segunda-feira, julho 28, 2014

MÚSICA: a Sinfonia nº 2 de Mendelssohn dirigida por Sir Mark Elder nos Proms de 2009

Ao iniciar-se a década 40 do século XIX, Felix Mendelssohn era um dos mais aplaudidos compositores e maestros de toda a Europa, distribuindo a sua atividade entre Leipzig e a Grã-Bretanha.
Não surpreende, pois, que quando se tratou de comemorar o quarto centenário da invenção da tipografia, ele tenha sido convidado para compor a correspondente Sinfonia.
Porque os primeiros livros publicados por Gutenberg tinham sido um Missal e a Bíblia, Mendelssohn compôs “Lobgesang” como uma reflexão em torno da ideia de progresso e da sua condição de instrumento ao serviço de Deus e de difusão da sua palavra.  Por isso os números vocais recorrem a textos bíblicos: os Salmos, os livros dos Efésios e Isaías.
Estreada em Leipzig em 25 de junho de 1840 a obra teria um sucesso imediato, sendo igualmente apresentada em Londres, em Berlim e Dusseldorf.
Ainda assim encontrou detratores, que a consideravam uma má imitação da 9ªa Sinfonia de Beethoven. E, de facto, o compositor quisera amplificar esse modelo, operando uma síntese entre a sinfonia e a cantata, e assegurando a fluidez entre os três andamentos sem que haja qualquer interrupção a separá-los. Mas a sua monumentalidade sinfónica e coral, aliado ao conteúdo nacionalista tornam-na numa obra representativa do Romantismo.
Escolhemos aqui ilustrá-la tal qual foi interpretada numa das noites dos Proms de há cinco anos.



LEITURAS: «Teatro de Sabbath» de Philip Roth (IV)

Nos textos anteriores tínhamos conhecido Mickey Sabbath, um provocador, que levava a vida aos seus limites, nunca se preocupando com o dia de amanhã, evitando assim fazer compromissos que o pudessem levar a alterar a sua maneira de ser.
Não exigindo nada à sociedade, também não deixava que esta lhe exigisse nada, estando em permanente conflito com todo o tipo de regras e condutas sociais, possuidor de uma eloquência e capacidade de argumentação que vencia qualquer pessoa que com ele se confrontasse.
Tínhamo-lo deixado quando decidira regressar a Nova Iorque para comparecer ao funeral de um antigo amigo e à procura das recordações de Nikki que, além de sua cúmplice nos espetáculos de fantoches, fora com ele casado há mais de três décadas:
Nikki: toda talento, talento fascinante, e absolutamente mais nada (…) Não sabia o que era mais forte, se o seu amor por Sabbath se o ódio que sentia por ele: a sua única certeza era que não poderia sobreviver sem a sua proteção. Ele era a sua armadura, a sua cota de malha”. (pág. 117)
Ela tinha o “talento para incorporar na alma tudo o que é contraditório e insondável, até a monstruosidade que a paralisava de medo” (pág.122)
Sabbath tornara-se artista de rua em Nova Iorque em 1953, quando contava 24 anos e acabara de regressar de Roma onde estivera a estudar. Fora numa dessas exibições na rua, que a conhecera: “ele tinha um metro e sessenta e três de altura e ela quase um metro e oitenta e era tão preta quanto o preto pode ser onde era preta e tão branca quanto o branco pode ser onde era branca” (pág. 140)
Ela desaparecera no dia em que descobrira a infidelidade dele com Roseanna ao vê-los juntos, de braço dado, na Tompkins Square: “Em Nova Iorque a única coisa em que conseguia pensar era no desaparecimento dela - quando andava pelas ruas, tornava-se uma coisa obsessiva, não acabava nunca -, e tinha sido por esse motivo, que nunca mais lá voltara. (…) Tinha-se mudado para Madamaska Falls quando sentira que começava a endoidecer de tanto a procurar nas ruas de Nova Iorque. Nesse tempo, uma pessoa ainda podia andar a pé em toda a parte, na cidade, e era isso que ele fazia: andava por todo o lado, procurava em todo o lado, não encontrava nada.” (pág. 143-144)
Agora ele procura Nikki “vendo todas as animosidades em conflito, o ignóbil e o inocente, o autêntico e o fraudulento, o odioso e o ridículo.” (pág. 219). E, no entanto, “quando Nikki desapareceu, além do desgosto, das lágrimas e dos tormentos da confusão, sentira-se tão encantado quanto um homem jovem poderia sentir-se. Abrira-se um alçapão e Nikki desaparecera. Um sonho, um sonho sinistro comum a todos. Que ela desapareça. Que ela desapareça. Só que para Sabbath o sonho tornou-se realidade.” (pág. 219)
Agora a Nova Iorque dos anos 90 surge-lhe bem diferente da cidade que conhecera: “era a cidade onde se podia obter, umas vezes sem dificuldade, outras por um preço considerável, o pior de tudo. Em Nova Iorque pensava-se que os bons velhos tempos, o antigo modo de vida, eram coisas que tinham deixado de existir apenas há uns três anos, tal a velocidade a que aumentavam a corrupção e a violência e o ritmo da mudança de comportamento louco” (pág. 210)



