quarta-feira, dezembro 31, 2014

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: Os amores de Hemingway e de Martha Gellhorn

E eis que ao cair do pano de mais um ano de cinefilia, tive o prazer de ver um filme como já julgava não existir de cuja falta tenho sentido.
É certo que não foi realizado para o cinema, pois Philip Kaufman não conseguiu quem lho produzisse em Hollywood, mas convenhamos que, nas produções televisivas, a HBO está a fazer um trabalho muito meritório de que «Hemingway e Gellhorn» constitui exemplo impressionante.
Já vira de Kaufman alguns títulos, que me tinham agradado moderadamente («A Insustentável Leveza do Ser» ou «Henry and June»), mas sobretudo um dos que colocaria facilmente no Top-20 dos filmes da minha vida: «Os Eleitos». Razão à partida para olhar para esta proposta com natural simpatia. Mas ainda mais quando o tema é o do encontro entre Hemingway e Martha Gellhorn, com a guerra civil de Espanha por cenário de fundo, já que ali se terão enamorado e decidido casar.
Ora essa guerra anunciadora do terrível morticínio, que se seguiria entre 1939 e 1945, continua a ser um dos momentos determinantes na História dos povos. E daqueles que me levam a pensar o quanto, se fosse jovem na altura, teria gostado de alinhar na Quince Brigada a matar fascistas e a cantar «Ay Carmela».
Mais do que uma biografia de duas personalidades singulares, «Hemingway e Gellhorn» espelha uma época em que os  artistas não ficavam cingidos ao conforto dos seus ateliês ou escritórios e iam para as frentes de batalha lutar à sua maneira contra as injustiças e as desigualdades. Encontramos por isso as presenças do escritor John dos Passos (que pena ter-se reconvertido num anticomunista primário depois de saber o amante assassinado pelos espiões de Estaline!), do cineasta Joris Ivens ou do fotógrafo Robert Capa como representantes dos muitos intelectuais que adivinharam e procuraram travar a ameaça representada por Franco.
É claro que a relação amorosa de Hemingway com Martha tinha tudo para dar errado: ele era demasiado egoísta, ela incontornavelmente audaciosa. E por isso é capaz de o deixar a combater submarinos alemães imaginários em Cuba enquanto vai fazer a cobertura da guerra russo-finlandesa ou de o arrastar a contragosto à China onde odeia tanto Chang-kai-chek como se deixa impressionar por Chou-en-Lai.
A rutura acontece quando ele lhe passa a perna convencendo a Collier’s a dar-lhe o lugar de correspondente de guerra, usualmente atribuído a Martha, para a cobertura da invasão aliada à Europa. Mas nem isso consegue travar a intrépida jornalista , que está na Normandia no dia D ao contrário do ex-companheiro, entretanto deixado para trás noutra das frentes de combate.
Quando Martha lhe exige o divórcio, Hemingway bem o tenta evitar, mas é demasiado tarde. Resta-lhe abandonar-se à decadência irreversível cerceada pelo tiro com que se suicidou. Quanto a Martha passaria as décadas seguintes a cobrir diversas guerras um pouco por todo o mundo sem porém se conseguir livrar do fantasma de quem muito amara.
Fiel às biografias dos seus personagens, Kaufman contou com duas outras boas razões para concretizar um belo filme: as excelentes interpretações de Clive Owen e de Nicole Kidman. 

SONORIDADES: «Te Deum» de João Sousa Carvalho (1769)

Às 17 horas a Igreja de São Roque irá ser espaço do deslumbramento musical com a interpretação do «Te Deum» de Jerónimo Francisco de Lima. Entre as intérpretes dessa obra de celebração religiosa estará a soprano Sandra Medeiros, que podemos aqui apreciar num pequeno extrato de um outro «Te Deum» da autoria de outro grande compositor português: João Sousa Carvalho. 

terça-feira, dezembro 30, 2014

DOCUMENTÁRIO: «O Ventre, o nosso segundo cérebro» de Cécile Denjean (2013)

