich Fischer-Dieskau - Auf dem Wasser zu Singen (Schubert)

(DL) No limite da dor

Se há visitas que deveriam ser obrigatórias para todos os portugueses - sobretudo para os jovens em idade escolar - a do Museu do Aljube ocuparia merecida prioridade. Porque, numa altura em que um notório fascista anda por aí a vitimizar-se em nome da liberdade que lhe terá sido coartada por uma universidade lisboeta, e que algumas dezenas de vermes da sua igualha aproveitam para se manifestarem, será fundamental não deixar esquecer como o regime de Salazar de Marcelo Caetano prendeu, torturou e assassinou quem contra ele ousava lutar.
Um dos sítios onde essa ignomínia foi cometida foi precisamente ali, junto à Sé, onde o Museu abriu há aquase dois anos. E para melhor compreender o que ali se passou, fica uma excelente sugestão de leitura: «No limiar da dor», de Ana Aranha e Carlos Ademar.
De início tratou-se de um programa de rádio com entrevistas a muitos dos que passaram pelas várias prisões da ditadura. Depois verteram-se tais testemunhos para este livro onde se compreende como a tortura visava transformar o preso numa não pessoa.
Os torturadores eram homens e mulheres sem escrúpulos que, nos inícios dos anos sessenta, substituíram as agressões de resultados visíveis nos corpos, depois olhados por advogados, juízes e familiares, por outras colhidas no Manual da CIA, que eram mais eficazes e deixavam menos marcas. Já havia a ameaça de afogamento, a estátua, o isolamento, todas elas de inaudita violência para quem as sofria.
As alucinações eram frequentes, levando o prisioneiro a perder as referências e as fronteiras do que poderia ou não revelar. E, na maioria dos casos, a Pide tinha sucesso: indo para além do que suportavam física ou psicologicamente, as vítimas acabavam por quebrar. O que os estigmatizaria futuramente junto dos companheiros e, sobretudo, consigo mesmos. Porque saber-se alinhado com o sentido da História e dar uma vitória, mesmo que passageira, aos algozes, tornou-se insuportável para a maioria dos que cederam...

sexta-feira, março 24, 2017

(E) Alienígenas a Oriente

Uma das recordações que guardo de Tóquio aconteceu no final de uma tarde de sábado ou de domingo, quando o lusco-fusco, misturado ao nevoeiro da poluição, dava à baía um aspeto insólito.
Na época ainda não conhecia os romances de Murakami, mas se já os houvesse lido, concluiria tratar-se de um daqueles cenários propícios às estórias passadas no incerto território entre o sonho e a realidade e em que ninguém dá pela insólita existência de duas luas no céu.
De súbito surgiu um fogo-de-artifício silencioso, que ainda mais me aturdiu. Porque, ao contrário do que sempre me habituara em tal espetáculo, não ecoava qualquer estrépito do material pirotécnico.
País extraordinário este em que nem os foguetes se comportavam como no ocidente!
Se não foi isso que pensei na altura, o episódio contribuiu para consolidar a opinião avalizada em muitos outros episódios justificativos de pressentir algo de alienígena nas idiossincrasias nipónicas. E não tanto por viverem nessa geografia distante, porque logo ali ao lado, os chineses conseguem imitar muito do que nós, portugueses, conseguimos ser no nosso pior: chico-espertice, sujidade, avidez egoísta pelo dinheiro ou primazia das aparências em detrimento da genuinidade.
O que justifica a esdruxulidade dos japoneses, e muito particularmente nos que vivem em Tóquio, são os casulos onde dormem, porque trabalham até se consumirem em burn-outs  ou em embriaguezes libertadoras ou o fascínio pelas vertentes sadomasoquistas da sexualidade tal qual no-lo revelam as sexshops ou os volumosos mangas, quase sem texto, explícitos na sua perversidade gráfica. Os suplícios a que alguns se sujeitam para que neles reparem, injetando soluções salinas no rosto para que os seus inchaços impressionem, os bicos metálicos que fazem emergir dos crânios ou as automutilações de dedos ou mãos exibem vertentes doentias do que a body art já propunha em estética mais do que equívoca.
Olhando para essa predisposição para o martírio do corpo compreendemos melhor a facilidade com que milhares de jovens aceitaram morrer como kamikazes ou um Mishima praticou o harakiri depois da sua anedótica tentativa de golpe de Estado.
Ao ver o filme da Sofia Coppola identifiquei-me plenamente com esse Bob Harris ali chegado para interpretar um anúncio a uma marca de whisky. Também ele não conseguia qualquer empatia com a cidade ou os seus habitantes. É que, apesar de ter sido excelentemente por eles tratado, quando me ofertaram apoios e prendas que não esperava, quase nunca ali encontrei com quem pudesse comunicar senão pela limitada expressividade dos gestos.