sábado, julho 26, 2014

FILME: «A Datilógrafa» de Régis Roinsard (2012)

Às vezes sabe bem ver uma comedia romântica levezinha e bem feita, que permite distrair das preocupações engendradas por este mundo pejado de injustiças e desigualdades. Sobretudo se, como aqui acontece, a produção assegura uma reconstituição perfeita do guarda-roupa, da arquitetura e das idiossincrasias do final da década de 50. E conta com a interpretação exemplar de Romain Duris e Deborah François,
Rose Pamphyle personifica na perfeição o estereotipo das protagonistas dessa época: loura, fresca e ingénua. O seu sonho é ser secretária, que considera o mais conforme com o seu ideal de modernidade.
Um pequeno anúncio leva-a ao escritório de Louis Echard, que é agente de seguros e veste outro arquétipo da época: um canastrão sempre de fato como se saído diretamente dos cenários da série «Mad Men».
Depressa se conclui que, incompetente em todas as demais funções de secretária, Rose possui um talento especial: datilografa mais rapidamente do que a própria sombra. Ora, uma tal habilidade vale ouro nos então frequentes concursos de datilógrafas.
Impressionado, Louis contrata a rapariga e assume-se como seu treinador. A partir daí mergulhamos a fundo no clima de comédia em que os cenários suscitam a nostalgia. 
Recorrendo aos processos narrativos do género, que implicarão avanços e recuos na relação entre ambos, o happy end comporta o jackpot do amor eterno e da vitória dela como a mais rápida datilógrafa de todo o mundo. Sem, no entanto, deixar de estar subjacente a vertente da emancipação feminina, com Rose cada vez mais afirmativa e Louis a perder a sua arrogância inicial.


LEITURAS: «Teatro de Sabbath» de Philip Roth (III)

