quinta-feira, maio 31, 2018

(DL) «Scherbius (et moi)» de Antoine Bello


Em 1977, o jovem psiquiatra Maxime Le Verrier acabara de inaugurar o consultório, quando o prestigiado professor Monnet lhe envia um paciente em que importava discernir se as suas propensões para as imposturas teriam uma origem mental ou se o moviam apenas propósitos crapulosos. É que a sua mais recente ousadia quase criara um problema diplomático ao primeiro-ministro, que o julgara efetivo representante de um país estrangeiro. Ao encontrar-se com o proponente de tal caso, Maxime fica surpreso, quando ele despe o disfarce e se apresenta como Scherbius, o paciente em pessoa.  Inicia-se aí a relação terapêutica entre os dois com o psiquiatra apostado em estabilizar o funcionamento psíquico de quem adivinha à beira de conhecer imprevisível explosão.
Só entre outubro de 1977 e abril de 1978 foram setenta e uma as sessões concretizadas no consultório, dando o ensejo a Maxime de publicar sucessivas obras sobre o caso até culminar na sexta, em 2004, intitulada, tal como neste romance de Antoine Bello, «Scherbius et moi».
Ficamos assim a saber do início da carreira de Scherbius como impostor desde a adolescência, recorrendo às mistificações para se livrar do complexo contexto socioeconómico que era o seu. Passaria depois por um convento como monge e experimentaria sucessivas profissões sem se fixar em nenhuma. Entre o consultório e a prisão de Sainte-Martin culminando em Hollywood, Máxime segue o percurso do cliente de forma obsessiva, revelando a evolução conhecida pela Psiquiatria nesse período. Mas torna-se evidente a contínua tendência do paciente em enganar o médico, cada vez mais perdido entre a verdade e a mentira, entre a razão e a loucura.
Maxime vai-se mostrando medíocre no seu saber, apesar de convencido do contrário, o que acaba por o tornar ridiculamente cómico.  Às tantas fica a pergunta: quem é o verdadeiro impostor, aquele que disso era acusado, ou o suposto detentor do conhecimento, que afinal bem ignorante se mostra para conseguir sequer adivinhar quem é, de facto, Scherbius.
Na desaprendizagem do que julgava saber, Máxime acaba por se converter no verdadeiro protagonista da história.

terça-feira, maio 29, 2018

(S) «Os Tempos que Mudam» de André Téchiné (2004)


Entre o terceiro álbum de Bob Dylan - The Times They Are a-Changin' -, publicado em janeiro de 1964, e esta décima sétima longa-metragem de André Téchiné, estreada em 2004, distam quarenta anos, que dizem bem como tanto se alterou nesse intervalo de tempo. Em vez de se lutar pela transformação do mundo à medida dos desejos de quem erguia barricadas e enfrentava a polícia de choque, passaram-se a aceitar passivamente as metamorfoses impostas por essa mesma realidade dinamizada, por forças que não as dos movimentos contestatários dos anos 60. Até o próprio Dylan se sujeitou a essa rendição, porquanto não só depressa se fez acionista de empresas de armamento cotadas nas Bolsas, como se entregou a uma misticismo beato, que surpreendeu os seus mais entusiásticos prosélitos. Que essa cobardia se tenha visto galardoada com o Prémio Nobel da Literatura é daqueles absurdos só explicáveis pela conhecida degenerescência do Comité responsável pela esdrúxula decisão e culminada na não atribuição do Prémio no ano em curso.
Neste título com que, no Cineclube Gandaia, se encerra o ciclo de maio dedicado ao cinema francês,  temos um triângulo amoroso, que tem por dois dos vértices os personagens interpretados superlativamente por Catherine Deneuve e Gérard Dépardieu. Ela é Cecile, que vive uma tranquila vida conjugal em Tânger, com um médico marroquino, não aparecendo como disponível para grandes sobressaltos afetivos. Ele é Antoine, que muito a amou trinta anos atrás, jamais a esqueceu e está decidido a procura-la a fim de a recuperar e com ela viver os anos crepusculares, que lhes restam. Estão pois em causa as respostas a algumas questões bem claras: pode um amor da juventude durar para a vida? Existe alguma viabilidade na recriação de um amor que se viveu e se procura renascer? Pode o amor não recíproco ganhar essa correspondência dual através do estímulo de um dos parceiros, suficientemente impressivo para contaminar o que se revela mais recalcitrante?
Como haveria que encontrar matéria para preencher os cem minutos de filme - de outra maneira condenado à dimensão da média, senão mesmo curta metragem -, Téchiné explora estórias alternativas, que lhe consolidem dois propósitos: ecoar a narrativa principal e contextualizá-la na realidade que  lhe fica em plano recuado. Surge assim Sami, o filho de Cécile e de Nathan, vindo de Paris para, a exemplo de Antoine, convencer o amante a render-se-lhe novamente. A temática queer tem aqui expressão como é frequente no conjunto da obra deste realizador. Por outro lado  Nadia, que acompanhava Sami, procura a irmã gémea, rendida ao fascínio do islamismo radical.  Além dessa ascensão da religiosidade extremista, que inflamaria o Magrebe nos anos seguintes, Téchiné dá, igualmente, conta do movimento migratório dos africanos do sul do Sahel, pressionados pela miséria a buscarem o El Dorado do outro lado do Mediterrâneo.
Há uma nítida confrontação entre gerações, não sendo fácil encontrar convergências de valores entre os mais velhos e os mais novos, mesmo quando uns e outros buscam a felicidade. E, ao contrário de outros filmes em que dava espaço aos personagens para se entregarem à contemplação, aqui tudo se passa muito rapidamente, com a montagem nervosa a acentuar a circunstância de todos, a seu modo, se encontrarem no fio da navalha.

