domingo, novembro 30, 2014

COSMOS: Existimos mesmo ou seremos uma mera ilusão tridimensional?

Edwin Hubble foi o autor dos cálculos do fenómeno da expansão do Universo, que levaria George Gamow a formular, em 1946, a teoria do Big Bang.
Desde então os cientistas andam à procura da explicação, que justifica esse contínuo distanciamento entre as galáxias. E viram-se forçados a regressar à contante cosmológica de Einstein, o valor que ele se viu obrigado a utilizar nas suas equações para que elas correspondessem ao universo estacionário que, na época, se julgava existir.
Mesmo se ninguém chega verdadeiramente a saber o que é a Energia Negra, o conceito suscita uma possibilidade perturbadora:  Einstein imaginava a existência de uma anti gravidade constante, mas a que faz movimentar-se a energia negra será constante ou alterar-se-á ao longo do tempo?
A resposta pode vir a revolucionar tudo o que sabemos sobre o futuro do Cosmos. Por agora todas as moléculas que possamos imaginar, desde as que constituem os nossos corpos até às que fazem parte da Lua, mantém-se unidas por forças que são absolutamente contrárias às que parecem constituir a Energia Negra.  E é por isso que não vemos as coisas dilatarem-se na nossa vida quotidiana. Mas essa situação pode não vir a durar para sempre.
Segundo uma tese recente a Energia Negra continuará a fazer com que as galáxias se vão expandindo e a afastarem-se umas das outras até que o Universo fique frio, negro e  desolado.
 Segundo outra teoria a força da Energia Negra poderia ir aumentando com o tempo e tornar-se tão imensa, que destruiria tudo quanto se encontra no interior das galáxias, desde as estrelas aos planetas, incluindo a matéria em todas as suas formas conhecidas. Até mesmo os átomos seriam pulverizados…
A nossa conceção do Espaço tem conhecido, pois, uma enorme evolução. Na época de Newton o espaço não era senão algo que continha tudo o resto sem em nada intervir. Com Einstein passou a influir na deslocação dos objetos. Com Kasimir, os objetos passaram a ser pressionados pela atividade desenvolvida no espaço vazio. Hoje, com as ideias de Higgs e da Energia Negra, o Universo poderia ser uma criação do espaço vazio.
Ninguém terá pensado o quanto o Espaço poderia vir a ter tanta importância na explicação da natureza da realidade. Mas a perspetiva newtoniana do Espaço não está completamente posta de lado. Pode-se dar o caso de não sermos propriamente aquilo que julgamos ser no nosso mundo tridimensional. Quem sabe se não seremos a projeção de outro Eu que existe num mundo bidimensional? Como se, na realidade, não fossemos senão uma espécie de hologramas!
Será que esta teoria parece demasiado excêntrica? Talvez, mas ela fundamenta-se na própria realidade dos «buracos negros», mesmo que seja de difícil compreensão!
Os dados neles colhidos tendem a demonstrar que a realidade é bidimensional. Que o mundo tridimensional é uma espécie de holograma situado na periferia  do Espaço.
As equações em causa levam a supor que se fizéssemos entrar uma carteira num buraco negro ela passaria a existir simultaneamente sob duas formas: na tridimensionalidade perdida para sempre no seu interior e numa cópia bidimensional, que ficaria na superfície exterior. Em teoria poderíamos voltar a reconstituir a carteira a partir das informações guardadas em registo bidimensional!
Sem nos darmos disso conta poderemos não passar de projeções tridimensionais de uma enorme superfície que nos rodeia e onde estão guardadas todos os dados sobre toda a matéria existente, desde as estrelas até nós próprios. A realidade não passaria assim de uma mera ilusão!
A teoria é tão excêntrica, que os físicos ainda andam a conjeturá-la em todas as suas consequências.

