segunda-feira, abril 30, 2018

(DIM) A Berlim de «As Asas do Desejo» já não existe


Passaram trinta anos desde que Wim Wenders pôs os seus anjos a deambularem por Berlim, um deles decidido a converter-se em humano, os outros apostados em mantê-lo no seu seio, sem deixarem de manter o discreto apoio a quem dele continuaria a precisar.
«Asas do Desejo» é um filme a que apetece voltar de vez em quando pelo que de poético nele subsiste, muito embora possa aproveitar a quem se sente entre dois mundos, com outras tantas opções de incompatível convergência.
Numa reportagem Wim Wenders volta aos locais onde filmou, faltavam dois anos para que o muro ruísse e a cidade dividida voltasse a ser uma só. E o que encontra do que então captou é quase nada: Berlim apagou os vestígios desse passado como se as três décadas de «comunismo» nunca houvessem existido. Porque sobram sempre nostálgicos dos valores ali proclamados e as frustrações do presente podem por eles serem aproveitadas, muito embora sejam mais os que as catalisam no retorno aos sonhos expansionistas do nazismo.
Se a Berlim do filme tinha uma alma própria, ela perdeu-se numa arquitetura impessoal, esmagadora de quem a habita ou, simplesmente, a visita.

(S) A Sonata º 3 em fá maior, de Händel

Se não foi assim poderia ter sido (2): o diretor do jornal e o da televisão do mesmo patrão


O Pedro sentou-se à mesa da sala de reunião para estar alguns minutos em silêncio antes que o Ricardo se lhe viesse juntar. Havia que preparar a edição do semanário com a dos noticiários televisivos. O objetivo, previamente consensualizado, estava pré-definido: estava para breve o Congresso do partido do governo, pelo que teriam de fazer os possíveis para que tivesse o mínimo impacto no eleitorado.  Felizmente que o Vieira tivera uma ideia luminosa: e se, a partir de agora, batessem sempre na tecla de haver quem, internamente, quereria ver expulso o antigo-primeiro ministro? É certo que todos os esforços para o dar como corrupto continuavam a esbarrar na falta de provas em tribunal, mas tinham trabalhado tão bem, que da fama jamais ele se livraria.
Angustiava-o, porém, o fracasso representado pelo Congresso do partido mais à direita, semanas atrás: tinham dado tantas horas de exposição à líder, que acreditaram piamente em mudanças significativas nas sondagens. Onde teriam errado que, afinal, ela mantivera-se nos miseráveis valores de antes?
Pelo vidro viu que o irmão do primeiro-ministro já aí vinha e fez para si mesmo a silenciosa pergunta do costume: o que terá acontecido a este tipo para tentar linchar o detestado governante com mais afã do que qualquer outro de entre nós?
No sábado seguinte, quando veio da reunião do clube, o tio Jacinto veio encontrar a tia Genoveva a ver o telejornal. A apresentadora falava de uma vaga de fundo dentro do partido do governo para correr com o antigo dirigente. Olhou para a mulher e disse-lhe: «Estes gajos não sabem o que inventar mais!

(DIM) Quando Truffaut põs Belmondo embeiçado pela Deneuve («A Sereia do Mississipi», 1969)


Louis Mahé é um sentimental. Empresário na Ilha da Reunião apraza casamento com Julie, conhecida por correspondência, e que virá da Nova Caledónia ao seu encontro. Será breve a surpresa do futuro noivo: ela não se parece nada com futura esposa, sendo muito mais bela.

