segunda-feira, julho 28, 2008

Casa das Penhas Douradas (3)

A tarde cai e o sol infiltra-se pelos interstícios dos ramos ou do tronco das árvores. Filtros, que dão a ilusão de não haver só um, mas vários sóis a iluminarem esse crepúsculo, que se espraia sobre a serra.
Mas, mais do que tal ilusão, sobra a evidência de uma simetria na forma como o paisagista do espaço entendeu a distribuição dessas árvores.
O encanto também tem dessas coisas: deixe-se a Natureza manifestar-se sem controlo e é o caos. Cabe, então, ao homem, domá-lo e orientá-lo para o que é a pulsão humana para a ordem, para a harmonia da proporção.
Porque orientado para o lazer, tudo neste edifício é pensadopara refrear os motivos de inquietação. Sobrará a escravatura inevitável do telemóvel, mas essa é da exclusiva responsabilidade de quem aqui deveria procurar o encantamento e não se livra de quantas correntes o tendem a aprisionar aos compromissosda cidade. Arriscamos uma surtida ao terraço, mas, apesar de estarmos em Julho, a tarde está demasiado fria para arriscar um arrefecimento. Não importa: abrem-se as cortinas e é no conforto do colchão, que nos entregamos ao prazer quase esquecido de observar a lenta declinação do sol no horizonte, transmutando-se do seu branco amarelado muito intenso para o alaranjado que, a acreditar nos antigos, anuncia um tempo bom para o dia seguinte. Se a vida é uma permanente rotina, sacudida por breves e luminosos momentos mágicos,este é decerto um destes…

Teatro Meridional: Contos de Viagens

Que espantosa actriz é Carla Galvão! Embora o trabalho de Fernando Mota na criação de uma ambiência sonora adequada seja, igualmente, carecedora dos maiores elogios pela capacidade de criar sonoridades a partir dos mais prosaicos objectos do dia-a-dia, é na actriz, que se polariza todo o espectáculo.
E se ela utiliza os seus diversificados talentos para ilustrar os mais diversos tipos de personagens, desde a rapariga que quer ir ao baile até à sua severa mãe, passando por velhos, por novos, por mulheres, por crianças a que a sua mímica e tom de voz dão credibilidade.
É uma hora intensa até se compreender as características de um povo que, para sobreviver, também se armou em conquistador do mundo, sem perder a nostalgia da terra deixada para trás.
A fome e a falta de água estão bem presentes no quotidiano de tais personagens, que procuram a sua via para a felicidade sem se queixarem da triste sina, que os deixou exangues…
A escolha de textos tem a marca de Natália Luísa, que continua a ser a impulsionadora de uma companhia, que não tem merecido o justo destaque, que o seu trabalho justificaria. E merece, igualmente, encómio a cenografia, que se mostra funcional e ajustada à imagem preconcebida pelo espectador quanto ao exotismo daquele país africano.
«Contos em Viagem» mostra bem como uma peça de teatro não precisa de ser comprida, nem maçuda, para revelar a sua originalidade e assim atrair público interessado…
Basta ser genuína, sagaz e soberbamente interpretada!

domingo, julho 20, 2008

take this waltz leonard cohen

Se tivesse de escolher um tema de eleição de Leonard Cohen, este seria um deles. Não só pelo poema do Federico Garcia Lorca, não só pelo belíssimo disco em que ele está inserido. Mas, sobretudo, porque este é daqueles temas que, desde a primeira audição nos torna assumidos apreciadores da obra do cantor canadiano...