Que sabemos nós do nosso ventre, esse órgão recheado de neurónios, que os investigadores começaram a investigar há pouco tempo?
Segundo este filme, extremamente interessante, o nosso cérebro não é o único dono das nossas ações.
Alguns anos atrás os cientistas descobriram um segundo cérebro dentro de nós. De facto o ventre contém duzentos milhões de neurónios, que comandam a digestão e trocam informações com a “cabeça”. Só há pouco tempo se começou a decifrar essa conversa secreta. Compreendeu-se, por exemplo, que o nosso cérebro entérico, o do ventre, produz 95% da serotonina, um neurotransmissor que participa na gestão das emoções.
Esses neurónios no ventre equivalem, em número,  aos do córtex de um gato ou de um cão e permitem que, enquanto fazemos a digestão - comandada por este segundo cérebro - podemos realizar outras atividades apoiadas no seu “colega” da cabeça.
Por isso mesmo podemos concluir que a existência dos dois cérebros teve uma influência determinante na evolução da espécie.
Sabíamos que o sistema digestivo é condicionado pelo estado psíquico em que nos encontramos. Descobriu-se agora o inverso: o nosso segundo cérebro age sobre as nossas emoções.
Algumas descobertas abrem imensas esperanças terapêuticas. Doenças neurodegenerativas, como a de Parkinson, podem ter origem no ventre, já que são acompanhadas de distúrbios graves a nível do sistema digestivo. Ora, quando os tremores acontecem é demasiado tarde, porque 70% dos neurónios já estão destruídos. Ora, se ela tiver origem no ventre, a sua despistagem em fase mais precoce poderá  corresponder a um salto qualitativo na resolução desta doença.
Causa ainda maior espanto o facto desse segundo cérebro abrigar uma enorme colónia de cem biliões de bactérias cuja atividade influencia a personalidade e as escolhas que fazemos. Tímidos ou ousados, a resposta pode estar nelas.
Os genes que recebemos dos progenitores são em número inferior ao dos destas bactérias. Isto corresponde a uma autêntica revolução científica, porque começa-se a compreender a interação entre os genes recebidos dos pais e os das bactérias.
Este documentário, com entrevistas e infografias muito esclarecedoras aborda as pesquisas mais recentes feitas neste segundo cérebro. 

COSMOS: o Universo em expansão

Hoje os cientistas têm duas teorias principais para explicar a arquitetura do Universo. Elas coexistem há um século sem nunca se conseguirem compatibilizar. Propõem-nos, de facto, duas conceções totalmente diferentes.
A Teoria da Relatividade Geral de Einstein  explica  a estrutura do universo a uma escala infinitamente grande, articulando a existência do espaço e do tempo.
A Mecânica Quântica só funciona na escala do infinitamente pequeno, ao nível das partículas elementares.
Há dezenas de anos que sucessivas gerações de físicos procuram encontrar formas de as conjugar ou de encontrar uma outra capaz de as superar.
Enquanto não surge um novo Einstein, capaz de resolver este impasse, a humanidade vai apostando em telescópios de cada vez maior dimensão para se aproximar tanto quanto possível dos limites. Mas, a prazo, trata-se de um esforço  inglório: todos os 15 mil milhões de anos o universo triplica de tamanho.  O que significa que, além de cada vez maior, ele ficará menos iluminado à medida que as estrelas vão morrendo e ele conheça o seu fim. O nosso sol, por exemplo,  ainda brilhará por mais cinco milhões de anos antes de morrer, sobrevivendo-lhe ainda muitas outras estrelas.
Muitas das galáxias que hoje se podem ver, tornar-se-ão cada vez mais distantes e impercetíveis.
Este cenário é triste, mas aparentemente verosímil.: infinito em tamanho e em duração, o universo a que pertencemos terá um final anunciado na forma de uma completa escuridão.
Nesta altura o universo é constituído por 73% de energia negra  e de 23% de matéria negra. O resto, ou seja 4% do que constitui o cosmos,  é feito de matéria comum, aquela que conhecemos.
De há um século para cá, graças às equações de Einstein, os cientistas conseguem descrever o universo que observam  e tentam reconstituir a sua História. Mas este modelo funciona  com 96% de algo de inexplicável. Não há, por agora, teoria que consiga fazer melhor do que esta!
Mas será que com todo este lado misterioso, o céu não se revela afinal bem mais fascinante?