DOCUMENTÁRIO: «Porque é que as mulheres são mais pequenas do que os homens?» de Véronique Kleiner (2013)

Por todo o mundo, as mulheres são em média mais pequenas do que os homens. Mesmo na Europa do Norte - onde as pessoas atingem alturas mais elevadas - as mulheres são mais pequenas do que os homens em cerca de quinze centímetros.
O dimorfismo sexual do tamanho não é, porém, universal. Existem espécies animais em que as fêmeas são maiores do que os machos, como são exemplo as baleias azuis. Se o maior mamífero existente é uma fêmea, porque não acontece o mesmo com os humanos?
Os especialistas da questão contam-nos uma história inédita no cruzamento da biologia, da medicina, da paleoantropologia e da sociologia. Estes cientistas, que trabalham em França, no Reino Unido, em Itália, na Alemanha e nos Estados Unidos revelam as suas descobertas sobre a evolução que, ao contrário do costume, colocam as mulheres no primeiro plano.

sábado, novembro 29, 2014

ÉCRÃ: «Interstellar» de Christopher Nolan

Não se consegue perceber bem porquê mas, de súbito, começam a surgir tempestades de poeiras cuja explicação decorre de terem origem no nitrogénio existente  no ar que respiramos. A agricultura, que conseguia alimentar a população mundial, vai ficando cada vez mais condicionada até já só ser possível plantar milho. Não se sabe por quanto tempo mais!
Em desespero de causa, o poder político confia à NASA uma última e desesperada missão: a de indagar se alguma das naves anteriormente lançadas para além do «buraco da minhoca» existente perto da órbita de Saturno conseguira dar com algum mundo habitável para onde fazer emigrar os últimos sobreviventes terrestres.
A contas com a necessidade de garantir o sustento da família depois da morte da mulher, Cooper é dificilmente convencido pelo professor Brand a comandar a missão desesperada em que assenta a última esperança para a Humanidade.
No final teremos o happy end sem o qual o cinema norte-americano mais convencional não parece digno desse nome. As vicissitudes serão muitas, envolvendo deceções com planetas, que pareciam viáveis e se revelam mortalmente perigosos, ou com um dos astronautas previamente enviados e cujo instinto de sobrevivência o faz querer salvar a pele contra todas as regras e princípios. Matt Damon faz o papel desse vilão sem escrúpulos.
Como de costume, quando a situação parecia mais desesperada, é quando surge a solução, que envolve uma viagem de Cooper até à quinta dimensão… para demonstrar o quão extremoso pai sempre foi!
Pessoalmente continuo a ter em «2001, Odisseia no Espaço» o paradigma do filme de ficção científica, que me serve para avaliar todos os demais. Quase sempre deixando-os a léguas em qualidade e verosimilhança…
Com «Interstellar» reconheço, que esse desvio ao padrão é menor do que o habitual. Existe um enquadramento credível sobre o surgimento de fenómenos climatéricos, que põem em causa o futuro da nossa civilização, e as teorias pelas quais se propõe viagens interplanetárias a muitos anos-luz - mediante esse salto através dos “wormholes” - já existem e até tiveram em Carl Sagan um dos seus principais defensores.
Dando de barato que a engenharia aeroespacial da NASA terá evoluído bastante - imagina-se uma «Challenger» a suportar os terríveis esforços impostos pela passagem por esses buracos ou pela entrada num buraco negro? - não se vê razão para que Christopher Nolan quisesse explicar muito detalhadamente os fundamentos científicos, que tornariam possível esse regresso à Terra de Cooper.
Recordemos que Kubrick não se preocupara em elucidar algumas das principais questões levantadas pelo seu filme de 1968: no que consistia de facto essa caixa, que começava por surgir aos homo sapiens da primeira parte do filme, e depois reaparecia numa das crateras da Lua, para culminar na cena final passada - como neste caso - na órbita de Saturno e com a precipitação de David Bowman no buraco negro.
Embora visualmente bastante conseguida a sequência com Cooper a flutuar numa outra dimensão onde as três tradicionais se associavam ao tempo e à gravidade, correspondeu a uma necessidade de não deixar pontas soltas, quando o ganho estaria por certo em suscitá-las e deixá-las como estímulo à imaginação do espectador.
De qualquer forma não deixa de ser um dos filmes mais interessantes do género, por muito que pressinta a facilidade com que cairá no esquecimento!


sexta-feira, novembro 28, 2014

PALCOS: Se calhar até é o Toni Carreira das muçulmanas piegas!