Nos dois textos anteriores sobre este romance de Philip Roth tínhamos conhecido o protagonista, Mickey Sabbath, um sexagenário casado com uma mulher que abomina e se sente perdido num mundo sem a amante Drenka.
Encontra, então, um paliativo para o vazio, que a ausência dela lhe deixou: ir à noite ao cemitério para ficar algum tempo junto à sua sepultura.
“Ao princípio não sabia que se tornaria uma visita regular. Isso devia-se ao facto de não ter imaginado que, olhando para a sepultura, veria Drenka, a veria dentro do caixão a levantar o vestido até à latitude estimulante em que o cós das suas meias se juntava aos suspensórios do seu cinto de ligas” (pág. 79)
Arriscando-se a causar arrepios nas mais intrépidas feministas, que podem ler alguns trechos da obra como o reflexo de uma misoginia indisfarçável, Roth não teme ver-se criticado de mau gosto, quando confere às visitas de Sabbath ao cemitério propósitos pouco canónicos: “Sabbath aprendera a colocar-se de costas para norte, para evitar que o vento gelado lhe soprasse diretamente para o pénis, mas apesar disso tinha de descalçar uma das luvas para se masturbar  como devia ser e, às vezes, a mão ficava tão fria que tinha de calçar de novo essa luva e usar a outra mão. Vinha-se na sepultura dela muitas noites.” (pág. 64)
Ele tem, de facto, uma obsessão pela satisfação sexual, que nada parece mitigar. Mais do que o dinheiro, o poder, a política, a moda ou o que quer que seja mais, Sabbath interessa-se pelo sexo puro e duro: “O cerne da sedução é a persistência. Persistência, o ideal jesuíta. Oitenta por cento das mulheres cedem sob tremenda pressão, se a pressão for persistente. Um tipo tem de se consagrar a foder do mesmo modo que um monge se consagra a deus.” (pág. 74).
A relação conjugal de Sabbath com Roseanna era de ódio mútuo, apesar de já viverem há tantos anos juntos. E da dependência financeira dele em relação a ela, sobretudo desde que as artrites nas mãos lhe inviabilizaram a continuidade do trabalho de fantocheiro.
Enquanto ela se ausenta para lecionar as suas aulas ou comparecer às reuniões dos Alcóolicos Anónimos, ele vai-se deixando assombrar pela ideia da morte: “era tudo quanto lá fazia agora, ler livro após livro sobre a morte, sepulturas, inumação, cremação, funerais, arquitetura funerária, inscrições fúnebres, livros sobre atitudes para com a morte ao longo dos séculos e livros de métodos práticos, remontando a Marco Aurélio, acerca da arte de morrer.” (pág. 103)
Os fantasmas da sua vida vão agora persegui-lo, reabrindo velhas feridas de uma vida onde sofreu muitos abalos, começando com a destruição do seu núcleo familiar quando era ainda muito novo, passando pelo desaparecimento da sua (controversa) primeira mulher, aos problemas e escândalos com a sua segunda (e atual) mulher, acompanhados de vários julgamentos sociais do seu comportamento ortodoxo relativamente ao sexo e às mulheres.
Quando pressentiu o perigo de ser surpreendido no cemitério pelo filho de Drenka, que é polícia, Sabbath decide regressar a Nova Iorque cortando todas as amarras com o sítio onde vivera as décadas mais recentes: “ E foi assim que se passou. Cinco meses depois da morte de Drenka, não foi preciso mais nada para ele desaparecer, deixar Roseanna, encontrar finalmente forças para deixar o lar de ambos, na medida em que assim se lhe podia chamar, meter-se no carro e partir para Nova Iorque para ver qual era o aspeto de Linc Gelman” (pág.110)
O estímulo para mudar definitivamente de ares tivera a ver precisamente com o aviso do funeral desse antigo amigo, que se acabara de suicidar. 

sexta-feira, julho 25, 2014

MÚSICA: Fantasia e Fuga, BWV 537, de J.S. Bach,orquestrada por Elgar

Bach compôs a “Fantasia e Fuga BWV 537” na década em que viveu em Weimar entre 1708 e 1717 e se dedicou principalmente a composições para órgão.
Dois séculos depois, quando estava sensibilizado pela morte da esposa, o compositor inglês Edward Elgar decidiu orquestrar essa obra, que foi estreada em 1922 no Festival de Gloucester.
A “Fantasia” começa com solos de oboé e clarinete acompanhados por instrumentos de cordas, que sugerem uma ambiência contemplativa e dramática, depois assumida pelo conjunto de toda a orquestra. No seu final temos mais um solo de oboé, que propicia a passagem para a “Fuga”. Nesta são os segundos violinos, as violas e os clarinetes a lançarem um “fortíssimo”, dando depois entrada aos primeiros violinos, à percussão, aos vigorosos metais e às restantes cordas..  Até final mantém-se essa pujança ainda que temperada pelos arpejos da harpa.
Neste clipe retirado do Youtube, temos a peça dirigida por Sir Andrew Davis nos Proms de 2011 no Royal Albert Hall. 