DIÁRIO DE LEITURAS: Modiano e a busca do tempo perdido

Tudo começa numa tarde em que, deitado no sofá do apartamento donde quase não sai, Jean Daragane ouve o telefone tocar insistentemente. Estranheza é o que sente, já que tal não acontecia há muito, muito tempo.
É assim que se inicia o romance «Pour que tu ne te perdes pas dans le quartier», da autoria de Patrick Modiano e chegado às livrarias francesas em vésperas dele ser designado como o Prémio Nobel da Literatura deste ano.
Embora curtos - este anda pelas 160 páginas - os romances do escritor francês não são para ser lidos à pressa como se fossem guloseimas a que não resistíssemos. Ele é mais do género da iguaria para ser apreciada com delongas, usufruindo o prazer de cada frase, de cada diálogo, de cada novidade sobre cada um dos personagens.
Daragane atende o telefone e deixa entrar nos seus dias um desconhecido com um caderno de endereços por ele perdido e que o devolve a um episódio marcante da infância, mas convenientemente esquecido desde então.
Quanto mais o narrador progride na investigação sobre o seu passado, mais incompreensível ele se torna. A memória, em vez de esclarecer, ainda mais confunde...
Reside aí uma das razões para o fascínio suscitado pelos romances de Modiano: nós, enquanto leitores, conservamos uma componente enigmática sobre o passado, visto pelos olhos da criança, que deixámos de ser.
Mas Daragane vai compreender algo mais: as suas memórias não coincidem com as das testemunhas desse mesmo passado e das pessoas então encontradas.
A questão colocada pelo livro é esta: não será vã a tentativa de procurar o tempo perdido, seja porque ficou esquecido, seja porque dele criámos memórias imaginárias?
Como costuma acontecer nos seus romances vemos Modiano explorar esse lado misterioso de cada ser, que é a memória.
O romance vai alternar em três tempos: o da infância, o da juventude e o da maturidade. É neste último que o passado vem à procura do presente, fazendo resgatar as recordações já muito distantes do patamar da consciência.
É como se a vida fosse um oceano turbulento, com vagas que fluem e refluem, desvendando ou escondendo acontecimentos passados.
No tom melancólico da sua prosa, Modiano subscreve na prática a expressão de Stendhal com que muito se identifica: “Não posso transmitir a realidade dos factos, resta-me apresentar-lhes a sombra”. É essa a citação com que abre o romance, que resume quase toda a obra nos seus cinquenta anos de atividade literária: desvendar os mistérios da vida nas suas silhuetas, nos seus recessos e reflexos...

segunda-feira, dezembro 29, 2014

DIÁRIOS DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: Quando os cowboys estavam na moda!

Quando penso em westerns clássicos é inevitável lembrar John Ford. Porque foi ele quem reivindicou a condição de realizador desse tipo de filmes numa célebre reunião em Hollywood em que defendeu os colegas perseguidos pelo macartismo, e porque não houve quem filmasse melhor a paisagem  - bela de tirar o fôlego! - de Monument Valley. Além de inserir um oportuno, mas insólito lirismo, no ambiente brutal do Oeste Selvagem.
Mas o western desse período áureo do pós-guerra não se resumiu a Ford. Houve também Howard Hawks, Raoul Walsh … e Anthony Mann!
Antes de chegar ao western - para nele assinar alguns dos seus títulos mais interessantes - Mann realizara um conjunto de filmes policiais muito meritórios.
«Esporas de Aço» é de 1953 e nele demonstrou  a sua característica austeridade. Os outros realizadores apostavam seriamente nas cenas de ação e na exacerbação de sentimentos dos personagens. Mann, pelo contrário, apostava na contenção, cingindo a um ataque de índios o momento mais movimentado do filme, e fazendo com que os atores desteatralizassem as situações dramáticas.
Filmado na região de Durango, onde não faltavam as paisagens de montanha e de cascatas, integrou-as no filme como se fossem mais um personagem a associar-se aos cinco de carne e osso.
James Stewart é Howie, um antigo soldado sulista e agricultor. Milliard Mitchell faz de Jess, que fora garimpeiro. Ralph Meeker é Roy, ex-oficial do exército da União.
Os três conseguiram capturar Ben - interpretado pelo sempre excelente Robert Ryan -  por quem era oferecida uma recompensa de 5 mi dólares, morto ou vivo.
Se Howie aposta em entrega-lo com vida, os dois sócios  não estão assim tão convencidos, já que lhes importa sobretudo o prémio.
Para dar um toque feminino ao argumento também surge a jovem Janet Leigh, ainda muito antes de ser assassinada no banho em «Psico».
Ela é apresentada como a namorada do melhor amigo de Ben, de cuja inocência não duvida.
Ao longo da viagem pela natureza selvagem, as dúvidas vão-se esclarecendo: Jess  também é convencido por Ben da sua inocência e, quando se distrai, já foi abatido à queima-roupa.  E a armadilha, que ele prepara para se livrar de Howie e Roy só não resulta porque Lina compreende a tempo a sua ilusão e desmascara-o.
Na troca de tiros, Ben morre e cai à água, levando Roy a mergulhar na corrente para  recolher o corpo, com que comprovaria o merecimento da recompensa. Mas um tronco atinge-o e ele desaparece.
A Howie e a Lina resta-lhes partir juntos para o primeiro dos dias do resto das suas vidas.
Temos, pois, uma história em que quatro homens e uma mulher espreitam-se, desafiam-se, confrontam-se e abatem-se.
Como de costume no género há um bom (Howie), um mau (Roy) e um ainda pior (Ben).
No ritmo lento, em que Mann se compraz na revelação psicológica dos personagens, Howie é o homem rústico, sem nada de visionário nem de romântico. É teimoso, não muito esperto, embora experiente por tudo quanto até então vivera. Muito diferente, pois, do arguto Ben ou do corajoso e bem humorado Roy, mesmo que ambos não demonstrem quaisquer escrúpulos.
Nesse sentido Mann - que foi sempre uma espécie de tarefeiro dos estúdios, passando por quase todas as tarefas até chegar à realização - tem em Howie  uma espécie de alter ego.
Sessenta anos depois da sua estreia, «Esporas de Aço» é um dos melhores exemplos do que era um western na sua época áurea...