Olham-se para os videoclips de Sami Yusuf e é lícito questionarmo-nos se o seu enorme sucesso no mundo muçulmano não equivalerá ao de Toni Carreira junto das balzaquianas lusas.
O estilo parece inevitavelmente o mesmo: o penteado de galã (desconhece-se se do próprio se conferido pela cabeleira postiça para tapar a careca!), os sons xaroposos e os olhares arrebatados do estilo telenovela. Tem a barba a mais, mas compreende-se: como o seu alvo são as muçulmanas românticas, o pormenor é indispensável. Até porque lhe pode dar a sugestão de um George Clooney em mais novo!
Os discos vendem-se aos milhares e este britânico nascido em Teerão começa a superar a fronteira da sua própria religião de que ele elogio o lado da tolerância, captando as atenções de algumas almas carentes do Ocidente.
É que qual candidata a miss Sami Yusuf também se diz apostado em trabalhar em prol da paz no mundo.
É bonito! 

Helena Waldmann: «Made in Bangladesh»

Helena Waldmann é uma infatigável viajante, quando procura novas criações coreográficas. Para o seu novo espetáculo - «Made in Bangladesh» - foi a Dacca para traduzir visualmente a exploração a que se sujeitam milhares de operárias da indústria têxtil.
A tragédia ainda recente do desabamento de um prédio, que albergava fábricas onde se ganhavam salários de miséria e se trabalhava em condições de segurança mais do que deploráveis desmascarou a forma como prestigiadas marcas ocidentais acumulam lucros obscenos com a exploração intensiva de trabalhadores do Terceiro Mundo.
Helena Waldmann demonstra assim, que a dança contemporânea pode ser extremamente eficiente como veículo de mensagens políticas. Artista militante o seu campo de ação abarca o mundo inteiro desde o Próximo Oriente à América Latina passando pela África e pela Ásia.

ÉCRÃ: «Rosewater» de Jon Stewart (2014)

Está quase aí a chegar «Rosewater», o filme que Jon Stewart rodou sobre as circunstâncias em que esteve preso no Irão o jornalista da «Newsweek» Maziar Bahari e agora acabou de se estrear nas salas norte-americanas.
No ano passado, quando o «Daily Show» andou a ser (muito bem) apresentado pelo inglês John Oliver, questionei-me que motivo tão determinante levara o habitual titular do programa a enfiar-se umas quantas semanas na Jordânia para aí rodar o filme. Afinal havia uma questão pessoal, que estimulava Stewart: Bahari foi preso e acusado de espião pelo regime dos ayatollahs muito por causa do que dissera numa sua prévia passagem pelo programa, sem que o interrogador iraniano tivesse percebido tratar-se de um programa satírico.
Mas o filme, protagonizado por Gael Garcia Bernal, também lembra as esperanças de liberdade de toda uma geração de jovens, sempre dispostos a irem para as ruas de Teerão a empunhar as bandeiras verdes e ganharem o direito a viverem de acordo com as suas aspirações. E há também o vilão representado por Kim Bodnia, o ator da série dinamarquesa «A Ponte», sem verdadeiramente perceber que, visto de fora, é muito mais do que um mero funcionário público, escrupuloso com os seus gastos e com o que possa agradar aos seus superiores hierárquicos.
Trata-se, pois, de um filme que assumirá uma certa universalidade já que a detenção de José Sócrates tem demonstrado nos últimos dias, que não é muito difícil cair-se na alçada de um poder autoritário, capaz de acusar sem fundamento e de manter as suas vítimas seriamente coartadas dos seus direitos mais fundamentais. Mesmo em supostas democracias! 