quinta-feira, julho 24, 2014

A arte e a provocação em São Petersburgo

Só estive em Leninegrado uma vez: estava-se no auge da perestroika e as ruas da cidade ainda estavam cheias de buracos como se a 2ª Guerra Mundial não tivesse acabado há muito tempo e ainda permanecessem visíveis algumas das profundas cicatrizes então ali deixadas.
Nesse dia, enquanto os passageiros do paquete onde estava matriculado se distribuíam pelas várias excursões, com mais dois colegas metemos na cabeça ir visitar o Hermitage. Saídos do portaló lá fomos perguntando a este e àquele sobre a melhor direção a tomar até que, passadas quase duas horas a bom ritmo de marcha ao longo dos canais do rio Neva, conseguimos alcançar a sua porta de entrada.
Só que a saída para Helsínquia estava prevista para daí a três horas, pelo que o tempo para o regresso só daria para chegar a tempo de experimentar o bom funcionamento dos equipamentos de propulsão.
Tratou-se, assim, de ver exteriormente o palácio onde está o Museu e logo retomar o caminho para bordo.
Melhor sorte têm conhecido os artistas convidados para participar na 10ª Bienal de Arte  contemporânea Manifesta, a desenrolar-se ali aproveitando as comemorações do 250º aniversário do célebre museu.
Não é que a arte contemporânea seja particularmente bem recebida na Federação Russa, mas as vontades dos organizadores da Bienal, do comissário alemão Kasper König e do Diretor do Hermitage conjugaram-se para que, desde o fim de junho até outubro, muitos artistas e as suas obras sejam aí exibidas.
Muitos queixaram-se da excessiva burocracia ou dos entraves colocados para que pudessem expor as suas obras de acordo com o que haviam projetado. Sobretudo os que quiseram abordar criticamente a guerra na Ucrânia. Mas não só: a artista sul-africana Marlene Dumas decidiu polemizar a sério com as autoridades locais já que adotou os direitos dos homossexuais como seu tema de eleição. Algo a que as homofóbicas autoridades não acharam particular graça.
Elena Kovylina decidiu tratar o tema da Igualdade e para isso juntou dezenas de pessoas de alturas diferentes e, com bancos ajustados inversamente a essa dimensão, pondo-as todas ao mesmo nível.
O holandês Erik van Lieshout preferiu trabalhar nas caves do museu onde imperam os célebres gatos, que há séculos asseguram a inexistência de ratos nas galerias, e retratou-os em diversos suportes.
O japonês Tatzu Nishi transferiu uma casa tradicional russa para uma das principais salas do museu e pô-la em confronto visual com um luxuoso lustre.
O suíço Thomas Hirschhorn também abordou a arquitetura, mas por outro ângulo: impressionado com a imagem de uma casa nova-iorquina, que ficara sem a fachada durante o furacão Sandy, recriou-a noutra das grandes salas, abordando a urbe e a sua destruição.
Poderíamos prosseguir pela referência a muitos outros dos cinquenta artistas com obras criadas especificamente para o evento, ou de outros, de Matisse a Gerhard Richter, que aí também estão expostos, mas importa sobretudo ver este evento artístico, como a oportunidade para nos questionarmos se a arte pode ou não ser dissociada da política e das relações internacionais.
E, claro, bem gostaria de, nesta altura, fazer a tal visita que, há vinte e cinco anos não foi possível


quarta-feira, julho 23, 2014

LEITURAS: «Teatro de Sabbath» de Philip Roth (II)

No texto anterior, que coincidira com o início da leitura de “O Teatro de Sabbath”, constatávamos que ele prometia ser um relato cruel sobre a crise existencial do fantocheiro Michey Sabbath, um homem de sessenta e quatro anos, obcecado por sexo, judeu, baixo e entroncado, de barba branca, desprovido de atrativos e a quem a amante, Drenka Balich impusera o ultimato de não dormir com outras mulheres, que não ela.
Ela tornara-se-lhe imprescindível para dar cor ao seu quotidiano: “ Aos cinquenta e dois anos, ainda suficientemente estimulante para tornar arrojados até homens convencionais, queria mudar e tornar-se outra pessoa - mas saberia porquê?” (pág. 39).
Como contornar essa obrigação em dar-lhe satisfação nesse anseio?
“A vida era tão impensável para Sabbath sem a mulher promíscua do estalajadeiro bem sucedido como era para ela sem o implacável fantocheiro. Não ter ninguém com quem conspirar, ninguém no mundo com quem dar rédea solta à sua necessidade mais vital.” (pág. 31)
Por isso mesmo ele pensa em como sair-se airosamente do desafio, sem a perder nem alterar o seu comportamento lascivo: “O supremo desvio, pensou Sabbath, aprofundando o dilema à procura de uma solução, é o dos libertinos que se tornam fiéis. Por que não dizer a Drenka, ‘Sim querida, eu farei isso’?” (pág. 42)
Só no final desse capítulo é que Roth esclarece a ponderosa razão para o comportamento de Drenka: surgira-lhe um cancro que poderia matá-la no prazo de um ano. Mas até aí  o escritor decide surpreender o leitor com o último parágrafo do primeiro capítulo numa demonstração eloquente da sua capacidade para o desviar das ideias feitas para que se pudesse ter sentido tentado com a leitura das páginas anteriores: “Misericordiosamente, morreu passados seis meses em consequência de uma embolia pulmonar, antes do cancro, que alastrava omnivoramente dos ovários para todo o organismo, ter tempo de torturar Drenka para além da tenaz capacidade da sua própria força implacável” (pág. 45)
Aí acontece uma inversão em quem tem ciúmes da relação mantida por ambos durante anos: se era Drenka quem exigira uma dedicação exclusiva dele, Sabbath passa a viver esses sentimentos à posteriori: “Incapaz de dormir, Sabbath, deitado ao lado de Roseanna [a sua mulher legítima] sentia-se abalado por um monstruoso e deturpador sentimento que nunca tinha conhecido em primeira mão. Agora tinha ciúmes dos próprios homens acerca dos quais, em vida de Drenka, nunca se cansara de ouvir falar.” (pág. 47) Os muitos homens que ela seduzira ao longo daqueles anos para dar satisfação à sua insaciável libidinosidade.
Ao começar a ser visitado pelo fantasma da mãe - ainda a amante estava viva - começa-se a intuir que, mais do que sobre a morte dos que o rodeiam, o romance irá abordar a do protagonista: “Ela não aparecia apenas quando estava desesperado, isso  não acontecia apenas no meio da noite, quando acordava com uma necessidade avassaladora de um substituto para tudo o que ia desaparecendo: a mãe estava lá em cima, na mata, lá em cima na gruta, com ele e Drenka, pairando sobre os seus corpos seminus. (…) A sua defunta mãe estava com ele, observando-o, cercando-o por todo o lado. Fora solta, lançada sobre ele. Regressara para o conduzir à morte.” (pág. 29)