A explicação que lhe dá é prontamente aceite, porque a Deneuve dessa época retirava o discernimento aos mais incautos. Só quando consumados os esponsais, e ela desaparece levando-lhe o dinheiro, quer pessoal, quer da firma, é que Louis percebe o logro em que caíra.
Ademais a cunhada surge-lhe a propor a contratação a meias de um detetive, porque a irmã nunca mais a contactara. Confirma-se, pois, que uma usurpadora substituíra a verdadeira Julie para fazer o golpe do baú ao ingénuo protagonista.
Marion, o verdadeiro nome da vigarista, é localizada num bar de Antibes e Louis logo a confronta com o que lhe fizera: ela confirma-lhe ter sido instrumento da jogada do amante, assassino de Julie, e a mandara assumir-se em seu lugar.
Como Truffaut tem coração tão piegas quanto Louis - e também William Irish em cujo romance se baseia -, logo o par se embeiça a tal ponto, que põe o protagonista a matar o detetive, que não achara nenhuma graça à possibilidade de perdoar os crimes da sereia e a queria levar ao castigo. Mas na fuga que se segue, perdem quase todo o dinheiro o que justifica a dúvida dela quanto a ter nele parceiro fiável. Por isso ainda o tenta matar, antes de cair em si e tudo acabar de modo a satisfazer quem achar que, acima de quaisquer outras razões, o amor é mais forte do que tudo.

(S) «Rapsódia sobre um tema de Paganini» de Sergei Rachmaninov

(EdH) O lado místico de uma cidade costeira tunisina


Se há ramo místico do islamismo, que me merece alguma simpatia - mesmo confessando-me avesso a qualquer forma de espiritualidade! - é o sufismo. Há muito que considero lindíssimos os bailados harmoniosos dos dervixes turcos, entregues ao hipnótico cirandar, que os aproxime do deus em que acreditam.
Não esqueço, igualmente, as vezes em que vi Miguel Seabra, do Teatro Meridional, a contar-me a lindíssima história do sr. Ibrahim. Quantas vezes me dirigi à melhor sala de teatro da Marvila para uma hora de pura magia, porque a educação do narrador imbuíra-se dos ensinamentos do mestre eivados de bondade e de humildade? Três, quatro vezes? Não sei, mas decerto lá voltarei se a peça for ali retomada para nosso inesgotado prazer.
Ora humildade - sentimento de que, apesar de tudo, costumo desconfiar, sobretudo se imposto por quem nele vê forma de oprimir! - é o que um membro de uma confraria sufi em Sidi Bou Saïd, na Tunísia, enfatiza como um dos comportamentos mais apreciados pelos devotos do mestre do século XII, que ali fundou o seu templo e deu nome ao lugar.
Edificado numa falésia sobre o Mediterrâneo, aquele lugar de peregrinação mobiliza crentes, que ali se dirigem para fixarem a atenção na linha do horizonte, fechando depois os olhos em morosa meditação até os reabrirem de novo, convencidos de terem, dessa forma, sentido alguma aproximação ao divino.
Qualquer semelhança entre este tipo de islamistas e os que se fanatizaram em projetos homicidas é pura coincidência.

(S) «Till Eulenspiegels» de Richard Strauss

(DL) Um romance que nunca me conseguiu cativar!


