segunda-feira, setembro 30, 2019

Apontamentos nas margens das notícias: Os demagogos e os que neles acreditam


No mínimo muito imaginativa é a capa da Economist desta semana, que conota Trump e Johnson com dois personagens de «Alice no País das Maravilhas» cuja excentricidade raia o domínio do absurdo.
Estamos numa época que os historiadores do futuro interpretarão como aquela em que, sem soluções para garantir a sobrevivência, o sistema económico vigente optou pela farsa como forma de entreter quem teria toda a vantagem em sacudi-lo com determinação. Mas inquieta o facto de serem farsantes perigosos capazes de causarem enormes danos em quem sofrerá as consequências das esdrúxulas decisões. Valer-nos-á que, um e outro, passarão depressa à História como curiosidades de rodapé, substituídos por quem possa dar resposta assertiva aos desafios impostos pela complexidade do mundo futuro.
Ainda sobre Trump vi agora um documentário sobre os príncipes, que governam a Arábia Saudita, os Emiratos Árabes Unidos e o Qatar, todos eles competindo por serem os que maior notoriedade alcançam nos media internacionais. Terá sido por mera inveja de verem o rival Tamim al-Thani ter conseguido o Mundial de Futebol de 2022, que os rivais Mohammad bin Salman e Mohammed Ben Zayed terão firmado o pacto pelo qual andam os iemenitas a pagar os trágicos custos em fome, miséria e sangue. E terão acusado Thani de apoio ao terrorismo convencendo Trump a secundá-los na acusação, que fazia prever uma invasão a curto prazo. Ora o idiota da Casa Branca desconhecia que a principal base militar norte-americana onde está centralizada toda atividade na região e no Afeganistão esta precisamente no Qatar.
Um par de anos depois, e com o assassinato do jornalista Jamal Ahmad Khashoggi  pelo meio, o herdeiro do trono saudita não só depara com a ostracização da comunidade internacional, que na Cimeira do G20 o remeteu para humilhante canto na fotografia oficial como depara no Iémen com o seu Vietname pessoal, numa derrota anunciada, que nada tem a ver com os videojogos de que tanto gosta, mas tão diferentes do que lhe vai devolvendo a realidade.
A concluir vale a pena reproduzir aqui uma frase de Karl Kraus hoje reproduzida no «Público»:  “o segredo do demagogo é o de se fazer passar por estúpido perante a sua plateia para que esta imagine ser tão esperta quanto ele” Uma frase que se cola na perfeição a Trump, a Boris Johnson, a Rui Rio e a Assunção Cristas, bem como aos respetivos apoiantes.

domingo, setembro 29, 2019

Diário de Leituras: Uma escritora a soldo


Claire Messud é uma escritora norte-americana, que tem dado aulas de Escrita Criativa e é autora de um romance razoavelmente bem sucedido comercialmente entre nós graças à respetiva tradução: «Filhos do Imperador» O tema era o do amadurecimento de três amigos trintões em Nova Iorque, com as suas ilusões e desilusões.
Não é ele que aqui vem a talhe de foice, mas um conto - «A Estrada de Damasco» - publicado na edição portuguesa da Granta. Porque contém a interessante e cândida revelação de uma vertente da estratégia política dos Estados Unidos nas últimas décadas: o ativismo da CIA e de outras agências norte-americanas no sentido de influenciar os gostos culturais nos países particularmente contemplados pelos interesses económicos dos titereiros da marionete conjunturalmente a ocupar a Sala Oval da Casa Branca.
Hoje está mais do que divulgada a importância que esse esforço de condicionamento dos cânones artísticos europeus teve na promoção da obra do pintor Jockson Pollock, entendido pelos seus divulgadores como antídoto bastante persuasivo ao realismo socialista dos artistas soviéticos em pleno ambiente da Guerra Fria.
No conto em causa Claire Massud diz, preto no branco, que foi para Damasco mediante o financiamento do Departamento de Estado norte-americano - mero eufemismo para designar quem verdadeiramente lhe financiava a estadia! - a fim de ensinar os estudantes libaneses a utilizarem as ferramentas de uma narrativa literária eficiente.
O resto da estória é o que se pode esperar de uma autora com os conhecimentos nessa matéria: aproveita para ir à procura dos vestígios da cidade, quando o pai aí vivera em criança, porque o avô fora para aí destacado como representante do governo colaboracionista de Vichy durante a Segunda Guerra Mundial.
Culpabilizada pelo facto de ter viajado para o Médio Oriente, quando o pai estava a  viver os últimos dias de vida numa cama de hospital, essa procura de quem ele fora constitui um alibi, que acarreta uma conclusão óbvia: apesar de, após muitas deambulações, ter encontrado a rua em que ele vivera, nada sobra na paisagem - edifícios, geometria do espaço - que corresponda a esse desígnio. Mas não estamos bem cientes de como as paisagens, onde nascemos e crescemos, mudam bem mais do que nós mesmos?