quinta-feira, novembro 27, 2014

COSMOS: A matéria de que é maioritariamente feito o Universo

No último quartel do século XX os cientistas colocavam-se questões tidas por insolúveis: Qual será o futuro do Cosmos? A sua expansão prosseguirá ininterruptamente ou a gravidade acabará por travar esse fenómeno e iniciar outro no sentido inverso - uma contração que se costuma designar por “Big Crunch”?
Para o descobrir formaram-se equipas de astrónomos a fizeram-se medições da desaceleração da expansão com uma “ferramenta” até então inexplorada: as supernovas, ou seja as estrelas que explodiram.
Uma supernova é um estrela que morre numa explosão monumental, causando brilho anormal numa zona do céu. E o curioso é que assemelham-se bastante quando isso sucede: depois dessa intensa luminosidade, apagam-se da mesma maneira.
Explosões cósmicas tão uniformes deveriam servir de balizas muito precisas, que permitiriam esclarecer se, de facto, o universo estava a expandir-se a uma velocidade progressivamente menor.
O problema é que elas são extremamente raras. Pelo que implicou um grande esforço de entreajuda entre os astrónomos de todo o mundo, o recurso aos telescópios mais potentes e a condições meteorológicas e de visibilidade perfeitas.
Para grande surpresa da comunidade científica os resultados obtidos foram muito estranhos, porque, em vez da prevista aceleração, concluiu-se que o universo continuava a acelerar-se na sua expansão. É como se o Espaço tivesse uma enorme elasticidade e recusasse ser comprimido.
Depois de terem testado a fiabilidade dos cálculos os cientistas acabaram por concluir pela existência de algo que amplia o Espaço e neutraliza o efeito da gravidade, fazendo com que as galáxias se vão afastando umas das outras, esticando o próprio “tecido” do Cosmos. Essa substância misteriosa recebeu o nome de «energia negra» e alterou totalmente a nossa perceção sobre o funcionamento do Universo.
A «energia negra» é a principal componente do Universo e desconhecemos do que se trata! Mesmo correspondendo a 70% do total da energia nele existente! Isto significa que essa «energia negra» equivale para o Universo ao que os mares e oceanos representam para o total da Terra e desconhecêssemos o que era a água.
De todas as teorias mais recentes formuladas pela Física - a teoria da relatividade, a mecânica quântica - nenhuma delas conseguia explicar o que é essa «energia negra». E, no entanto, há quase um século Albert Einstein formulou a hipótese de um Espaço ininterruptamente em expansão, que distanciasse cada vez mais as galáxias umas das outras. Embora não lhe tenha chamado «energia negra».
Depois de ter formulado a sua Teoria Geral sobre a Relatividade e a Teoria sobre a Gravitação, Einstein concluiu que o Espaço ou deveria estar em ininterrupta expansão ou em ininterrupta contração. Nunca poderia era encontrar um estado de equilíbrio: exatamente a forma como os cientistas viam o Universo antes de surgida a tese do Big Bang.
Nos seus cálculos Einstein até integrou uma variável correspondente a uma forma de anti-gravidade, que mantivesse o universo estabilizado. Chamou a esse valor a constante cosmológica. Era a única maneira de salvar as suas equações, dando-lhes sentido.
Não se tratava de uma solução muito elegante para conseguir o que ele pretendia: um universo estável. Mas uma dezena de anos depois Edwin Hubble descobriu que, não só o universo não é estático nem que as equações de Einstein careciam daquela constante. O pai da Relatividade reconheceria depois ter-se tratado do seu erro mais grosseiro.

quarta-feira, novembro 26, 2014

LEITURAS: «Últimas notícias do Sul» de Luís Sepúlveda (1)