Maria João Pires a interpretar a sonata 17 de Beethoven

Para assinalar o facto de festejar hoje o seu 70º aniversário, temos aqui Maria João Pires a interpretar a Sonata nº 17 de Beethoven.

A traição à ética de Banksy

Não deixa de ser curioso o facto de, no mesmo momento em que Vhils ganha a consagração de uma retrospetiva no Museu da Eletricidade em Lisboa, Banksy - ainda que contrariado - vê-se integrado no Panteão de uma das instituições mais emblemáticas do mercado da arte: a leiloeira Sotheby’s.
O grande acontecimento artístico deste verão londrino é a exposição de algumas dezenas das suas obras, todas elas concebidas para serem comercializadas. Mas conhece-se a antipatia do artista urbano pelo valor especulativo a que as suas obras têm ascendido. E que têm levado muitos oportunistas a remover ou a danificar as paredes onde Banksy vai expondo as suas obras num afã sem escrúpulos onde sai desvirtuado o objetivo primordial por que elas foram concebidas.
No mundo da arte está-se, pois, a assimilar mais esta forma original de criatividade, mas pela pior das abordagens: desprezando a mensagem e a sua estética para a reduzir à condição de mercadoria transacionável. E não deixa de ser paradoxal que esta traição à ética do artista seja conseguida graças ao envolvimento de um dos seus principais colaboradores até há alguns anos atrás...


Para acabar de uma vez por todas com os espetáculos com mamíferos marinhos!