(S) «A Dança Macabra» de Camille Saint-Saëns

segunda-feira, maio 28, 2018

(DL) «Mãe Solidão» de Maria Alzira Cabral (2012)


«Um Deus de Pés Descalços» é o mais recente romance de Maria Alzira Cabral, que será lançado no dia 8 de junho na Biblioteca Orlando Ribeiro em Telheiras. Sem prejuízo de o virmos então a abordar, é oportuno analisar o romance anterior, «Mãe Solidão», que ajudará a melhor entende-lo e contextualiza-lo.
Comecemos então pela conhecida frase, que Lev Tolstoi inseriu na sua «Anna Karenina», segundo a qual as famílias felizes parecem-se todas umas com as outras, enquanto as infelizes o são à sua maneira. Foi ela que me ocorreu como mais óbvia ao acompanhar as vicissitudes por que passa a família Serrano em décadas marcadas pela dor, mas também pela iniquidade na distribuição dos afetos. Em contraponto surgem, igualmente, duas famílias desfavorecidas, a dos Cobres e a da Nelinha, mais preocupados com a sobrevivência imediata do que com a complexidade das relações entre os seus membros. Uns e outros permitem generalizar á escala de toda a sociedade uma realidade feita de injustiças e desigualdades, de emoções incontidas para as quais não se abrem racionalidades, que melhor lhes limitassem o sofrimento.
De início encontramos Eduardo Serrano em Lisboa no ano de 1981, quando passa cinco noites e quatro dias num quarto de hotel, entregando-se à bebida com o desespero de quem nada de bom pode esperar da vida. Frustrava nesse autoabandono a derradeira tentativa do pai para lhe consertar o destino, arranjando-lhe emprego mediante o pedido a um amigo, junto de quem o filho nem sequer se aproximara. Manifestamente a opção de o afastar do Porto não constituíra paliativo para a sucessão de fracassos pessoais e profissionais, que ele vinha acumulando. Por isso restava-lhe meter-se a caminho com o motorista para pagar o desvario do filho e trazê-lo de volta, mesmo que vedando-lhe o acesso ao ninho familiar, porque lhe importava poupar a mulher, Maria do Carmo, a tão clamoroso fracasso. Mas cedo nos é dada a chave explicativa para o comportamento de Eduardo: logo na página 16 ele afirma “eu nunca existi para a minha mãe”.
Em sucessivos flash backs, enquanto a viagem de regresso ao Porto se consuma, iremos confirmar a importância decisiva que o desamor materno teve num comportamento logo definido como marcado por “uma carreira promissora, cortada por uma ambição desmedida e sem sentido” (pág.17).
Paralelamente a essa família abastada, a escritora dá-nos a conhecer a de uma vendedeira de flores à porta de um cemitério, que encontrou expediente imaginativo para melhor garantir o sustento da filha e dos netos, já que o genro, o Enguiça, é um madraço mulherengo, que vende droga para não ter de trabalhar. Nelinha é uma mulher forte da estirpe daquelas personagens, que facilmente associaríamos a Anna Magnani, se imaginássemos o romance vertido para cinema. Sobretudo, porque a sua vida pede meças às piores agruras por que costumavam passar as personagens do cinema neorrealista italiano do pós-guerra.
O elo entre esse mundo abastado e o humilde opera-se nessa mesma Nelinha que, apesar de endurecida pelas carências nunca satisfeitas, não deixa de manifestar uma feminina solidariedade com Maria do Carmo, que sabe ter perdido dois filhos em circunstâncias trágicas e vê frequentar amiúde o cemitério para lhes visitar as sepulturas. Se tínhamos dúvidas resolvia-se qualquer suspeita de juízos maniqueístas relativamente aos  personagens entretanto conhecidos, todos eles tendo as suas razões para reagirem tal qual se nos vão desvendando. Nomeadamente como nesse momento decisivo do seu acidentado percurso, quando Eduardo vê a mãe indiferente á sua alegria na cerimónia da bênção das pastas pela qual se consagrava