Quando se trata de dar testemunho da impressão causada pela leitura de um qualquer livro, escuso-me quase sempre a utilizar palavras depreciativas. No mínimo considero-me devedor de respeito pelo labor de quem dedica horas e horas a escrever uma história ou a dar conta de experiências pessoais connosco partilháveis, para as desconsiderar com um comentário negativo.
Claro que cultivo assumidas exceções, não propriamente devidas à qualidade dos textos, mas à caracterização do autor: o nazismo de Céline leva-me a adiar para um dia de são nunca à tarde a leitura de «Viagem ao Fim da Noite», que vai acumulando pó numa prateleira da cave, ou a dar trato semelhante à dezena de romances, que comprei de Lobo Antunes e ao qual ganhei reiterada antipatia pelo carácter invejoso e mesquinho em relação a José Saramago.
Dizer mal faço-o assumidamente com muito poucos, com destaque particular para o orelhas da RTP. Mas, nesse caso em concreto, nem estamos a falar de um escritor na verdadeira aceção da palavra. Antes escrevinhador calculista, apostado em carpinteirar estórias à medida do que imagina serem as apetências do mercado. Trabalha para engordar a conta bancária, não propriamente para fazer algo que se pareça com Literatura.
Vem isto a propósito de «Os Loucos da Rua Mazur» de João Pinto Coelho, que me esforcei por concluir esta tarde depois de incomodada leitura. Não por estar menos bem escrito, nem por inexistir uma estrutura narrativa bem trabalhada. Se me ativer á qualidade literária posso considerar que, não deslumbrando, também não compromete. Mas, já o tema é mais polémico por aproveitar um triângulo amoroso entre dois miúdos, um deles cego, e uma rapariga, na Polónia do final dos anos 30, para nos dar conta dos funestos acontecimentos ali ocorridos, primeiro com a deportação de muitos homens para a União Soviética, quando os bolcheviques ocuparam a metade do território negociada com Ribbentrop, e depois com um bárbaro progrom, que quase extingue a população judaica da região.
Constate-se que, não sendo uma estória baseada em personagens reais, é inspirada em acontecimentos efetivamente ocorridos, quando o exército nazi já fizera recuar os soviéticos para lá das suas fronteiras. Mas Pinto Coelho aparenta um comprazimento semelhante ao de um escritor fascista italiano (depois arrependido), que impressionava os leitores com descrições particularmente «coloridas»  das crueldades então percecionadas. Quase há um latente sadismo na descrição dos assassinatos e torturas das vítimas do preconceito de raivosas matilhas cristãs.
Nunca sentindo empatia com a narrativa, depressa esquecerei o romance, que nada acrescenta às nossas letras por muito que tenha saído vencedor de um dos mais valiosos prémios literários do nosso panorama editorial.

(S) O Duende das Águas de Dvorak

domingo, abril 29, 2018

(AV) A descoberta da vida e obra de Arno Rink


Cheguei ao dia de hoje sem conhecer a obra do pintor alemão Arno Rink, de quem o canal ARTE acabou de apresentar elucidativo documentário. E, depois de o ver, dou razão ao filósofo ateniense que, quanto mais sabia, maior consciência tomava da sua infinita ignorância, por sobrar sempre tanto por descobrir, por conhecer.
No caso deste que foi dos mais representativos artistas leste-alemães e viveu entre 1940 e 2017, há a considerar a filiação ao Partido Socialista Unificado da Alemanha até à queda do muro, coerência que quase o condenou à condição de maldito. Nessa época dita comunista dirigira a importante escola artística de Leipzig, conhecida pela aposta no figurativismo, primeiro nos parâmetros estreitos do realismo socialista, depois mais sugestionada pela inspiração surrealista e pela tentação abstrata.
As obras evoluíram de uma mensagem política mais motivada - exemplares as obras indignadas contra o terror assassino de Pinochet - para nus femininos a representarem a mulher na sua impressionante força de carácter e sensualidade, ou para autorretratos ilustrativos do seu carácter angustiado, permeável às depressões.
Apesar de insultado, tratado como artista do regime, pelos medíocres, que se incumbiram dos saneamentos de quem trabalhara dentro dos parâmetros ideológicos da RDA, ele retomou a atividade docente, influenciando os alunos com tanta perspicácia, que deles viu emergir uma nova geração conhecida pela Nova Escola de Leipzig.
As obras, que deixou, abordam o amor e a morte, a sedução e o abandono. E começam agora a ser valorizadas, libertas dos preconceitos ideológicos, que quase as condenaram a irreversível e imerecido índex...