DIÁRIOS DAS IMAGENS EM MOVIMENTO (III): A utilidade de falar de escravatura

Há uns dias atrás Charles Esche, o responsável do Van Abbemuseum  de Eindhoven, veio dar uma conferência à Gulbenkian em que depreciou a importância do abstracionismo por hoje se exigir utilidade à arte num mundo tão inquieto com as suas contradições. Conceitos de «arte pela arte» ou similares podem fazer sentido para quem a quer restringir à condição de mercadoria desatinada a ser vendida e comprada, mas não àqueles que a julgam imprescindível para associar-se ao esforço transformador destinado a criar algo de determinantemente novo...
Recordei essa sugestão, quando vi «12 anos escravo» de Steve McQueen. Porque se o filme tem os méritos estéticos, que a condição de artista plástico do seu realizador impõe, muito mais sentido faz a história do protagonista, um homem livre raptado num dos Estados da União para servir de escravo nos que, a sul, ainda mantinham essa indignidade na lei.
Pode alguém perder subitamente a liberdade por se ver enleado numa armadilha ilegítima? Basta pensarmos no prisioneiro da cela 44 do Estabelecimento Prisional de Évora para percebermos como, quase dois séculos passados sobre a história real, que serviu de substância ao argumento do filme, subsiste a mesma torpeza e arrogância nos que decidiram perpetrar tal infâmia.
Na altura em que «12 anos escravo» se estreou houve críticos, que se revelaram desagradados com o seu maniqueísmo. É certo que, quase sempre, a realidade é muito mais do que aquilo que dela possamos ver a preto e branco. Mas o “quase” está nas exceções de que a escravatura, como paradigma do que é ignóbil, constitui exemplo esclarecedor.
Quem assistiu por estes dias num telejornal  ao obsceno extrato de um filme do autodesignado Estado Islâmico em que se viam umas raparigas assustadas perante os facínoras, que as guardavam e dividiam entre si, pôde comprovar que os Salomon Northup continuam a existir nos nossos dias. E que livrá-los de tal sofrimento continua a ser um imperativo urgente.
O filme de McQueen pode ser visto como o outro lado da história de «E Tudo o Vento Levou».  A época e o espaço geográfico são quase os mesmos, mas o retrato que dão não poderia ser mais dissemelhante. Onde os donos das plantações de algodão do clássico de 1939 eram mostrados como gente fina e cordata, no do realizador inglês surgem como bárbaros cruéis e sanguinários. Os bem tratados escravos de Scarlett O’Hara dão aqui lugar aos violentados continuamente, quer nos corpos, quer sobretudo nas psiques.
Está aqui, pois, um paralelo interessante com o que se passa à nossa volta: bem pode passos coelho querer dar a ideia de um país glamourosamente a livrar-se das nuvens negras, que nunca conseguirá dissociar-se do facto de liderar o governo de um país, que mantém um preso político há quarenta dias na prisão…
Nesse sentido, e independentemente dos muitos prémios com que se viu reconhecido, “12 anos escravo” cumpre o estipulado pelo conferencista da Gulbenkian: é extremamente útil para explicitar o quão hediondo pode ser o poder absoluto, aquele em que não há quem guarde os guardas dos que estão privados da sua liberdade... 