a sua licenciatura. A noite de embriaguez num bordel, onde causa tais desacatos, que António Serrano será convocado a pagar os estragos, já prenuncia a deriva de excessos, que será a sua num futuro não muito distante. Se bem que a acalmia enganadora ocorra com o primeiro emprego numa empresa exportadora de mobiliário em Paços de Ferreira e o casamento com Maria do Rosário, também ela pertencente a uma das mais emblemáticas famílias da cidade. O nascimento da filha, Alice, poderia ter sido a resposta para o permanente recalcamento em que Eduardo vive, sentindo no pai um rival, que consegue o ascendente junto da mãe, que ele, na sua quase incestuosa atração, não consegue sequer replicar. Dessa não confessada rivalidade surgirá a tão brusca queda nos abismos, quanto rápida parecera a ascensão a patamares de afirmação social: ao projetar manobra desleal para com o patrão - amigo do pai e dos sogros - que lhe garantira emprego de prestigio, Eduardo ver-se-á condenado a irreversível ostracismo junto da elite que até então integrara. Compreende-se assim a falhada tentativa de António Serrano em garantir-lhe um recomeço em Lisboa, tão esgotadas estavam as suas oportunidades de sucesso na cidade natal.
Num romance que evoluirá em três atos, o primeiro conclui-se com Nelinha a livrar-se do genro, oportunamente preso pelas suas atividades delinquentes e Maria do Carmo a contas com as recordações da mãe e da avó, ambas mortas precocemente com doença que ela própria teme herdar, mas sobretudo revivendo os filhos perdidos, quando eram ainda crianças e para sempre permaneceriam os seus preferidos em detrimento dos que lhes haviam sobrevivido.
Dois anos depois os receios confirmam-se: o médico anuncia a António a rápida progressão do cancro, que em breve lhe levará a esposa a quem sempre muito amara por muito que o fizesse sofrer com o distanciamento imposto a Eduardo, culpado da morte do primogénito num acidente com a arma de caça, quando tinha sete anos. Por muito que António e a própria Maria do Carmo se penalizem pela negligência de não terem mantido fechada à chave a sala onde as armas estavam guardadas, a mãe de Eduardo não se enganara na intuitiva suspeita de ter havido no gesto dele uma intenção homicida já explicada pela desigualdade de afetos de que se sentia brindado relativamente a José. Apesar de ainda ter tempo de se despedir da filha, Cristina, a quem manifestara insuficiente amor maternal, nem mesmo nesse desiderato iminente, Maria do Carmo aceita rever quem para ela nunca mais deixou de ser o assassino do seu filho preferido.
Os anos passam, Eduardo vai vegetando num emprego medíocre, que detesta, mas lhe paga o álcool consumido em excesso, retomando-se um novo elo com a história paralela da família de Nelinha, porquanto arrenda a casa que a filha desta e a respetiva sócia no negócio da venda de flores conseguiram concretizar.
Numa narrativa muito visual, Maria Cabral cria-nos o suspense no relato paralelo do parto de Rosa Cobres, uma das senhorias de Eduardo, e o seu efetivo renascer ao ver-se salvo in extremis pelo pai, quando se dispunha a pôr fim aos dias. Sobretudo, porque ele lhe vai apresentar quem verdadeiramente poderá amar como nunca até então julgara possível: a filha, Alice que, aos oito anos, muito se assemelha à avó Maria do Carmo.
Conclui-se, pois, que se os afetos são muito mais complexos na burguesia do que nas famílias mais pobres, a felicidade e autoestima convergem socialmente no equilíbrio entre a capacidade de amar e a de se fazer amado.
Nos antípodas da literatura light, que também costuma fazer da família seu tema de eleição, Maria Alzira Cabral revela-nos a dialética de dois mundos que se tocam, mas em tudo dissemelhantes nos modos e meios de expressarem os sentimentos.