Diário das Imagens em Movimento: «O Irlandês» de Martin Scorcese


É um dos acontecimentos cinematográficos deste segundo semestre do ano: a apresentação de «The Irishman», o mais recente filme de Martin Scorcese, só disponível para os assinantes da Netflix, mas que foi agora estreado no Festival de Cinema de Nova Iorque.
Quem o viu assinalou o regresso, quase trinta anos depois, ao universo de «Tudo Bons Rapazes», reencontrando-se Robert de Niro e Joe Pesci imersos nas suas atividades do crime organizado, um como o homicida conhecido por pintar as casas de vermelho com o sangue das suas vítimas e o outro como chefe da família Bufalino, que tomara aquele sob sua proteção, quando viera da Segunda Guerra Mundial e outro saber não tinha para além do que o levara a despachar um substancial numero de inimigos na frente italiana.
Al Pacino é o outro vértice do triângulo, compondo o personagem de Jimmy Hoffa, o sindicalista que ligou a máfia ao poder político e cujos comprometedores segredos terão explicado o seu desaparecimento, que é um dos mistérios inexplicados da América do último meio século.
Baseado num livro sobre o percurso de Frank Sheeran, esse tal irlandês que se viu dividido entre a sua fidelidade a um ou a outro e rejeitado pela família, que nunca lhe aceitou a «profissão», o filme revisita alguns dos assuntos mais polémicos do século XX norte-americano: a luta entre as mafias para se apossarem dos casinos em Cuba, a invasão da Baía dos Porcos ou o assassinato de John F. Kennedy.
É um filme com três horas e meia de duração, realizado e interpretado por septuagenários (ou que já passaram os oitenta como sucede com Harvey Keitel) e por isso reflete a nostalgia de um tempo, que já passou e não tem como regressar. Porque sobressaíram novos modelos de enriquecimento e outras subtilezas para condicionarem e manipularem os poderes  políticos. Mas Scorcese já não tem grande apetência por arriscar nessas bem mais complexas narrativas preferindo terreno seguro, aquele em que já concretizara um dos grandes títulos da sua filmografia.
Acresce ainda outro motivo para ver o filme: a possibilidade de apreciar a eficácia dos efeitos especiais em tornar verosímeis os personagens, quando mais novos. Se dantes a solução residia na maquilhagem e na opção por planos mais distanciados dos intérpretes, agora está-nos garantida a oportunidade de vermos De Niro, Pacino ou Pesci como se tivessem estado a rodar o filme em sucessivas décadas e à medida que iam envelhecendo.

quinta-feira, setembro 26, 2019

Diário das Imagens em Movimento: «Eu não sou o teu negro» de Raoul Peck (2016)


Exilado em Paris para se sentir menos asfixiado pelo clima de segregação racial em que crescera, James Baldwin decidiu-se pelo regresso às origens, quando, entre 1963 e 1967, estavam a ocorrer os sucessivos assassinatos de Medgar Evans, Malcolm X e Martin Luther King. Quando morreu, em 1987, estava a preparar um ensaio sobre a história das desigualdades raciais nos EUA e de como as minorias eram - e continuam a ser! - oprimidas. Foram essas páginas que estimularam o haitiano Raoul Peck a criar este filme de homenagem a quem lançou tantas chaves de compreensão para o que a América foi, é e ainda continuará a ser por muito tempo. Porque cedo, ao ver westerns  com o seu idolatrado Gary Cooper, ficou surpreendido por intuir algo que até então não compreendera: não poderia identificar-se com os cowboys brancos, que dizimavam dezenas de índios com cada tiro disparado, porque era a réplica dessas vítimas de uma forma de ocupação do espaço geográfico norte-americano.
Quando, anos mais tarde, via Doris Day no patético papel de dona-de-casa dos anos 50, já nenhuma ilusão o animava quanto ao facto de ter existido a invenção de um estereotipo de negro, que muito convinha aos brancos como forma de sedimentar o tipo de sociedade em que se sentiam confortáveis, mesmo que isso implicasse a permanente humilhação e opressão de uma parte significativa dos seus vizinhos, infelizmente oriundos dos antigos escravos cuja alforria constituíra um proforma sem a correspondente substância.
Peck insere imagens das explosões de raiva mais recentes, sobretudo quando polícias de disparo fácil assassinaram pessoas a sangue frio por terem como único «crime» a cor errada da pele. E não evita o outro lado da questão, que se traduz na forma como o capitalismo - porque é ele o sistema que constitui o tronco das presentes desigualdades! - procurou neutralizar os protestos dessa importante parcela da população ao tornar num rentável negócio a irreverência inicialmente assumida pelo rap. Mais do que a etnia, o que fundamenta a disfuncionalidade da sociedade norte-americana é o abismo de rendimentos e de oportunidades entre uma maioria da população, vegetando na pobreza,  e a minoria que vai usufruindo, ou ainda julga exequível, o american dream.
Constatava Baldwin que a América não um país de homens livres, porque grande parte da população está sujeita a um pesadelo social.  E para lhe pôr fim é preciso exigir um outro tipo de sociedade, um outro tipo de sistema económico.