domingo, dezembro 28, 2014

DIÁRIO DE LEITURAS (III): A África vivida e a relatada

A África pode suscitar alguns equívocos. Como aquele que, no editorial do 4º número da edição portuguesa da revista «Granta», é relatado por Carlos Vaz Marques:  tinha cinco anos quando recebeu a notícia do iminente nascimento de um primo na parte da família, que vivia numa das colónias africanas.
Quando, meses depois, o conheceu  viu desfeita a ideia que dele preconcebera: em vez de tez negra, descobriu-o idêntico a outros bebés entretanto vistos cá no continente. Na sua inocência o jovem Carlos julgara que a cor da pele dependia do sítio onde se nascia.
O meu equívoco mais memorável sobre África aconteceu quando aportei pela primeira vez à Cidade da Praia. Lembro-me de ter pensado: “é a minha estreia neste continente!”, o que era totalmente infundado. Anos antes já andara pelas ruas de Port Said e  pelo souk de Casablanca.
Mas, num e noutro caso, eu atribuía tais locais ao Magreb, como se a África só merecesse tal designação abaixo do Bojador.
Nos anos seguintes tive o privilégio de registar milhentas imagens vividas do Continente. No paquete, que me dera a conhecer Cabo Verde como a primeira das ex-colónias visitada, não tardaria a recolher memórias inesquecíveis na beleza selvagem  da praia de Nossi-bé em Madagáscar, na arquitetura de influência árabe dos degradados edifícios de Zanzibar, na sofisticação turística da ilha de Praslin nas Seychelles, onde as enormes tartarugas cruzavam-se placidamente connosco ou na pitoresca campanha eleitoral em dia de designação do presidente na capital das Comores. E também no forte construído pelos portugueses em Mombaça, no Quénia, onde surpreendentemente consegui telefonar para casa a partir de uma cabine telefónica na rua.
Mas não foi só a beleza ou o lado pitoresco, que colhi de África ao longo dos vários anos em que cirandei pelos seus portos. Descobri, igualmente, o quanto ela pode ser absurdamente perigosa.
Em Douala, na Republica dos Camarões, fui preso por, enquanto responsável pela casa das máquinas, ter «poluído» os ares africanos com o fumo da caldeira a arrancar. Na realidade não pactuara com um tipo de “negócio” habitual entre os navios e quem em terra recolhia supostamente as águas poluídas, e contava vê-las acompanhadas de combustível bom e  de borla.
Em Ponta Negra, na República Democrática do Congo, o chefe da polícia quis-me levar preso por o “ter querido atropelar” na rua nessa mesma tarde, valendo-me estar a jantar com um madeireiro português, que afiançou saber-me a bordo nessa altura, desmentindo a infundamentada acusação.
Em Dacar, eu e o imediato do navio fomos ao mercado local à procura de freios para o molinete e tivemos de ser dali retirados rapidamente, porque um gang já se preparava para nos assaltar.
África significa isso mesmo: as paisagens fabulosas que vi num dia em que viajei longas horas de carro entre Port Elizabeth e Durban, mas também a violência de uma guerra civil como a que nos fez permanecer ao largo de Lagos durante mais de um mês, com os mantimentos quase esgotados, enquanto militares golpistas guerreavam os defensores do poder vigente.
Não é, pois, sítio apenas de gerar equívocos.  Pode ser extremamente bela, mas também pode significar a tragédia ocorrida com um amigo, o Leitão, em São Tomé no dia em que Miguel Trovoada quis derrubar o presidente Pinto da Costa e ele estava no local errado à hora errada para receber o inesperado tiro que o matou. 