Casa das Penhas Douradas (2)

É sempre a pedra de toque num hotel: o quarto. Afinal é nele, que se passa grande parte da estadia, seja ela curta ou mais prolongada.
Nele procuramos o prolongamento do nosso espaço habitual, apropriando-nos de quanto ele contém para nos sentirmos seguros. Porque o desafio é mesmo esse: contrapor a estranheza do que desconhecíamos, à sua aceitação íntima de forma a aproveitá-lo em pleno.
O quarto passa a ser o nosso abrigo. O ninho a que voltamos embora nos afastemos no mister de turistas.
E este é acolhedor logo à primeira vista. Minimalista no mobiliário, ora branco, ora castanho claro. Colorido nas colchas, que encobrem o conforto dos leitos. Funcional em tudo quanto nos ocorra quanto às nossas principais necessidades.
Logo à primeira impressão fica a certeza de que será lugar aonde podemos vir a ser muito felizes. Porque será um cenário adicional quando, num indefinido futuro, evocarmos todos os momentos mágicos partilhados em que tudo se esquece do que significam compromissos sociais e se vive na plenitude o prazer de uma disponibilidade só possível em férias. Ou na tal reforma, que tarda em chegar!
Mesmo que ficassem impossibilitados os projectados percursos pelas redondezas, fica a convicção do contentamento dos dias ali passados.
Porque alturas há em que basta muito pouco para sentirmos muito próxima a felicidade plena!

sábado, julho 19, 2008

Casa das Penhas Douradas (1)

Hansel e Gretel ficaram enfeitiçados pela casinha de chocolate, sem saberem dos riscos que corriam.
Os perigos das casas encantatórias são esses: ficarmos-lhes de tal modo presos, que não nos apeteça delas zarpar.
Talvez por isso algumas são concebidas ou transformadas em hotéis de charme. Porque é disso mesmo que se trata: de atracção, de fascínio, de sedução, de deleite, de deslumbre, de enlevo, de entusiasmo …
Quantos sinónimos haverá para exprimir essa rendição ao espaço desde o primeiro instante?
As lonjuras ao alcance de um olhar forçado a recorrer às suas lentes panorâmicas. A verdura matizada de tantas tonalidades diferentes, espalhada por toda a volta e a começar à beira das janelas. E, no seu interior, o serviço exemplar de quem nos recebe como se fôssemos da família, com uma simpatia que vai muito para além do irrepreensível profissionalismo…
O quarto, que nos cabe - o seis - é funcional dentro da relativa exiguidade do seu espaço. Mas quem se preocupa com metros quadrados, quando se abrem as cortinas e temos todas as serranias e vales em volta a entrarem-nos quarto adentro?
E, ali a dois passos, está a piscina aquecida, com janelas para as mesmas distâncias, acrescidas das que dão para o céu para nele se verem cúmulos e estratos a desfilarem.
Depressa se chega a esta constatação: como livrar-nos das sereias cantoras desta casa, que nos incitam a nela permanecer? A dela não voltar a sair?
Só um motivo pesa: é que para além daquelas montanhas, no fatigante bulício da cidade, restam os compromissos inadiáveis, aqueles que funcionam como venda aos nossos olhos e tampões nos nossos ouvidos, quando é a inadiável hora de partir…

A Walk On The Wild Side

Hoje está em Lisboa o cantor de Perfect Day e deste tema fundamental da canção norte-americana do nosso tempo. Aqui fica um clip que nos lembra quanto é bom vogar de vez em quando pelo lado mais selvagem da vida...

sexta-feira, julho 11, 2008

A FESTA - Um espectáculo ambivalente

É certo que as festas costumam ser isto mesmo: amigos, que se juntam, se sorriem entre si, brincam, aparentam cumplicidades, mas, depois, com as horas a passar, deixam vir ao de cima as frustrações, os medos, os ciúmes, as invejas.
As festas acabam por se revelar lugares de massacre, donde poucos saem incólumes.
Os sete actores da peça conseguem transmitir tal ideia. Mas, nós, seus espectadores, saímos dali tão vazios como se nós próprios fossemos os intérpretes...