(S) «The Death of Ase» de Edward Grieg

domingo, maio 27, 2018

(S) A Chaconne finale de «Les Indes Galantes» de Rameau

(DIM) «Dead Souls» de Wang Bing (2018)


Há meia dúzia de anos um filme de Wang Bing impressionou-me pelo que revelava, mais do que pela originalidade da abordagem, que não era muito diferente de outros testemunhos do real: em «Três Irmãs» víamos três miúdas muito pequenas entregues a si próprias numa aldeia remota da China,  já que a mãe saíra de casa, desaparecendo sabe-se lá para onde, e o pai estava a trabalhar numa cidade distante só aparecendo de longe em longe.  Era uma imagem impressionante sobre um país, que me dera uma versão cosmopolita, quando vivera mês e meio em Xangai.
No seu projeto «Dead Souls» - longo documentário com oito horas de duração recentemente estreado em Cannes - o realizador volta a surpreender com os relatos de velhos chineses, que viveram a dura experiência dos campos de trabalho maoístas.
Embora fosse interessante enquadrar esses testemunhos no contexto da época dessas experiências carcerais - analisar História a posteriori pode valer pelo distanciamento, mas obnubilar pela estreiteza das ferramentas que a interpretem! - o filme adivinha-se promissor na expressividade de pessoas concretas que se viram sujeitas a crueldades injustas, tanto mais que a identificação dos «inimigos» do novo regime era quantas vezes ditada por critérios aleatórios.

sábado, maio 26, 2018

(DL) «Quando as girafas baixam o pescoço» de Sandro William Junqueira (2017)