(S) A música do ballet de «Macbeth» de Verdi

(DL) Kapuściński: uma coragem muito para além da sensatez


Nas sucessivas passagens por Lagos jamais me arrisquei a ir a terra tão inquietantes eram os conselhos dos agentes sobre os perigos de eventuais surtidas para lá dos portões do porto. Numa dessas passagens pela capital nigeriana até houve necessidade de contratar uns guardas vindos de uma região distante que, munidos de arcos e flechas, impediriam qualquer assalto ao navio.
Daí que só possa admirar a enorme coragem do escritor Ryszard Kapuściński que, nos anos sessenta, decidiu ali viver num dos muitos bairros pobres, escusando-se à vida de correspondente ocidental sempre estacionado nos hotéis de luxo ou, pelo menos, nas zonas residenciais da nova burguesia criada pela corrupção pós-independência.
Os assaltos à sua casa eram quotidianos, mas que fazer quando isso correspondia à lógica local de, através de tal espoliação, garantir um nivelamento social entre os que tivessem mais e menos? Como lhe afiançou um muçulmano, com quem abordou a situação, conquanto ninguém o ameaçasse fisicamente, essa apropriação coletiva dos escassíssimos bens até corresponderia a uma forma de aceitação da sua singular presença naquele ambiente exclusivamente africano. Representava uma inequívoca prova da sua integração, enquanto estrangeiro, num espaço assim sentido doravante como também legitimamente seu.
Os perigos de perda da vida do escritor não se restringiram, porém, aos da violência permanente nas cidades para onde migravam milhares de camponeses pobres em busca de melhor vida e depressa descobriam o logro de tal intenção. Ryszard viveu experiência radical no deserto mauritano quando, apanhando boleia de um camionista, se viu com ele perdido no meio de nenhures, e o veículo avariado. Foi assim que conheceu a experiência da sede extrema, aquela que baralha os sentidos e o pôs a ver jardins verdejantes e lagos azulados onde antes só havia areia. E, nesse universo de privações absolutas, também nos dá conta da fome assassina presenciada na Etiópia em 1975 quando uma seca fez subir os preços e tornou inacessíveis os alimentos à grande maioria da população de regiões apartadas da capital, apesar de viverem num país capaz de produzi-los em quantidades suficientes para que nenhuma delas morresse de forma tão impressionante.
A leitura de «Ébano» prossegue, assim, lentamente, saboreando com contenção de gourmet, as estórias colhidas em África por um repórter de exceção para quem a escrita obrigava a testemunhar e a sentir na pele o que nela vertia, nunca se cingindo ao diz que disse de quem quer que fosse.

(S) A Bruxa do Meio-dia de Dvorak (opus 108)

sábado, abril 28, 2018

HOJE NO INDIE: Para melhor conhecer Lucrecia Martel, Jacques Rozier e Claude Lanzmann


Entre os realizadores em evidência na edição do Indie deste ano avulta a argentina Lucrecia Martel, de quem se exibe o mais recente filme, «Zama». Personalidade fundamental do cinema contemporâneo ela tem-nos dado retratos corrosivos da família tradicional, eivada de preconceitos católicos e temerosa da sua iminente desestruturação, invariavelmente catalisada em álcool e violência.
Conhecida pelos planos longos, pelo recurso a hiatos para os quais não dá reconfortantes explicações e por silêncios, mais eficientes do que quaisquer diálogos, ela confronta as disfuncionalidades do tempo presente, tenham elas ver com as desigualdades e os preconceitos, se não mesmo com o racismo mais primário.
O filme desta noite foi rodado após uma paragem de dez anos e tem o português Rui Poças como diretor de fotografia. Baseado num romance escrito por Antonio Di Benedetto em 1956, evoca a viagem delirante de um oficial espanhol, Don Diego de Zama, pelos confins latino-americanos no que ela revela sobre as bases fundadoras do colonialismo ali imposto.
Outro realizador que o Festival aposta em melhor dar a conhecer está Jacques Rozier, cineasta independente, admirado por Jean Luc Godard, e de quem «Adeus Filipinas» foi uma das obras emblemáticas da nouvelle vague. Porque os produtores raramente lhe financiaram os projetos para cinema, tem trabalhado mais regularmente em produções para televisão, mormente para o canal ARTE.
O filme que esta noite a Cinemateca dele passa constituiu a sua segunda-metragem e, apesar de rodada em 1971, só ficou acessível ao público em 1996. Chama-se «Du côté d’Orouet» e recorre a um dos espaços preferidos por Rozier para desfilar perante a sua câmara: as praias onde rapazes e raparigas fazem a educação sentimental em tempo estival.
Do dia de hoje avulta ainda mais um longo projeto de Claude Lanzmann, laborioso denunciador dos crimes do Holocausto, que com «As Quatro Irmãs» fez entrevistas demoradas a Paula Biren, Ruth Elias, Ada Lichtman e Hanna Marton, sobreviventes do intenso sofrimento e o recordam tantos anos depois, cientes da importância de estarem assim a contribuir para a memória futura.