Uma das memórias que guardo das minhas passagens pela América do Sul foi a vivida na casa das máquinas do paquete «Funchal», quando contratámos uma equipa de operários argentinos para nos ajudarem a reparar um gerador, cuja necessidade já se fazia sentir na altura - estávamos em Buenos Aires em pleno verão austral - mas se tornaria imprescindível, quando atravessássemos a zona equatorial no lado do Pacífico na volta ao subcontinente, que se concluiria com o regresso ao Atlântico via canal do Panamá.
Essa equipa era apenas constituída pelo encarregado Aníbal e pelo ajudante cujo nome sempre desconheci, porque sempre o vi ser tratado por El Índio.
Foi nessa altura que tomei a consciência de ainda existirem descendentes dos habitantes originais dessas latitudes, apesar das chacinas aí perpetradas por sucessivas levas de colonizadores europeus.
Apesar dos muitos decibéis emitidos por toda a maquinaria em funcionamento era possível ir para a zona dos compressores frigoríficos durante as pausas para descanso e, enquanto eles bebiam o inevitável mate, que eu recusava avesso que sempre fui ao chá, ia conhecendo o possível sobre  o que mais me fascinava naquelas latitudes: a vida aventureira dos gaúchos nas vastas pampas argentinas e o «Martin Fierro», código de comportamento escrito por José Hernandez na segunda metade do século XIX que, em forma de poema, dava conselhos - hoje vistos como incrivelmente conservadores! - sobre como agir nas mais variadas situações.
Jorge Luis Borges já escrevera um texto muito interessante sobre essas estrofes, mas o mais curioso foi encontrar no Aníbal um seu avisado cultor, predispondo-se a declamar muitas delas ali mesmo, fazendo-me lembrar o inesquecível confronto de tenores e sopranos numa cena de «O Navio» de Federico Fellini.
«Histórias de Bêbados», um dos contos de Luís Sepúlveda, que integra este seu título de 2011, também revisita esses temas a propósito de um encontro num bar de San Carlos de Bariloche: pagando uns copos a um cliente ali presente - mal visto pelo barman - obtém dele um relato detalhado das proezas do trisavô, que não era mais do que o mítico Davy Crockett, depois morto em Álamo.
Tal como as histórias ouvidas em primeira mão pela boca de Aníbal e do Índio, Sepúlveda colhe as que se referem aos aventureiros vindos de longe para ganhar fortuna sem olhar ao que houvesse a fazer e, por isso, se faziam alistar como mercenários dos latifundiários, que pretendiam ver as suas vastas herdades despovoadas dos que ali habitavam desde muito antes de aí terem chegado. Ou de como beldades chegadas à região para servirem de governantas ou de educadoras aos filhos dos colonos descobriam as potencialidades de venderem o corpo e de, ao fim de dez ou quinze anos, já serem elas próprias donas de domínios de muitos hectares.
O prazer da leitura dos livros de Sepúlveda tem a ver com isso mesmo: serem-me contadas histórias incomuns, capazes de darem outra dimensão às paisagens, que eu próprio havia olhado com um enorme fascínio.
Não admira que depois de ter percorrido toda a costa sul-americana banhada, quer pelo Pacífico, quer pelo Atlântico, ainda considere como a viagem ideal da minha vida a de seguir as pisadas do Che a exemplo do que ele descreveu no «Diários de Motocicleta», percorrendo o subcontinente por terra dos dois lados da Cordilheira.

segunda-feira, novembro 24, 2014

LEITURAS: «A Última Colina» de Urbano Tavares Rodrigues (6)

Homem citadino por excelência, e sobretudo lisboeta bom conhecedor das várias aldeias de que se compunha a capital, UTR nunca deixou de evocar com saudade a memória dos seus tempos de criança passados na herdade alentejana pertencente à família.
É dessas reminiscências, que recupera a  ligação afetiva por um cavalo “tão preto, tão preto que parecia azul da cor das noites profundas”.
Em «O Cavalo da Noite» recorda a cumplicidade com o animal, que só por si aceitava ser conduzido e de como ele lhe salvara duas vezes a vida e lhe valera a vitória numa corrida equestre contra o filho de um latifundiário no seu impressionante alazão.
E também o carácter independente do animal, que do nada viera e para lá voltara por duas vezes sem ninguém conseguir adivinhar que tipo de vida era a sua, excluídos os anos em que fora o companheiro privilegiado do narrador, quando criança e jovem adolescente…
Tratar-se-ia de criatura mágica como as das lendas? O autor nem sequer formula essa hipótese, mas também não nos impede de a colocar a nós próprios, sem obter a devida resposta.