No próximo dia 30 o convidado do LAL, iniciativa mensal da Associação Gandaia, organizada e liderada pelo António Fonseca para propiciar o encontro de escritores com os seus leitores a propósito de um seu livro recente, terá Sandro William Junqueira como convidado. Lançado no ano transato, «Quando as girafas baixam o pescoço» faz-nos lembrar a conhecida frase do «Inferno» de Dante  - «Oh vós que entrais, abandonai toda a esperança!» - com uma diferença: em duas exceções (e sê-lo-ão de facto?) todas as personagens vivem no seu inferno pessoal e social, mas já nele terão nascido, nunca tendo encontrado a porta de saída de escapatória para purgatórios mais aconchegados.
De início temos um Velho a sair do Lote 19 para lançar sementes de roseiras no buraco já escavado ao lado do prédio e onde um empreiteiro conta «plantar» um lote 18. Dadas as circunstâncias sabemos inglório esse esforço, que não consegue travar a entropia causadora da infelicidade coletiva: "Lá fora, as gruas e as outras máquinas controladas por comandos insistem no barulho de erguer mais um edifício legal e, assim, contribuir para a desordem". Os meses seguintes confirmam essa impotência quixotesca: acossado por forças, que não consegue contrariar, o Velho dorme com uma pistola debaixo da almofada e até procura sair do bairro, quando vê os vizinhos sabotarem-lhe o pequeno gesto subversivo ao urinarem-lhe no canteiro semeado. Debalde, porque as fronteiras são tão intransponíveis, que nem sequer consegue vislumbrar uma miragem redentora fora delas. Sem surpresa acabará por matar-se no efémero viveiro de rosas, que sabe  em breve destruído pelo avançar das máquinas.
Além do Velho, todos os demais habitantes desse Lote 19, ou dos que vivem nas proximidades, estão enclausurados num limbo sem fuga possível. Existem duas irmãs idosas, que vivem com o gato, uma designada como Quieta e a outra como Móvel, mas mesmo esta parece não arriscar-se além da porta do apartamento. Há um Profeta, um sem abrigo com evidente desequilíbrio mental, que costuma subir para cima de um caixote para perorar sobre Apocalipses, prometendo a salvação para quem o ouvir e “fodendo-se quem o desprezar”. Mesmo um personagem mais jovem como o Adolescente Musculado não aposta voos mais alargados, constrangido pelas obsessões sexuais, que quando carecem ser satisfeitas, o levam a apenas galgar dois lanços de escadas para ir ao encontro da Mulher dos Lábios Vermelhos. Outra possibilidade salvífica poderia ser a do Homem  Exemplarmente Vestido por ser aquele que enceta um negócio prometedor: a criação de um espetáculo de aves canoras que, concluída cada uma das suas exibições, caem mortas de exaustão e de fome. Mas ele apenas para aqui é convocado para ligar esses seus crimes praticados sobre tão indefesos animais - também eles fechados nos seus «lotes 19» - àquele que irá testemunhar mais adiante e que constitui um dos dois episódios de cariz policial, que confirmam a existência latente de uma violência assassina neste tipo de bairros suburbanos.
Alternativa potencial também poderiam ser os cães, porquanto Sandro William Junqueira confere-lhes a capacidade de sobreporem a sua vontade à dos donos: “levam os homens não castrados em passeio e trazem-nos de regresso a casa.” Mas também eles não vão mais além do que a distância para que foram programados.
A evidência vai sendo reiterada sem que seja possível qualquer resgate: na página 79 proclama-se que   "a vida tem dentes e morde. É carnívora". E é-o de uma crueldade desmedida para o Homem Desempregado, já desinteressado dos seus livros de filosofia, que começamos por ver desalentado pela opção de escolher entre ter luz ou gás para cozer as três batatas que lhe restam. Quando, mais tarde, já nada tem para lhe mitigar a fome, procura enganá-la ao folhear livros de culinária ou passeando o tédio cuidando não pisar as fezes, que foi deixando caoticamente nas salas vazias. Menos excessivo, o Pai é também personagem em sofrimento não só por faltar-lhe o azeite com que tempere as iscas com que alimentará o Filho, e a quem inventa histórias para lhe decorar a infância. Ao contrário do vizinho ainda lhe resta a capacidade de sonhar, pelo menos com a Mulher dos Lábios Vermelhos por lhe adivinhar “aromas desconhecidos”.
O Amor poderia ser, de facto, a janela aberta e iluminada, que compensasse tanta inquietação e sofrimento. Mas a Mulher Gorda, que anota pensamentos no bloco de notas para ordenar a desarrumação dos pensamentos, vive no terror do regresso iminente de quem tanto a agredira em episódios dolorosos de violência doméstica. A filha, a Rapariga Magra, que sente um evidente rancor pela mãe, alimenta fantasmas de gangbangs enquanto aprofunda a anorexia, que a obrigará a internamento coercivo noutra prisão, a do hospital. O Homem que Gosta de Livros bem seria tentado pelo rapaz da tatuagem, que lê um romance no elétrico, mas não tem coragem para mais do que um breve e involuntário sinal de interesse, voltando para casa e para a companheira que, farta do seu desapreço, acabará por o deixar. As duas irmãs russas, Cátia e Katia, que trabalham nas retrosarias do bairro e estão ligadas por enfeitiçada maldição, vivem aprisionadas num triângulo amoroso concluído dramaticamente - será um dos homicídios do livro! - por intervenção vingativa de uma delas. O outro assassinato, o da mulher de Teo, que assim se livrou da frustração de por ela ser continuamente desconsiderado, é outra demonstração de como as relações conjugais em ambientes suburbanos são frequentemente ditadas pela brutalidade.
Lavrando possível paliativo para a tal desesperança dantesca, que percorre todas as páginas, resta-nos alguma expetativa em duas personagens femininas: Vera, que engravidou de um mariola conhecido no elétrico e dotado para lhe lançar aos ouvidos a canção do bandido, e decidida no final a dele desistir para se concentrar na nova vida, que lhe cresce no ventre. E a já referida Mulher dos Lábios Vermelhos, apostada em abandonar a prostituição para se concentrar no papel de cuidadora do bebé chimpanzé, que apareceu abandonado no bairro. Fica, pois, a conclusão final que, a haver alguma saída para a amargura a da maternidade parece ser a mais prometedora.