HOJE NO INDIE: Entre os valores dos anos 60 e o fazer cinema nos dias de hoje com visitas ao passado pelo meio


Nos anos 60 Tonino De Bernardi iniciou um percurso de realizador motivado pela inspiração vanguardista dos realizadores nova-iorquinos de então. A opção por atores não profissionais encurtava os custos e transmitia a sensação de inocência, que se interligava com as ânsias pelas utopias capazes de transformarem os impossíveis em realidades.  Dele pode apreciar-se, esta tarde na Cinemateca, «Elettra», de 1987, em que isso mesmo se comprova na adaptação da tragédia de Sófocles.
À noite Teresa Villaverde apresenta « O Termómetro de Galileu», que já estreara no Festival de Roterdão e em que, reduzindo a equipa técnica a si mesma, captara em filme a estadia em casa da família desse mesmo Tonino De Bernardi, testemunhando através das conversas do quotidiano a admiração e respeito que ele lhe suscita e o quanto se sente recetora do testemunho das suas preocupações estéticas e políticas.
Em Itália também se situa «Il Risoluto» de Giovanni Donfrancesco, todo focado em Piero, um reformado, que passa os dias a jardinar, a ver televisão, a ler e a cantar no coro da Igreja, mas com um passado sombrio, porque relacionado com uma das mais violentas milícias de Mussolini.  Tantos anos depois é um manancial de vivências ainda por resolver...
Bem mais divertido será «Bostofrio où le ciel rejoint la terre» de Paulo Carneiro, que foi ao encontro dos habitantes de uma aldeia transmontana, muitos deles seus familiares, para lhes indagar o que pudessem recordar do avô. Para além da revelação de um mundo rural em vias de extinção, conclui-se ser microcosmos povoado de segredos e de meias verdades...
Estes dois filmes passam na Cuulturgest.
Para quem ficou com a imagem de Jean Pierre Léaud no sublime, mas claustrofóbico filme de Albert Serra em que interpretava o papel de Luís XIV, ela pode ser substituída de forma bem mais luminosa no filme que o Ideal Paraíso hoje apresenta:  «Le Lion est mort ce soir» de Nobuhiro Suwa, em que, enquanto aguarda o reinício de uma filmagem interrompida, o ator ajuda um grupo de miúdos a concretizar o projeto caseiro de um filme de terror. Onde o filme de Serra era feito de cores escuras e espaços fechados, este responde-lhe com a rua e cores vivas.
De outro japonês, Toshio Matsumoto,  e também na mesma sala, passa «Funeral Parade of Roses», realizado em 1969, que Stanley Kubrick terá reconhecido ser uma das suas inspirações para rodar «Laranja Mecânica». Misto de documentário, ficção e animação, mergulha a fundo no mundo das drag queens de Tóquio dos anos sessenta numa mistura imoderada de sexo, drogas e álcool. 