domingo, julho 06, 2008

O discurso político em tempo de crise

Qual deverá ser o discurso adequado de um governante perante os seus concidadãos?
Ao chegar ao Governo, Durão Barroso assustou o país com o seu discurso da tanga. Pelo contrário, e até muito recentemente, José Sócrates suscitou muitos comentários negativos em diversos opinadores profissionais dos media com uma visão cor-de-rosa do país. Numa crónica muito interessante surgida no «Diário de Notícias», Manuel Maria Carrilho escreve:
«Como reagir em tempo de crise? Esta é, sem dúvida, uma das questões mais difíceis que se colocam aos políticos. Se optarem pelo dramatismo, serão responsabilizados por terem amplificado a crise e dificultado a sua solução. Se preferirem a tranquilidade serão acusados de irresponsabilidade e de não terem atalhado as coisas a tempo.
É nestes momentos que se percebe que a política é, em grande medida, uma arte. E esta arte (…) implica (…) que se assuma a acção política em duas vertentes fundamentais. Por um lado, na consciência de que, em contextos de alta contingência, a acção tem quase sempre mais consequências do que as que foram previstas

E esta constatação é que separa um político como José Sócrates da sua oposicionista Manuela Ferreira Leite: enquanto esta parece linear no seu discurso miserabilista e preconceituosa quando a questionam sobre as grandes mudanças civilizacionais, o primeiro está atento ao que está permanentemente a mudar à sua volta, procurando antecipar as suas propostas ao que serão os requisitos impostos pelo que se tornará o mundo muito em breve. E daí que, enquanto uma se preocupa com os efeitos do presente, o primeiro-ministro tenta ver mais longe. Procurando favorecer o que nele se revelará mais adequado para os cidadãos.

ESpectáculo no CCB: O Ocaso do Barroco

O ocaso do Barroco, o despertar do Clássico. Os anos da transição no Século das Luzes.
Durante hora e meia, a Orquestra do Divino Sospiro interpretou peças de António Vivaldi, Baldassari Galuppi, Giovanni Battista Sammartini, Johan Christian Bach e Mozart.
Com a direcção competente de Enrico Onofri e com Fernando Miguel Jalôto no cravo.
Antes de iniciar o concerto, Massimo Matteo explica a disposição da orquestra , que pretende simular a da famosa formação de Dresden na época a que o espectáculo diz respeito: o concertino, o cravista e os violetistas de costas viradas para o público, que só é confrontado pelo maestro e pelas violoncelistas. Em ângulo oblíquo ficam os primeiros e os segundos violinistas. E escondido, atrás de todos, o fagotista…
Se essa disposição surpreende, a sua funcionalidade revela-se ambígua, condenando por exemplo uma das violoncelistas a violentos torcicolos para espreitar a gestualidade exuberante de Onofri. Mesmo, se nos intervalos, parecia ser a intérprete mais rendida à harmonia das peças.
Globalmente foi um bom espectáculo, sem entusiasmar por aí além…

sábado, julho 05, 2008

Terramoto à Vista?

Estaremos à beira de um terramoto de longa duração? Esta é a questão levantada pelo artigo de Boaventura de Sousa Santos nas páginas do último número da «Visão».
É que, contrariando a versão optimista de muita gente - o casal Toffler, por exemplo - a sociedade do futuro parece apostar numa exploração cada vez mais desenfreada dos trabalhadores, obrigados a jornadas de trabalho mais longas e por mais anos. A miragem de uma sociedade dedicada cada vez mais ao lazer vai-se esfumando à medida que os próprios políticos favorecem normas legislativas, que voltam a aproximar o trabalho de formas mais sofisticadas de escravatura.
Ora, segundo BSS, essa tendência irá contar com a reacção dos prejudicados. Passando por modelos de resistência, que ainda não se adivinham, mas se revelarão eficientes, à medida da ameaça agora incrementada...