sexta-feira, maio 25, 2018

(S) «Morning Mood» da suite «Peer Gynt» de Edward Grieg

«O Segredo de Vesálio» de Jordi Llobregat


Barcelona, 1888, em vésperas da inauguração da Exposição Universal, que decorreu entre 20 de maio e 9 de dezembro, surgiu nas águas tranquilas do porto velho, junto ao cais do Lazareto, o corpo moribundo de um médico prestigiado, que morreu momentos depois de ser recolhido por quem o encontrou. Era o pai de um professor de Oxford, Daniel Amat, que emigrara sete anos antes, depois de más experiências que lhe davam vontade de nunca mais regressar, até por estar prestes a tornar-se catedrático e desposar a filha de um dos principais lentes da prestigiada instituição. Mas vê-se forçado a voltar quanto mais não seja para cuidar do funeral e da herança, embora logo à chegada se veja espoliado de toda a bagagem.
A situação complica-se quando um jornalista do «Correo de Barcelona» o quer convencer da morte suspeita do progenitor: pressionado pela direção do jornal a encontrar assunto apelativo, que justifique mantê-lo em funções, Bernat Fleixa vê nessa elucubração a notícia salvadora, que lhe salve o emprego. Junta-se-lhes também Paul Gilbert, um sisudo estudante de Medicina, que os ajuda a procurar respostas para os sucessivos crimes cometidos contra raparigas cujos corpos vão aparecendo mutilados.
Em intriga relacionada com um livro de Vesálio - o criador da anatomia humana, que sistematizara o recurso às autópsias no século XVI -, em que nada corresponde ao que se aparenta e ninguém está a salvo face a perigos sempre iminentes, o romance de Llobregat é um excelente divertimento literário.
Não é grande Literatura, porquanto nada de original se encontra na sua sintaxe, rigorosamente canónica! - mas é-a com l pequeno, muito acima das tretas mal amanhadas de Dan Brown ou do Orelhas da RTP. Estamos dispensados de nos transformarmos, como deverá ser a função de todo o bom romance, mas entretemo-nos sem dano. Por isso houve quem o equiparasse a Carlos Ruis Záfon, com justificada razão.

(S) «Legend of Devil's Lake» deMichael Sweeney

(DIM) "Woolly Mammoth: The Autopsy" de Nick Clarke Powell (2014)


Em maio de 2013 os cientistas russos fizeram uma descoberta inesperada no permafrost siberiano: um mamute lanoso incrivelmente bem conservado. A carne estava tão fresca que os cientistas chegaram a prova-la.
Nos dias seguintes a notícia esteve nas primeiras páginas dos jornais e nos ecrãs televisivos do mundo inteiro e tanto bastou para trazer para a ordem do dia a possibilidade de se fazer uma clonagem a partir desse achado. Investigadores sul-coreanos logo colheram amostras nos tecidos do animal para neles encontrarem ADN bem preservado.
O filme segue essa equipa e uma outra da Faculdade de Medicina de Harvard, que tentam compatibilizar alguns genes do mamute no genoma do seu primo mais próximo: o elefante da Ásia, a fim de produzir um híbrido, que se assemelharia ao animal pré-histórico e se comportaria como ele. Mas acompanham-se igualmente peritos internacionais que autopsiam o animal e descobrem tratar-se de uma fêmea com quatro mil anos.
A questão aprofundada é esta: será mesmo possível clonar um animal com estas características tornando possível a história ficcionada em «Parque Jurássico»? O interesse do filme é expor-nos os problemas éticos e técnicos que tal possibilidade acarretaria...

quinta-feira, maio 24, 2018

(C) «Haverá algo de Natural na natureza humana?» de Alexandre Quintanilha

(DIM) «Uma juventude alemã» de Jean-Gabriel Périot (2015)