Apontamentos nas margens das notícias : A verdadeira prova da vida extraterrestre?


Stephen Hawking recordava o triste destino dos ameríndios, que tinham sido dizimados em poucas décadas, quando os colonos iniciaram a sua «conquista» da América. Perante os possíveis extraterrestres exortava os terráqueos ao silêncio sob pena de se verem atingidos por um projétil chegado à Terra à velocidade da luz e contendo um vírus mortal, uma nanotecnologia letal desconhecida ou outra qualquer forma de apocalítica destruição. Por isso criticava os que, sem passarem cavaco aos contemporâneos, começaram a enviar sinais de rádio para o espaço sideral a partir de 1974, quando se tomou a primeira iniciativa nesse sentido na antena de Arecibo em Porto Rico.
Que se continue à escuta de indícios dessa presença alienígena, poucos o contestam, sobretudo as oriundas dos mais de quatro mil exoplanetas detetados desde 1995, alguns dos quais suficientemente dimensionados e distanciados da sua estrela para poderem conter água em estado líquido. Mas que o envio de tais sinais se multiplique de acordo com o entusiasmo de tantas equipas de cientistas cujo objetivo é verem-se reconhecidos como os tais, que terão entrado em comunicação com outros seres do universo, constitui assunto que vai alimentando polémica entre os seus defensores e os detratores.
Os que porfiam em enviarem essas provas de vida terrestre para as profundezas do espaço apresentam um argumento, que parece ser difícil de contestar: nas últimas décadas já produzimos tantas emissões radiofónicas, televisivas ou de comunicações, recebidas e refletidas pelos satélites em torno do planeta, que os correspondentes fluxos de ondas eletromagnéticas poderão facilmente alcançar outras civilizações que, se tecnologicamente mais avançadas, poderão conhecer-nos sem grandes dificuldades. Valer-lhes-á possivelmente a mesma sageza que levava Calvin a confidenciar ao Hobbes a razão porque nunca connosco teriam contactado até então: porque são, de facto, bastante mais inteligentes.

quarta-feira, setembro 25, 2019

Diário das Imagens em Movimento: «Túmulos sem Nome» - um luto que nunca acaba


Entre 1975 e 1979, ou seja, em menos de três anos, um quarto da população cambojana morreu durante o genocídio perpetrado pelos khmers vermelhos. Fazendo a interpretação criminosa de uma ideologia, que jamais pressupôs algo nesse sentido, a camarilha de Pol Pot deu argumentos falaciosos aos que nela viram a inevitabilidade de uma forma de engenharia social, que o estalinismo já pressupusera.
Rithy Panh tinha treze anos, quando foi levado com a mãe, os irmãos e outros parentes para a região de Battambang no noroeste do país. Segundo as orientações recebidas pelos soldados deveriam perder os vícios de citadinos e adestrarem-se nas competências dos camponeses, vistos então como modelos de virtudes. E identificasse-se algum intelectual, ou simples professor, logo era passado pelas armas, porque a cultura era odiado inimigo a combater.
Nos meses seguintes Rithy testemunhou os mais terríveis cenários, que um jovem adolescente pode enfrentar: tornou-se no único sobrevivente da família, todos eles incapazes de resistir à fome ou ao envenenamento com ervas ingeridas como precária forma de a mitigar, assistiu a agressões quase aleatórias e a execuções sumárias, pressentiu violações de muitas das raparigas, logo elas próprias assassinadas pelos algozes, sentiu um medo permanente.
Quarenta anos depois não consegue evitar a sensação de terminar um insuportável luto. Tanto mais que exerce-se nele a tradição budista de saber-se condenado à perpétua errância, quem não encontra sepultura devidamente identificada.  Daí o regresso a Battambang, ao encontro dos camponeses, que aí tinham sofrido as mesmas penas, mas encontravam-se melhor apetrechados para lhes resistirem e que contam para a câmara o que também eles testemunharam.
Não conseguem dar-lhe qualquer resposta quanto ao paradeiro das ossadas da mãe ou dos irmãos, para que possam encontrar o que entende ser um merecido descanso no além. Mas, ajudado por monges, replica uma cerimónia fúnebre, que possa servir de paliativo, quanto mais não seja para o seu incurável desassossego.
Pressentimos que assim não sucederá, porque há vários anos que vimos acompanhando os seus sucessivos documentários e todos eles incidem sobre esse período terrível na história do seu país e sobre uma tragédia pessoal que não deixa de ter ressonância universal.