OLHARES: o vanguardismo de Oskar Schlemmer

Na Staatsgalerie de Estugarda está a decorrer a exposição dedicada a Oskar Schlemmer (1888-1943) intitulada «Visões de um Novo Mundo» e que constitui um verdadeiro acontecimento por ser a primeira retrospetiva do artista organizada nos últimos quarenta anos. Ademais suportada numa análise aprofundada da obra em causa, que revela uma ambivalência em relação à visão de um mundo novo, já que Schlemmer tanto se deixava sugestionar pelas vertentes metafísicas, como aspirava a mudar o mundo artístico. Ele via a arte como uma ferramenta para antecipar a chegada de um mundo novo.
Organizada cronológica e tematicamente, a exposição integra 250 pinturas, aguarelas, desenhos, esculturas, fotografias e os figurinos originais do «Ballet Triadic».
Schlemmer estudara na Academia de Estugarda, mas foi com a estadia em Berlim entre 1911 e 1912, quando conheceu Herwarth Walden e frequentou a galeria «Der Sturm», que se orientou decisivamente para as correntes estéticas vanguardistas.
Em 1921 é nomeado responsável pela escultura em pedra e pela arte mural da Bauhaus, em Weimar, acumulando com a oficina teatral a partir de 1923. Os bailados, que então cria, surpreendem quem a eles assistem pelo guarda-roupa peculiar dos seus intérpretes.
Em 1928 concebe projetos para a Sala da Fonte do Museu Folkwang em Essen. Está mais concentrado na figura atlética, tratada através de formas geométricas abstratas. Cria, nessa ápoca, quadros e murais para a Staatsgalerie, mas tidos como exemplos da arte degenerada, foram removidos da coleção depois de 1933 e nunca mais se lhes conheceu o paradeiro.
Em 1929, Schlemmer muda-se para a Academia de Arte e Artes Aplicadas de Breslau e inicia um período de grande criatividade tendo por temas arquiteturas humanas e ecos de eventos desportivos.
A chegada dos nazis ao poder implica a perda do cargo de professor. As suas obras tornam-se mais sombrias, como se adotasse uma perspetiva distanciada dos temas, que pinta.
Para assegurar a sobrevivência executa pinturas comerciais, só se salientando desse período o mural  para uma casa particular em Estugarda em 1940.
A exposição serve de homenagem a um artista visionário relativamente a uma conceção moderna do mundo, que concilia tecnologia e arte, os seres humanos e a civilização, bem como o corpo e a mente. Insuficiente, porém, para resistir à ascensão do totalitarismo nazi. 

domingo, novembro 23, 2014

OLHARES: Retrospetiva de Garry Winogrand em Paris

Numa das principais instituições parisienses destinadas à divulgação da arte contemporânea - a Au Jeu de Paume - está a decorrer uma retrospetiva dedicada ao grande fotógrafo norte-americano Garry Winogrand, que viveu entre 1928 e 1984.
Ainda pouco conhecido na Europa, só a morte prematura - quando ainda tanto havia a fazer para o arquivo e revelação das suas inúmeras fotografias! - explica a importância de o revelar deste lado do Atlântico.
Desde a década de cinquenta até à sua morte, Winogrand quase nunca se separou da sua Leica, sempre que saía de casa e ia cirandar pelas ruas, porque “pretendia saber com o que se pareciam as coisas, quando eram fotografadas”. Assim se tornou num dos mais interessantes cronistas do «american way of life» - otimista e turbulento - do pós-guerra, ombreando com as descrições literárias de Norman Mailer ou com os quadros de Robert Rauschenberg. A revista «Harper’s Bazaar» era um dos principais órgãos de comunicação para que trabalhava.
Quando um cancro o levou aos 56 anos, Winogrand deixou cerca de 250 mil imagens ainda por revelar. Muitas delas, completamente inéditas, estão presentes nesta exposição, que se escusa a uma abordagem temática preferindo a aleatoriedade muito mais fiel ao modo como ele trabalhava.
Os curadores dividiram os trabalhos disponibilizados por três partes, cada uma delas cobrindo uma enorme variedade de temas do agrado do artista.
«Vindo do Bronx» cobre as fotografias captadas em Nova Iorque entre o início da década de 50 até 1971.
«É a América que eu estudo» junta trabalhos realizados no mesmo período, mas obtidos nas suas viagens fora de Nova Iorque.
«Esplendor e declínio» corresponde aos trabalhos do seu período de maior maturidade, quando saiu da sua cidade, para se aventurar pelo Texas, pela Califórnia, Chicago, Washington e outras paisagens urbanas.
Os que o conheceram dão-no como um conversador exuberante, impetuoso e com um sentido de humor contagiante
O filme aqui linkado, datado de 1982, mostra-o em ação em Los Angeles e constitui um documento elucidativo sobre a sua arte.



LEITURAS: «1Q84» de Haruki Murakami (3º volume) XVIII - A fronteira para outra realidade