Vinte anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial uma geração de jovens alemães começou a romper o pacto de silêncio até então eficientemente criado por Adenauer e Erhard, questionando os pais e os avós sobre qual tinha sido o seu comportamento durante o período nazi. A curiosidade era ainda espicaçada pelo facto de o novo chanceler, Kiesinger, eleito em 1967, ter sido um notório quadro do partido de Hitler destacando-se como um dos principais colaboradores de Ribbentrop. A controvérsia sobre essa situação ainda mais atiçou esses jovens, que protagonizaram um aceso conflito de gerações. É sobre essa juventude alemã, que Jean-Gabriel Periot concebeu este documentário, sobretudo por se ter radicalizado e ter encetado a contestação da ordem estabelecida através da luta armada. Razão para o filme abrir com a pergunta então formulada por Jean-Luc Godard sobre a exequibilidade de ainda se poder ou não filmar a Alemanha tal qual então se lhe apresentava.
Na conclusão surge um extrato do filme «Alemanha no Outono», realizado por Rainer Fassbinder em 1978, depois do choque nele provocado pela mais do que suspeita morte na prisão de Andreas Baader e Gudrun Esslin, quando esperavam julgamento por pertencerem à Fração do Exército Vermelho. (RAF). O cineasta colocava-se fora de campo enquanto ouvia a mãe dizer-lhe da “necessidade de um dirigente autoritário, mas ao mesmo tempo bom, simpático e sensato.” havia, pois, uma cultura de aceitação do assassinato político de quem detinha o poder para se defender de quem o punha em causa.
Entre o início e esse final Jean-Gabriel Périot desenvolve a história, a principio contada quer pelas imagens e palavras da sua lavra, quer pelos jornais e reportagens televisivas da época, quando eles se converteram nos inimigos  de estimação dos governos oeste-alemães. Nessas peças jornalísticas viam-se Ulrike Meinhof, a jornalista acutilante, que criticava a ordem estabelecida na revista «Konkret» e na televisão, ou Holger Meins, admirador confesso de Dziga Vertov que, com as câmaras da Escola de Cinema de Berlim onde estudava, documentou a revolta estudantil e a repressão policial. Se os primeiros filmes, então rodados, eram alegremente combativos, logo testemunharam a raiva impotente perante inimigo demasiado forte. E também neles comparecem Baader e Esslin, ou Horst Mahler, advogado socialista capaz de abrir eloquente requisitório contra o Estado Policial.
Intenso e excelentemente montado, mas estranho por não conter qualquer comentário que contextualize o que se vê, o filme demonstra a repressão brutal  da revolta juvenil empreendida pela polícia, com a conivência do governo e dos principais jornais e televisões do poderoso grupo Springer. Estava em causa a amnésia histórica e a injustiça social em que se fundamentava o «milagre económico», denunciando as aparências de democracia suscitadas por quem pretendia regressar tão rapidamente possível ao business as usual.
Ao mostrar como a aventura sangrenta dos líderes da RAF precipitou a acelerada reação policial, Périot dá à revolta dos anos sessenta e setenta uma ressonância trágica, ao mesmo tempo que revela quanto ela ainda se mantém latente, passível de redespertar...

(S) O Tema de Hedwig do filme «Harry Potter» composto por John Williams

(DL) Existem ou não afinidades nos escritores portugueses dos nossos dias?


Na Feira do Livro de Madrid do ano passado Valter Hugo Mãe dizia algo que não corresponde inteiramente à verdade.: que os escritores da sua geração pouco se relacionam com a sua portugalidade, porque alguns deles poderiam ter outra nacionalidade qualquer dado inserirem as suas estórias em contextos geográficos sem qualquer relação com o nosso. Ele estaria a falar de si, já que tem adotado a Islândia ou o Japão como espaços contextuais das suas narrativas, ou de um João Tordo também ele emigrado como ficcionista do ambiente natal.
Não é isso que constato, por exemplo, em Bruno Vieira do Amaral ou Sandro William Junqueira, que nos têm dado relatos recentes sobre o que é viver em ambientes suburbanos junto de uma população empobrecida e sem grandes expetativas de lhe aparecer pela frente o mirífico ascensor social. Quer em «As Primeiras Coisas», onde ilustra os habitantes do Bairro Amélia, situado algures na Margem Sul, quer em «Hoje Estarás Comigo no Paraíso», o primeiro traça um testemunho realista de uma subcultura olhada pelo narrador como se fosse um ornitólogo relativamente às suas aves. E Sandro William Junqueira em «Quando as Girafas baixam o Pescoço» segue projeto similar tomando desta feita um lote 19, situado num subúrbio parecido com os de Bruno Vieira do Amaral, para dar conta do mesmo impasse existencial em que se veem as suas personagens.
Não se confirma assim essa ilação de Valter Hugo Mãe em como esses autores contemporâneos da literatura portuguesa seriam todos diferentes entre si, dispensando a possibilidade de lhes serem encontradas afinidades. Até porque, nesta mesma vertente, os textos mais antigos de Gonçalo M. Tavares poderão ter servido de inspiração, pelo menos a Sandro Junqueira, bem como os das crónicas de Lobo Antunes, sobretudo quando toma como seus personagens os vizinhos do bairro onde vive ou viveu.
Quer isto dizer que a originalidade de tais escritores afins pode ser discutida? Claro que não, porquanto até mesmo enquanto meros ready mades de objetos pré-existentes as obras de arte, até por comportarem conceitos a eles estranhos, conquistaram o estatuto de serem efetivamente reconhecidas como propostas únicas do ponto de vista artístico.