Contra mim falo: já foram várias as vezes em que assisti a espetáculos com golfinhos e leões marinhos e até fui insensato o suficiente para já aí ter levado a  minha neta, apesar de não ter então sequer completado um ano. Porque também eu fui condicionado pela ideia de que os animais vivem felizes e contentes no seu cativeiro, preferindo-o, pelas mordomias recebidas, aos rigores da vida selvagem. Só que «Blackfish», embora tendo as orcas como tema principal, vem pôr em causa essa ideia tão publicitada com quem lucra com tal perversão à ordem natural da vida desses animais.
Em fevereiro de 2010, uma treinadora do Seaworld da Flórida foi atacada pela orca Tilikum perante centenas de espectadores, que passaram da alegria ao terror em breves minutos. Porque a morte de Dawn Brancheau, ali perante o seu olhar impotente, será uma experiência terrível, jamais passível de ser esquecida.
Gabriela Cowperthwite partiu desse trágico episódio para iniciar uma investigação inédita sobre os parques marinhos onde, por trás dos sons dos mergulhos e dos sorrisos das crianças, decorre um espetáculo tão polémico para com os animais como para quem deles cuida.
Recorrendo aos testemunhos de antigos treinadores e do percurso de vida de Tilikum, a orca vedeta do parque da Flórida, a realizadora põs em contraponto os discursos mistificadores da Seaworld sobre o bem estar dos animais e uma realidade bem mais cruel: a separação das mães das suas crias e o confinamento a bacias exíguas para a sua dimensão.
O filme conduz a investigação em vários sentidos graças aos testemunhos de cientistas e desses antigos colaboradores da Seaworld, que vêm confessar o quão ingénuos tinham sido ao acreditarem na mistificação em que os tinham mergulhado os seus antigos empregadores.
Eles transformaram-se nos seus críticos mais ativos, contando como a agressividade imprevisível desses animais sempre foi escamoteada pelos donos da Seaworld  apesar das diversas mortes já contabilizadas nos EUA ou em Espanha, onde se vai igualmente apurar as circunstâncias da morte de um treinador de Tenerife.
É pois provável que o boneco em peluche Shamu, uma orca em miniatura, deixe de ser tão vendido nos parques Seaworld quanto o eram até aqui,  já que essas gramas ternurentas, objeto de enlevo de gerações de crianças encantadas com as proezas dos mamíferos marinhos, nada têm a ver com o retrato dado pelo documentário «Blackfish» sobre o lado sombrio dos espetáculos por eles protagonizados.
O filme foi estreado nos Estados Unidos no verão de 2013 e teve depois 21 milhões de espectadores do canal de televisão CNN a vê-lo num país que quase transformara a visita aos parques aquáticos num verdadeiro desporto nacional.
Ao relacionar as condições em que as orcas são capturadas com a morte da tratadora em 2010, o efeito produzido na opinião pública norte-americana foi imediato: só então milhões de pessoas ganharam a consciência sobre a mentira segundo a qual esses mamíferos viviam felizes e protegidos e os seus treinadores trabalhavam em segurança irrepreensível.
Olhando para os filmes publicitários, que apresentavam esses parques como locais de proteção da natureza e desses animais especificamente, só se pode sentir uma indignação mesclada de ironia.
Para a maior empresa de divertimento aquático - espécie de Disneylândia dos ambientes marinhos - a apresentação do filme teve um sério impacto financeiro com uma queda abrupta na quantidade de visitantes. O que ocorreu na pior altura, já que acabara de ser cotada em bolsa e abrira um novo parque de atrações, o «Antártica, reino dos pinguins».
Resultado: logo em agosto o bilhete para entrada nos parques baixou significativamente, embora o grupo preferisse atribuir à meteorologia a causa para o seu menor sucesso.
Mas, em 2014, a tendência mantém-se: em termos homólogos a queda das receitas no primeiro trimestre de 2014 foi de 11%.
O filme causou uma vaga de fundo nos Estados Unidos e na Europa levando as associações de defesa dos animais a exigir a proibição de delfinários como os que temos no Jardim Zoológico de Lisboa ou no Zoomarine do Algarve. No outro lado do Atlântico grupos musicais e compositores recusaram a participação em espetáculos do Seaworld ou a mera utilização das suas músicas.
Ganhou expressão a tese científica segundo a qual é um crime manter as orcas em cativeiro tendo uma esperança de vida muito mais curta do que em estado selvagem.
Face à polémica a Seaworld lançou uma campanha mediática a acusar de mentira o que se via no documentário. Mas o desgaste na sua imagem parece irreversível: há menos de um mês a revista «Consumerist» e o jornal «Daily Finance» classificaram a empresa como a terceira mais detestada pelos consumidores norte-americanos logo atrás da Monsanto e da Wallmart.
A realizadora Gabriela Cowperthwaith - que não era sequer militante ecologista, mas ficara impressionada com a história de Dawn Brancheau, treinadora experiente e reconhecida pelos seus pares - ainda não recuperou da surpresa quanto ao impacto do seu filme.
Estou muito orgulhosa, porque nunca pude imaginar o efeito que ele iria causar: a queda no número de visitantes do Seaworld e a denúncia de contratos de grandes investidores no valor de vários milhões de dólares. Sem esquecer os efeitos políticos com um deputado californiano a iniciar uma ação legislativa contra a empresa.”
De facto, em 20 de fevereiro, o democrata Richard Bloom apresentou um projeto de lei para ilegalizar o cativeiro de orcas para serem utilizadas em espetáculos ou outros tipos de divertimento. E logo trinta e oito membros do Congresso escrevem uma carta ao secretário da Agricultura para alterar a legislação sobre a captura dos mamíferos marinhos.
Os tempos não se apresentam bonançosos para quem lucra com este tipo de exploração dos mamíferos marinhos!