Chegamos finalmente ao final da trilogia de Murakami.
É demasiado tarde que os dois guarda-costas do líder assassinado da seita Vanguarda compreendem a ligação entre o endereço onde tinham ido buscar o cadáver do investigador privado Ushikawa, que trabalhava para eles, e Tengo. Acorrendo apressadamente para ali, deixam o corpo do detetive numa sala frigorífica das instalações da seita, ninguém assistindo ao estranho fenómeno, que ali decorre: da boca dele saem seis homens minúsculos do Povo Pequeno, que logo crescem para cerca de setenta centímetros de altura. Para aí executarem a missão de que tinham sido incumbidos: “Foi assim que o Povo Pequeno criou uma nova crisálida de ar. Desta vez, ninguém cantou ou entoou um ritmo. Em silêncio, foram retirando os fios do ar, arrancando cabelos da cabeça de Ushikawa e - num ritmo constante e suava - teceram com destreza uma crisálida de ar. Pese embora a sala estar gelada, o seu hálito não se transformava em vapor branco. Se estivesse ali alguém a observar a cena, também estranharia. Ou talvez nem sequer tivesse reparado, dadas as outras coisas surpreendentes, que estavam a acontecer.” (pág. 489)
Por essa altura já Aomame e Tengo seguem de táxi pela autoestrada para Sangenjaya, aonde irão procurar a escada de emergência por onde ela acedera àquele 1Q84. E vai explicando ao namorado: “Viemos até este mundo para nos podermos encontrar. Não o percebemos, mas foi com esse fim. Enfrentámos toda a sorte de complicações: coisas que não faziam sentido, coisas difíceis de explicar. Estranhas, sangrentas e tristes. E, por vezes até coisas belas. Foi-nos pedido que fizéssemos um juramento, e nós jurámos. Submeteram-nos a provas duras, e nós ultrapassámo-las. Conseguimos cumprir o propósito que nos trouxe aqui. Mas, agora, o perigo aproxima-se. Eles querem a nina que trago dentro de mim.” (pág. 500)
Quando descobrem a escada de emergência e a sobem vão desembocar num mundo só com uma lua. Esses degraus propiciavam a passagem de 1Q84 para 1984, ou pelo menos para outro mundo que não aquele de que se despediam e onde o Povo Pequeno constituía uma imprevisível ameaça.
Aomame faz a síntese daquele momento muito especial: “Continuo sem saber que tipo de mundo é este (…) Mas seja qual for o mundo em que estamos, tenho a certeza de que é onde vou ficar. Onde vamos ficar. Este mundo também dever ter as suas ameaças, os seus perigos, e estar cheio dos seus próprios enigmas e contradições. Podemos ter de percorrer muitos caminhos sombrios, que nos conduzirão sabe-se lá aonde. Mas não faz mal, não há problema. Aceitarei este mundo tal qual é. Não irei a lado nenhum. Aconteça o que acontecer, é aqui que vou ficar, neste mundo com uma lua. O Tengo, eu e esta coisa pequenina.” (pág. 518).

AUDIÇÕES: Cecilia Bartoli canta árias de ópera compostas nas margens do Neva

Em Outubro transato, a mezzo soprano Cecilia Bartoli apresentou em Versailles o seu mais recente álbum intitulado «St. Petersburg», que procura corrigir a ideia muito consolidada em como a Ópera só se iniciara na Rússia  em 1835, quando Glinka apresentou a sua «Vida pelo czar».
Levando muito a sério as épocas históricas, que pretende ilustrar nos seus álbuns, ela estuda-as intensamente. Foi assim que concluiu já ali existir ópera cerca de cem anos antes por responsabilidade de compositores italianos ali convidados a instalarem-se pelas czarinas Ana, Elizabeth e, por fim, Catarina.
Araia e Manfredini foram dois desses compositores, que não se fizeram acompanhar dos castrati então na moda em Itália, mas que souberam adotar os dotes criativos às circunstâncias encontradas nas margens do rio Neva.
Resgatando-os do imerecido esquecimento, Cecilia interpreta-lhes as árias com a sua costumada energia e o intenso brilho dos seus olhos negros.
Em entrevista recente ela esclarece que “para uma cantora, ser inteligente, é compreender o que se esconde por trás das notas. Contar uma história, mais do que cantar. Pintar cores. (…) É a alma que está dentro do corpo. A minha voz também vem dela. É ar, parece que é nada, mas é tudo”.
Escusado dizer que este é um dos grandes álbuns do ano!