quarta-feira, maio 23, 2018

(S) «Vivat Mozart,Variations on KV 503HOO Vivat Mozart» de Kees Schoonenbeek

(DL) Quando e onde Kipling se tornou escritor


«Tu serás um homem, meu filho». Estes versos famosos do poema «Se» pertencem a Rudyard Kipling que passou parte significativa da sua vida no Paquistão onde compreendeu a importância formativa das viagens.
Lahore pertence ao Paquistão, mas situa-se a apenas 30 quilómetros da Índia, mas antes de 1947, data da  partição do Império Britânico, estava mesmo situada no seu centro. A cidade era uma das mais belas da «joia da Coroa» por conter muitos vestígios sumptuosos do antigo Império Mogol.
Kipling chegou à cidade em 1882 para se reencontrar com a família. Com apenas 17 anos aí viveu cinco anos, os mais determinantes para nele criar a pulsão para a escrita literária. A primeira personagem, que decide traduzir em romance é Kim, um jovem inglês  que percorre a cidade, e depois as regiões a norte. Na prática é o seu alter ego e motiva-o a atravessar todas as barreiras e obstáculos para sair da zona de conforto do bairro colonial e aventurar-se pela Cidade Velha, labiríntica e bem mais fascinante. Nessa época nunca um britânico arriscava sair do lado da estrada, que dividia uma parte da cidade - a europeia - da outra, habitada pelos indo-paquistaneses.
Ele nascera em Bombaim em 1865 e esperava reencontrar em Lahore a mesma atmosfera exótica e calorosa da primeira infância de que fora apartado aos seis anos para se ver internado num severo colégio em Inglaterra. No regresso à Índia, na condição de estagiário de jornalismo, toma consciência da situação desigual entre quem usufruía de todos os direitos e os que só se obrigavama cumprir os deveres. Essa tão ostensiva contradição choca Kipling, que fica espantado com  a réplica intentada pelos seus compatriotas para, a tão grande distância, mimetizarem a arquitetura, os hábitos e costumes da velha Albion como se nela ainda se encontrassem.
A exemplo do seu criador, Kim é um jovem britânico incomodado com o rigor vitoriano do bairro colonial e uma predisposição genuína para mergulhar a fundo no universo do dédalo habitado pelas classes populares. Mas como o pai de Kipling era o diretor do Museu da cidade, ao visitá-lo o jovem contactava com os impressionantes objetos ilustrativos da cultura milenar pela qual sentiu imediato fascínio. Tanto bastou para que intuísse a riquíssima História dessa terra de acolhimento. Na mesquita descobriu a elegância incomparável dos seus azulejos com apenas duas cores: o branco e o azul. E quis atravessar outra fronteira: a da realidade com a da busca espiritual. Depois de ter conhecida o hinduísmo em Bombaim, é o islamismo que o interessa em Lahore. As intervenções dos muezzins têm nele ouvinte atento espantando-o o sentido de disciplina dos vizinhos, que se levantam muito cedo para rezarem antes de se irem dedicar às suas atividades quotidianas.
Horas a fio vagueava pelas ruas para se inebriar com os sons e aromas de uma cultura tão diferente daquela a que se havia habituado. Como jornalista essas experiência moldaram-lhe um outro estilo, que não tardaria a transpor para a ficção. Mas também conheceu o amor carnal junto das jovens cortesãs, bem mais eruditas do que as suas concorrentes ocidentais. Elas deram-lhe matéria para novelas tendo por tema os amores de jovens britânicos com belas indianas, que correspondem a outra transposição de uma linha vermelha, a das relações interrraciais.
O facto de superar diversos tabus não o impediu de ver-se galardoado com o Prémio Nobel da Literatura em 1907.