(S) Ken Vandermark Five

quinta-feira, março 23, 2017

(DL) O vernáculo também integra a riqueza de uma língua

É um esforço que perdura desde há mais de quarenta anos: a historiadora Claudine Brécourt-Villars tem-se especializado, em títulos sulfurosos, resultantes dos seus estudos sobre os temas mais polémicos da língua e literatura francesa.
No caso deste título, publicado em janeiro pela prestigiada Gallimard, esforça-se por criar um glossário de vocábulos ignorados ou retirados da maioria dos dicionários por terem sido estigmatizados como vernáculo. E, no entanto, desde Villon a Virginie Despentes, de Apollinaire a Zola, a literatura francesa é riquíssima em palavras e expressões mantidas na sombra pelo preconceito de um certo discurso politicamente correto desejoso de não hostilizar a ortodoxia feminista.
A autora pretende garantir-lhes a legitimidade igualitária, tanto valorizando o que se diz no convento como no bordel. Daí a razão do título.
Revelando irrepreensível erudição, Claudine Brécourt-Villars explicita a riqueza vocabular utilizada por proxenetas e meretrizes, carteiristas e outros larápios que tais, e transformando-se em função da versátil utilização. E exemplifica com substantivos que só sobrevivem em romances há muito esquecidos ou nos filmes do início do cinema sonoro.
Há igualmente histórias saborosas como as que foram protagonizadas pelas prostitutas do tempo da Revolução Francesa, que vendo os tribunos eliminarem os títulos honoríficos da aristocracia, julgaram possível proibir os termos mais ofensivos com que eram tratadas. Mas, embora escolhendo uma porta-voz, que tivera como clientes muitos dos deputados da Constituinte, não conseguiriam grande sucesso nessa intenção emancipadora.
Estórias e histórias de igual interesse vão surgindo ao longo das quase trezentas páginas. O resultado é uma antologia sobre os universos da prostituição e do crime organizado elucidando-se as etimologias neles encontradas, na pluralidade e transformação dos seus significados.
Nos dias de hoje muito desse vocabulário desapareceu ou está em vias de conhecer tão drástico epílogo. Daí o interesse por essa verdadeira ilha do tesouro, cada vez mais submersa pelas ameaças da modernidade, e aqui embarcada num precário navio fantasma, que tenta salvaguardar tão singular riqueza enquanto for possível.
E se tal esforço em terras gaulesas é digno de admiração, quão excelente seria se o víssemos replicado entre nós. É que, desde os romances de cordel a Bocage, passando pelas medievas cantigas de escárnio e maldizer e culminando no Pacheco do século XX, alguém com a mesma curiosidade e argúcia de Claudine Brécourt-Villars encontraria, por certo, um riquíssimo manancial vocabular que  muito nos permitiria valorizar a nossa língua. É que basta entrarmos num alfarrabista e folhearmos livros com algumas décadas para concluirmos quantas palavras e expressões perdemos pelo caminho, utilizando um universo sintático cada vez mais empobrecido.

quarta-feira, março 22, 2017

(DIM) «Outra Mulher» de Woody Allen (1988)

Na segunda metade da década de oitenta o percurso de Woody Allen ia alternando entre meritórios sucessos junto da crítica e do público («Rosa Púrpura do Cairo» em 1985 e «Ana e Suas Irmãs» em 1986) e clamorosos fracassos - «September» e «Radio Days» - que lhe dificultavam o financiamento de novos projetos.
Ele concetualizou «Outra Mulher» como tentativa de superar essa bipolaridade, embora já tivesse em atenção as reações muito positivas dos festivais e dos mercados europeus. Talvez por isso não tenha sido inocente a escolha de Gena Rowlands para protagonizar este filme, porquanto vivia-se na altura um grande interesse pela filmografia de John Cassavetes deste lado do Atlântico. E muitos desses títulos contavam com a sua indispensável participação.
A escolha não podia ser mais afortunada: um dos motivos para «Outra Mulher» ser um grande filme é pelo desempenho da atriz. Os grandes planos evidenciam-lhe o enorme talento de, pelas expressões do rosto, denunciar a progressão dos estados de alma. Porque o que está em causa é a súbita descoberta que Marion faz de si mesma, concluindo que chegara a quinquagenária sem verdadeiramente se conhecer. Mais ainda: apesar de ter uma vida social bastante preenchida, sente-se só e vazia.
É, igualmente, o filme em que Woody Allen melhor concretiza a homenagem ao sueco Ingmar Bergman: se havíamos visto que «Intimidade» já refletia essa intenção, ainda era possível aperceber a presença óbvia das peças de Eugene O’Neill ou de Anton Tchekov.
Aqui, pelo contrário, a referência maior é a de «Morangos Silvestres», com uma personagem chegada a idade madura a concluir como o sucesso profissional escondera o doloroso fracasso sentimental.
Existe, igualmente, a presença da psicanálise, porque Marion fará uma terapia por procuração através dos relatos de Hope, a paciente do consultório de que se tornara vizinha, quando alugara um apartamento com o isolamento necessário para a concretização do seu livro seguinte.
Igualmente elucidativo, é tudo começar quando estava a dormir e regressara à vigília ao som da voz dessa mulher com nome de esperança, e cuja depressão e gravidez, direciona a involuntária ouvinte para sucessivos regressos ao passado. Reencontra, assim, o irmão que vampirizara e a passara a invejar. Ou o primeiro marido a quem recusara dar um filho, porque lhe importava bem mais o sucesso literário, e o vira por isso suicidar-se. Ou a antiga amiga a quem roubara o amor de quem ela tanto ansiava, tratando-o depois como negligente amante.  Ou ainda o marido, que a engana, talvez para lhe cobrar a frieza com que ela lhe reage.
À medida que escuta Hope e revisita os tempos idos, Marion constata até que ponto sempre vivera na negação, na mentira. Vêm então à colação os poemas de Rilke, que tanta haviam sido prezados pela mãe, tão precocemente desaparecida. E eles dão-lhe o alento para ressurgir, para começar de novo e fazer com que o resto da vida viesse a valer a pena.
Uma referência final pra outra presença bergmaniana no filme: Allen foi buscar a Bergman o seu diretor de fotografia, Sven Nykvist, que colheu como ninguém as imagens alaranjadas do outono.