sábado, dezembro 27, 2014

COSMOS: Universo em Expansão

Anteriormente concluíramos que não conseguimos ver a matéria negra nos telescópios, porque eles tenham limitações de alcance, mas porque ela não emite luz.
Resta-nos, pois, detetar  os movimentos induzidos  nas galáxias por essa matéria negra , como se fossemos os antigos marinheiros polinésios a orientarem-se no mar alto através dos destroços impelidos pelas correntes marítimas.
Seguem-se, assim, as “correntes das galáxias”, criando uma cartografia do que se vê e presumindo o que permanece invisível. Por dedução concluiu-se que existem concentrações dessa matéria negra. Como, por exemplo, o Aglomerado da Virgem, que contem um grande número de galáxias próximas de nós.
Mas nós próprios, e tudo quanto nos rodeia, estamos a movimentar-nos a 630 quilómetros por segundo  na direção  do Grande Atrator, uma anomalia gravitacional no espaço intergaláctico dentro da influência do Superaglomerado de Centaurus, onde se adivinha uma concentração de massa equivalente a dezenas de milhares de massas da Via Láctea.
Há vinte anos  que ela motiva a atenção dos astrónomos por  não se justificar que essa região do espaço nos atraia a tal velocidade. Justifica-se assim a grande questão: será que a Via Láctea será um dia engolida pelo Grande Atrator? É duvidoso, porque se a gravidade nos tende a atrair para ele, a expansão do Universo tende a afastar-nos.
Graças aos trabalhos de Edwin Hubble há mais de oitenta anos que se conhece a expansão do universo. Ele dilata-se e as galáxias tendem a distanciar-se umas das outras.
Em 1998, os astrónomos que estavam a trabalhar no Observatório de Mauna Kea chegaram a uma descoberta surpreendente: ao observarem a explosão de uma supernova  mediram a velocidade da expansão do universo e concluíram que, pondo em causa as teorias até então prevalecentes, ela está a acelerar.
Pode-se hoje conjeturar ter existido um big bang na origem do universo seguido da sua contínua expansão.
Se não existisse gravidade tudo se diluiria e dispersaria de forma instantânea. Por isso julgava-se que o universo encetaria uma rápida expansão e, depois, abrandaria. Até se formulou a teoria de uma expansão até determinada altura e depois uma  contração irreversível (o “Big Crunch”).
Outra hipótese era a de que a gravidade tornar-se-ia tão fraca que o universo iria apagar-se. Não se ponderava na possibilidade de se chegar à velocidade desta aceleração, sem que a gravidade a conseguisse contrariar. Mas curiosamente Einstein pensara nessa hipótese, que só a mecânica quântica poderia consubstanciar através da hipótese de residir no nada a origem dessa aceleração. Como se fosse uma tensão que se liberta espontaneamente no vazio. Mas hoje ainda permanece inconciliável o comportamento da matéria (infinitamente grande) na lógica da relatividade geral e na do infinitamente pequeno.

DIÁRIOS DAS IMAGENS EM MOVIMENTO (II): Um Turner dececionante

Muito embora Mike Leigh nunca tenha sido um realizador, que me tenha particularmente entusiasmado com os seus filmes, mesmo reconhecendo-lhes amiúde uma valia acima da média, tive esperança que o seu «Mr. Turner» me desse particular prazer.
Hélas! Estamos na demonstração exemplar de como o todo pode valer bem menos do que a soma das partes.
Senão vejamos: em primeiro lugar o realizador e os colaboradores conseguiram uma reconstituição mais do que irrepreensível da época em que viveu William Turner. Ela é simplesmente perfeita nos cenários, nos rostos, nas formas de expressão (o omnipresente “indeed!”), e até mesmo no som que fazem os passos a pisarem os soalhos.
Os desempenhos dos atores e das atrizes estão ao mesmo nível da perfeição, a começar por Timothy Spall, que andou dois anos a preparar-se para interpretar o papel do célebre pintor chegando a ter lições de desenho e de pintura para acrescentar credibilidade às cenas em que dá retoques finais nalguns dos quadros.
Para quem mais do que gosta da obra de Turner - como é o meu caso! - as cenas em que ele se encontra com os enquadramentos do que serão alguns dos seus quadros mais conhecidos («A Última Viagem do Temerário» ou o «Chuva, Vapor e Velocidade») são momentos de grande intensidade por adivinhar-lhes o resultado quando traduzidos na tela.
Nada a criticar, igualmente, nos dados biográficos, que o filme nos vai facultando, e são muito fiéis ao que sabemos da vida do pintor.
Como se explica então um certo enfado, que até o mais rendido dos apreciadores da arte de Turner não consegue evitar?
Só vejo uma explicação: Mike Leigh prolongou demasiadamente o tempo de duração do filme. Em vez de duas horas e meia, ele teria ganho bastante com a depuração de algumas cenas, que em nada adiantam ao conjunto da história,  e lhe garantiriam outro ritmo. Calculo que, com meia hora a menos, «Mr. Turner» teria sido bem mais entusiasmante.
Mas, se se podem encontrar diversas cenas passíveis de serem cortadas na montagem, surpreendi-me com a escassa importância atribuída ao episódio em que Turner se faz agarrar ao mastro de um navio em plena tempestade para surpreender as tonalidades das cores quando a fúria dos elementos se desencadeia. Tido como  autêntica epifania ocorrida na vida do pintor e que muito influenciaria a sua demanda da cor, passou quase tão despercebidamente como outros igualmente relevantes para o caracterizar como precursor do impressionismo e por isso mesmo condenado ao ostracismo a que o votaram os colegas e a família real na fase final da expressão da sua criatividade, quando ela se revelava muito avançada para os cânones da época. 