AUDIÇÕES: «Inquietação»

Um tema de José Mário Branco e Natália Correia interpretado por Camané e Dead Combo. (selecionado pelo irrepreensível bom gosto da Elza Rocha).

sábado, novembro 22, 2014

LEITURAS: «1Q84» de Haruki Murakami (3º volume) XVII - Reencontro no topo de um escorrega

No texto anterior tínhamos deixado Aomame protegida no apartamento, que lhe serve de refúgio e Tengo regressado a Tóquio depois do funeral do suposto progenitor. O perigo por que tinham passado - representado pelo investigador Ushikawa, que andava a espiar o escritor para poder chegar ao refúgio da assassina do líder da Vanguarda - já fora liminarmente cerceado pelo assistente da velha senhora, que a contratara para tal missão.
Já conhecíamos igualmente a gravidez surpreendente de Aomame. Agora, enquanto lê o livro de Fuka-eri ela chega a uma hipótese perturbadora: “Dentro do meu útero existe um calor subtil mas tangível, que está a emitir uma ténue luz alaranjada, exatamente como se fora uma crisálida de ar? Será que sou a e o pequenino é a minha nina? Será que a vontade do Povo Pequeno também se encontra envolvida nisto: no facto de estar grávida de Tengo, apesar de não termos tido relações sexuais? Foram astuciosos ao ponto de usurparem o meu útero para o usar como uma crisálida de ar? Usaram-me perante a possibilidade de conseguirem uma nova nina?” (pág. 417)
Tamaru revela-se de uma utilidade imprescindível: avisa Aomame da neutralização do perigo representado por Ushikawa e marca-lhe encontro com Tengo junto ao escorrega do parque infantil, tão só o consegue contactar depois de ter vindo do funeral do pai.
Excitado perante essa possibilidade, Tengo não deixa de se sentir desconcertado: “Muita coisa permanecia ignorada e misteriosa. Os fios de que se compunha a história eram complicados. Estava para além da sua compreensão perceber quais desses fios se uniam e que tipo de relação de causa-efeito existia entre eles. Pensando bem, desde que Fuka-eri entrara na sua vida, sentia-se a viver num mundo em que a quantidade de perguntas ultrapassava a de respostas. Mas tinha a vaga sensação de que esse caos se aproximava, ainda que tenuemente, do desenlace.” (pág. 468)
Nessa mesma noite, quando está de olhos fechados no topo do escorrega, sente uma mão conhecida agarrar-se à sua. A mesma que também o fizera muitos anos atrás, quando ambos eram colegas da mesma turma da escola primária. De repente é como se os vinte anos entretanto decorridos tivessem durado um mero instante.
O romance aproxima-se do seu fim. Depois de nos desviar do mundo convencional onde todos os acontecimentos têm uma explicação racional, para nos fazer mergulhar num outro onde são muitas as incongruências - duas luas no céu ou um Povo Pequeno de intenções imprevisíveis por exemplo - Murakami prepara-nos para o epílogo onde teremos os protagonistas de regresso à nossa realidade.
1Q84 pode voltar a ser 1984!
É o que iremos ver no próximo texto, aquele em que concluiremos a abordagem à trilogia do escritor japonês!

sexta-feira, novembro 21, 2014

ÉCRÃ: «Easy Money» de Daniel Espinosa (2010)

Nos últimos anos o género policial tem conhecido um sucesso enorme na Escandinávia, quer na forma de romances, quer dos filmes que deles resultam. Este «Easy Money» não é mais do que um sucedâneo dessa moda, baseando-se numa obra de muito sucesso assinada por Jens Lapidus.
No ambiente marginal da capital sueca vão-se cruzar três personagens completamente diferentes uns dos outros.
JW foi um universitário brilhante e frequenta a alta sociedade local mas, tendo falta de dinheiro, arranja emprego como taxista, conhecendo assim Jorge, um traficante latino acabado de fugir da prisão e disposto a um proveitoso golpe antes de regressar ao país natal.  Projeto arriscado já que tem atrás de si não só a polícia, mas também a máfia sérvia, na pessoa do sinistro Mrado, que estivera na origem da sua captura.
Atraído pelo que acredita possa vir a ser «dinheiro fácil», JW embrenha-se no mundo do crime organizado, arriscando perder ali as penas.
Num tal universo de violência, onde a regra básica é o «cada um por si», os três homens veem-se divididos entre as atividades criminais e os afetos - uma irmã, uma filha, uma namorada - que podem representar a sua derradeira tábua de salvação.
Entre a paranoia, os tráficos e as traições, este filme policial revela-se eficaz graças a um ritmo acelerado e ao retrato de uma cidade de Estocolmo subterrânea, dominada pelas máfias e tendo em pano de fundo, uma sociedade em crise.