(S) «Miranda» de Michael Nyman

(DL) O amor aos livros na versão de Jorge Carrión


Nos últimos meses desapareceram algumas livrarias de referência em Lisboa e no Porto. Provavelmente noutras cidades também, porque a todo o lado chega o efeito devastador dos hipermercados com preços imbatíveis, oferecendo quase sempre coisas de somenos interesse destinadas a uma categoria de leitores apenas interessados em best sellers, em compêndios de autoajuda ou em xaropadas para corações piegas.
Existirão ainda livrarias, quando as minhas netas chegarem à idade adulta, quiçá mesmo à adolescência? Às vezes dá para pensar que só resistirão na memória dos que delas faziam lugar de eleição para encontrarem espaços de memória ou de esquecimento, de refúgio ou de encontro, consoante a sua necessidade. Para quem, entre os maiores prazeres da vida, apontariam decerto a compra e a leitura de livros.
O escritor espanhol Jorge Carrión denota, a esse respeito, um otimismo difícil de subscrever. Para ele tornar-se-ão obsoletas as grandes cadeias livreiras, porque havendo cada vez mais informação disponível na internet, será lógico comprarem-se progressivamente menos livros. Espaços de significativas dimensões para vender livros tornar-se-ão tão obsoletos quanto os grandes dinossauros após o abalo, que lhes causou a extinção. Mas, como alternativa, prevê o surgimento de uma nova geração de livreiros de bairro, uma espécie de DJ’s culturais, que se servirão dos seus pequenos espaços para gerarem dinâmicas criativas ao nível local.
Será assim? Não será? Numa altura em que o individualismo puro e duro está a dar lugar ao gosto por uma maior sociabilização envolvendo a partilha de ideias, sonhos e ansiedades, a previsão não deixa de comportar algum sentido.
Seja numa lógica melancólica, seja na predisposição de a encarar como uma espécie de fim de ciclo para dar lugar a outro não menos entusiasmante, Carrión tem «Livrarias» publicado entre nós, um belíssimo livro de viagens por todas as grandes metrópoles mundiais e outras cidades dos cinco continentes para delas dar conta da multiplicidade de espaços onde se podem comprar livros. Desde gigantescos edifícios, com quilómetros e quilómetros de prateleiras, até minúsculos apartamentos só acessíveis aos «iniciados». Entre nós a sua escolha foi para a «Lello» no Porto.
Há quem percorra cidades em busca de monumentos e paisagens, de espetáculos ou bares. Carrión confessa chegar a uma cidade desconhecida e sentir-se prioritariamente atraído pelos museus de arte contemporânea e pelas livrarias. É esse amor aos livros e à Literatura, que se sente no livro que foi considerado pelo «The Guardian» como uma das melhores propostas surgidas em Inglaterra em 2016.

(S) A Dança Macabra de Camille Saint Saens

quinta-feira, abril 26, 2018

(S) «En Bateau» de Claude Debussy

(DIM) A importância de nunca perder o sentido da realidade na ficção mais inverosímil