Paavo Jarvi num espectáculo deste ano

Em 2010 Paavo Jarvi irá assumir a direcção da Orquestra de Paris. Para este admirador confesso de Furtwängler, trata-se de um novo desafio, já que ele tem ganho prestígio até agora em Orquestras de menor relevância. Nesta altura ele está a liderar a Orquestra de Câmara de Bremen e a de Cincinatti. Detectando, entre ambas as diferenças civilizacionais, que separam os dois continentes: na Europa ele sente o espírito do grupo a sobrepor-se à dos indivíduos. Pelo contrário, na formação norte-americana, é do primado das individualidades, que consegue o resultado pretendido para o grupo.
Na entrevista à revista «Diapason», o maestro recorda como, desde criança, ele e o irmão, Kristjan - também ele chefe de orquestra - foram estimulados pelo pai, Neeme, a considerar a música como um trabalho quotidiano: como existia em casa uma vasta discoteca, eles eram confrontados com provas de audição cega, em que da escuta de uma peça, deveriam identificar quem era o respectivo compositor e qual o título da mesma.
Ficou de então essa característica, que se associa a Paavo Jarvi: maestro esforçado, é do seu intenso trabalho com os seus colaboradores, que resulta o efeito convincente dos seus desempenhos…

quarta-feira, julho 02, 2008

Na morte de Albert Cosséry

A morte de Albert Cosséry foi anunciada há alguns dias e passaram-me pela rama alguns textos a seu respeito.
Embora nunca o tenha lido, a actualidade dos seus temas de eleição é indiscutível.
Embora situando as suas histórias no Egipto, Cossery rejeita qualquer utilização dos estereótipos exóticos e folclóricos, que costumam primar na escrita focalizada em ambiências orientais. O seu projecto é outro: o de demonstrar que, mesmo excluídos dos bens materiais, os mais desfavorecidos acabam por encontrar substitutos para a inacessível felicidade.
Tais personagens desprezam a agitação mecânica da cidade e da organização humana, como se qualquer movimento constituísse a expressão de uma conspiração contra o homem apostado na sua paz interior.
A única forma de consumar devidamente a existência residirá em possuir o tempo como aliado, mesmo que nada mais se possua.
Esses inadaptados às manifestações da vida social - que se revela hostil, insensível, fria e distante) acabam por ser duplos de um autor cujo cepticismo atávico a quaisquer teorias ou doutrinas o levou a libertar o seu lado irracional e irónico, quiçá sempre imprevisto na sua sempre presente pitada de loucura.

terça-feira, julho 01, 2008

Beethoven Symphony 7 Rattle 4th mov.

Não podemos adivinhar por quanto tempo Sir Simon Rattle irá permanecer à frente da Filarmónica de Berlim: numa instituição, aonde os instrumentistas têm uma decisão soberana sobre quem os comanda, o inglês parece não recolher os favores de muitos dos seus colaboradores. Ao que se conta, Daniel Barenboim já está a preparar-se para o substituir.
Enquanto isso não sucede aqui está um bom exemplo da capacidade histriónica de Rattle nesta versão da 7ª Sinfonia de Beethoven...

Mona Ozouf: «Varennes, la mort de la royauté»

Os franceses adoram História. Mas a grande questão é: entendendo-a como ciência (ou seja com um peso relevante do que é ou não rigorosamente verdadeiro) ou como arte (ou seja, permitindo-se liberalidades conceptuais sob a forma de romance?
Muitas vezes, para tornar exequível o seu romance, o historiador travestido em escritor tem de tornear esse rigor científico.
Vem isto a propósito do livro de Mona Ozouf «Varennes, la mort de la royauté» em que se aborda a fracassada tentativa de fuga de Luís XVI, de Maria Antonieta e dos seus filhos, interrompida naquela localidade em 20 de Junho de 1791.
Tal como muitos outros eventos históricos, a percepção da importância da data não é imediatamente entendida. Nos dias que se seguem a Assembleia procurará apresentar esses acontecimentos como decorrendo da vontade de Luís XVI em ir auscultar a opinião dos franceses da província quanto ao que se passava em Paris. Por isso ele vê momentaneamente restaurados os seus poderes.
Por isso Mona Ozouf defende que o episódio contém elementos de tragédia, de farsa, de romance e de enigma.
Será depois, que se conclui ter crescido nesse dia o sentimento republicano, que incita os franceses a dissociarem-se da sua realeza.
Depressa se associará a fuga do rei a uma deserção dos seus deveres para com o povo, que dele conservara um conceito sacralizado. E, numa revolução em que se sente omnipresente as conspirações de uns contra outros, Varennes constituirá o principio do fim da dinastia dos Capetos.