sexta-feira, dezembro 26, 2014

SONORIDADES (I): o «Te Deum» de Jerónimo Francisco de Lima

Sou daqueles ateus, que não fica indiferente à beleza impressionante da música religiosa e dos espaços onde ela é muitas vezes celebrada. Por isso mesmo justifica-se a expectativa pelo excelente espetáculo proposto pela Gulbenkian na tarde do dia de São Silvestre, com a apresentação do «Te Deum» de Jerónimo  Francisco de Lima, na Igreja de São Roque, com a Orquestra e o Coro da Fundação a serem dirigidos pelo maestro Jorge Matta.  Será a oportunidade para ouvir pela primeira vez desde há mais de dois séculos uma obra, entretanto quase caída no esquecimento.
Composta por volta de 1780, integrava-se na tradição jesuíta de aproveitar o último dia do ano para dar graças às mercês e benefícios propiciados por Deus nos doze meses anteriores e que continuou a ser levada por diante mesmo após a expulsão da ordem em 1759. É que já ganhara o estatuto de ser uma das mais importantes cerimónias da capital ao longo de todo esse século e contribuía para bem mais do que o seu estrito objetivo religioso.
Segundo o texto de Jorge Matta para o programa de sala, a cerimónia “constituía (…) um bom exemplo do aproveitamento da teatralização da liturgia na afirmação do poder absoluto”.
Vivia-se em plena Contra-Reforma e todas as ocasiões eram aproveitadas para impressionar os fiéis com a grandiosidade da celebração faustosa na crença em Deus. Utilizavam-se por isso  grandes orquestras, que acrescentavam a espetacularidade da cerimónia, ao já de si impressionante espaço arquitetónico onde decorria.
Quando ainda era a Companhia de Jesus a organizá-la costumava ocorrer na Igreja de São Roque perante a presença da família real, do alto clero e do corpo diplomático. Faz, pois, todo o sentido a aposta da Gulbenkian em regressar ao local onde originalmente se costumava ouvir esse Te Deum, apesar de, quando Jerónimo Francisco de Lima compôs o que agora se irá ouvir, já as cerimónias tivessem passado para a Capela Real da Ajuda.
O compositor estudara desde os seus 10 anos no Seminário da Patriarcal e, depois, em Nápoles, onde frequentou durante seis anos o Conservatorio di S. Onofrio a Capuana.
Quando regressou a Portugal tornou-se professor e cantor no Seminário onde iniciara os estudos, sucedendo a João de Sousa Carvalho como Mestre de Capela em 1797.
Sendo igualmente autor de diversas óperas, Jerónimo Francisco de Lima foi muito influente na evolução da música portuguesa na segunda metade do século XVIII.
Não havendo ainda qualquer registo discográfico ou em vídeo sobre esta obra específica, não conseguimos o desejado aperitivo para o espetáculo em causa. Em alternativa contamos com a interpretação da soprano Sandra Medeiros de uma ária do mesmo compositor, mas pertencente à opera «Teseu».  Ela será uma das cantoras líricas presentes na Igreja de São Roque para a interpretação do «Te Deum».
Essa gravação tem dois anos e conta ainda com o desempenho do maestro João Paulo Santos ao piano.