O que distingue um bom filme de outro que o não é? Podem-se dar milhentas respostas a esta questão, mas peguemos num exemplo elucidativo facultado por quem era, efetivamente, um mestre: Alfred Hitchcock.
Numa entrevista concedida a Truffaut ele lembra a celebérrima cena de «Intriga Internacional» (1959) em que Cary Grant é atraído a uma paisagem desértica e o espetador adivinha a forte possibilidade de ali ele vir a ser abatido.
Começa pela estranheza do plano visto de cima em que é apenas um pequeno ponto no meio do nada, mudando então a câmara para a paragem do autocarro onde ficara à espera do encontro para aí aprazado.
Conjeturando como se desenvolveria a cena num filme convencional, Hitchcock sugere que se passaria numa rua citadina à noite, quiçá com a calçada batida pela chuva abundante. O protagonista esperaria debaixo de um candeeiro e a tensão assim suscitada seria a de muitos filmes de terror. Alguém espreitaria de uma janela, um gato fugiria encostado à parede. Adivinhar-se-ia o iminente aparecimento da limusina com gangsters a descarregarem os cartuchos das suas espingardas.
Em vez de repetir esse cliché Hitchcock inova, escusando-se a criar esse ambiente noturno apenas iluminado a candeeiros. Em vez disso uma vastidão a perder de vista iluminada por um sol intenso.
O público pensará então: de onde virá a inevitável agressão? Pensa-se na possibilidade do avião, mas ainda é cedo para o fazer surgir, porque o realizador ainda irá baralhar-lhe os cálculos. Primeiro com o aparecimento da limusina preta, que o faz pensar: “lá está! Aí vêm os gangsters aos tiros!». Mas ela passa por Cary Grant e nada sucede, voltando a desaparecer no sentido contrário ao que a víramos aparecer.
É a vez de manifestar-se um outro carro, que deixa um desconhecido na paragem do outro lado da estrada. Cary Grant olha-o, o espetador pensa que será o provável agressor, mas, pelo contrário, ele apenas surge para chamar a atenção ao protagonista para a bizarria de, à distância, se ver um pequeno aeroplano a sulfatar campos não cultivados. Aparece o autocarro em que o outro entra e volta a deixar o protagonista sozinho no campo visual, desta vez sim, ameaçado pelo avião, que vem picar sobre ele e lhe lança pesticidas quando se acolhe entre as espigas de milho.
Mandando parar um autotanque, Cary Grant vê o avião vir embater-lhe na traseira, obrigando-o a escapar-se o mais rapidamente possível com os dois motoristas para evitar o impacto da explosão, que conclui a cena.
Tudo isto para corroborar o que Hitchcock afirma: por muito que arrisque na inverosimilhança, como se se tratasse de um pesadelo, um filme deve ser suficientemente credível, baseando-se em possibilidades reais para que os espetadores se lhe rendam, acreditando piamente no que perante os seus olhos se passa...

quarta-feira, abril 25, 2018

(DL) «Barragem contra o Pacífico», o romance que revelou Marguerite Duras


Chamava-se Marie Donnadieu e constituiu um dos mais ilustrativos exemplos de quem faz apostas erradas e nelas teima até quase não se tornar possível evitar a catástrofe.
Professora colocada na Indochina, instalou-se com a família em Saigão, onde o marido tomou posse do cargo de diretor do liceu local. Estava-se em 1921, mas enviuvou três anos depois, ou não se revelasse o clima da região sensível aos europeus. Vendo-se com três filhos a cargo, Marie sentiu crescer em si uma desmedida ambição. Daí que investisse todas as economias numa quinta com  duzentos hectares perto de Prey-Nop, no atual Camboja, onde contava enriquecer com a plantação de arroz.
Em breve os sonhos viraram pesadelo: as monções inundavam-lhe toda a propriedade e a água salgada destruía-lhe as culturas.  Consumado o desastre no primeiro ano, Marie e os filhos tentarão criar frágeis barragens que, nos anos seguintes, nunca conseguirão impedir a sua repetição. O desespero instala-se e a família vive tempos difíceis com todas as circunstâncias a parecerem conspirar em seu desfavor.
Foi com essa história pessoal, que Marguerite Duras se tornou famosa, ao verte-la em romance logo após a Segunda Guerra Mundial. Publicado em 1950, «Barragem contra o Pacífico» criaria tal impacto que a crítica e os leitores consensualizaram a ideia de estarem perante uma das escritoras mais relevantes das décadas seguintes.
Vertido para cinema por duas vezes, o romance já continha a vertente sensual, que Marguerite exploraria depois em romances igualmente situados naquela região do mundo, tendo ela própria como protagonista («O Amante») ou essa personagem fascinante que foi Anne Marie Stretter enquanto esposa do vice-cônsul.
A última vez que li «A Barragem contra o Pacífico» foi há já uns bons anos, quando as longas viagens por mar me possibilitavam disponibilidades como leitor, que dificilmente voltei a reencontrar em terra firme. No entanto os romances da autora continuam na biblioteca pessoal, sem passarem pelo processo de doação, que quase todos os demais livros vão paulatinamente conhecendo, porque ainda os conto revisitar mais uma vez. É que se a estória em si não me trará novidades, pretendo testar como funciona essa escrita anos depois de me ter suscitado reiterado entusiasmo.