segunda-feira, outubro 31, 2016

(DIM) Nova aproximação a «2001, Odisseia no Espaço» (1)

A um ritmo quase anual revisito «2001 Odisseia no Espaço», que figura na lista pessoal dos melhores filmes da minha vida. Por isso mesmo vale a pena lembrá-lo nos seus significados mais distintos, entre o que se torna visível numa leitura mais aligeirada e a complexidade do que pressupõe em conformidade com aquelas célebre inscrições de Gauguin no Museu das Belas Artes de Boston: “Donde viemos? Quem somos? Para onde vamos?”
Na «Aurora da Humanidade» existe uma paisagem árida onde os antropoides lutam contra as feras e os seus congéneres.
Um dia descobrem, espantados, um paralelepípedo de que se aproximam entre a curiosidade e o medo. Não tarda que um deles invente a primeira arma, valendo-se de um osso.
Num raccord oportuno esse osso lançado ao ar transforma-se numa nave espacial, que se dirige a uma estação orbital em torno da Lua. Quem ali se encontra - sobretudo cientistas! - debate sobre uma estranha forma geométrica surgida na cratera de Tycho. A expedição, que ali se dirige, descobre um paralelepípedo semelhante ao conhecido pelos antropoides perto da respetiva gruta. Ao nascer do sol esse objeto emite ondas em direção a Júpiter.
No início da segunda parte, intitulada «Missão Jupiter», dois cosmonautas, Bowman e Poole, conjuntamente com outros três cientistas em estado de hibernação, dirigem-se ao maior planeta do sistema solar na nave «Discovery», cujo controle é exercido por um computador dotado do poder da reflexão e da palavra: o Hal 9000.
Sem que nada o fizesse esperar, ao aproximar-se de Júpiter, o Hal começa a sinalizar sentimentos inquietantes: cria uma avaria, que obriga Bowman e Poole a saírem para o espaço para repararem uma antena. É a ocasião por ele aproveitada para matar Poole e os três cientistas adormecidos, só se salvando Bowman, que consegue regressar ao interior da nave e desligar o computador assassino. Só no seu estertor é que ele revela o verdadeiro fito da missão.
Entramos depois na terceira parte, intitulada «Para lá do infinito». Sozinho, Bowman tenta descobrir a origem das misteriosas emissões de ondas relacionadas com o monólito lunar. Ao aproximar-se do planeta gigante numa cápsula espacial, Bowman cruza um outro monólito idêntico aos dois precedentes , antes de se ver aceleradamente atraído para a superfície do planeta olhando para um desfile de imagens e de paisagens cujo significado lhe parece mais caótico do que  compreensível.
No final ele vê-se na condição de um velho moribundo num quarto decorado ao estilo Luís XVI, onde reencontra, uma vez mais, um monólito semelhante aos anteriores. Ao morrer Bowman transforma-se num feto, que atravessa o espaço e contempla a Terra.
Recordada a sinopse do argumento estamos prontos para aprofundar a abordagem ao filme, que o próprio argumentista, Arthur C. Clarke, dizia só poder vir a ser superado por um outro, que fosse mesmo rodado no espaço.



(DIM) O «Café Society» de Woody Allen

Sobre o novo filme de Woody Allen, «Café Society» li as críticas mais contraditórias. Houve quem o considerasse um dos piores filmes de um cineasta mais do que esgotado, houve quem o considerasse um dos melhores títulos da sua mais recente cinematografia.
Para mim o juízo é muito simples: pode estar distante do que de melhor dele conheci, mas os seus noventa e seis minutos de duração deram-me um enorme gozo. Não é daqueles filmes, que recordarei facilmente daqui a umas semanas, mas enquanto o fui vendo, o prazer dos diálogos, das interpretações, dos ambientes retro e, sobretudo, da banda sonora , foi constante.
A história é a de um triângulo amoroso: um rapaz judeu vai para Hollywood para ver se o tio lhe arranja emprego na indústria cinematográfica, ao que, contrariado, ele acede. Não tarda que o rapaz se envolva com a secretária desse tio (desempenhado por Steve Carell, depois de substituir um caprichoso e intratável Bruce Willis, despedido da produção), sem sabê-la também sua amante.
Jesse  Eisenberg e Kristen Stewart reencontram-se nos ecrãs depois de «Adventureland» em que  ela tinha igualmente um romance com um homem mais velho.
Nesse inicio do filme assistimos à recriação da Hollywood dos anos trinta, quando era fábrica dos sonhos, mas também antro de coscuvilhice e de permanentes negociações quanto a elencos e produções. Entregue a uma azáfama incessante, todo esse mundo de atores, realizadores, produtores, argumentistas ou técnicos de cinema não pareciam ter sequer disponibilidade para descansarem um mero instante.
Preterido no coração de Vonnie, que opta por se tornar sua tia, Bobby volta a Nova Iorque para assumir a direção do clube noturno adquirido pelo irmão, um gangster com particular propensão para ir escondendo cadáveres sob toneladas de betão.
O sucesso da sua gestão é imediato: quem é alguém em Nova Iorque só confirma esse estatuto se as páginas das revistas sociais o derem como frequentador do novo local de entretenimento noturno da cidade. É aí que Bobby encontra, igualmente, outra Veronica, com quem se apresta a casar e a ter filhos. O problema é que o tio Phil e a tia Vonnie também vêm passar uma temporada à grande metrópole e Bobby sente o coração palpitar-lhe perante o descontrolado desejo incestuoso de recuperar a antiga paixão.
O epílogo aberto com que Allen decide concluir o filme é inteligente nem pendendo para o happy ending, nem para um desenvolvimento melodramático. É claro que estamos perante entretenimento puro, mas de grande qualidade. Como, de costume, mais vale um título menor de Woody Allen do que quase todos os que com ele competem por espectadores nas nossas salas de cinema.

 

domingo, outubro 30, 2016

(DL) Arnaldur Indridason, «A Mulher Vestida de Verde» (1)

Nos anos  em que por lá andei nos verões  dos finais da década de oitenta, inícios da de noventa, a Islândia ainda não era conhecida pelo comportamento venal dos seus banqueiros, nem por ter Piratas a quase ganharem eleições. Na época, além da sua atividade piscatória e dos vulcões, conhecia-se dos islandeses o seu gosto pela leitura, que os tornava nos mais ávidos consumidores de livros per capita à escala mundial. O que não admira, pois os longos invernos são marcados pelo frio extremo e pela escuridão, que tornam apetecíveis os serões de leituras no recato do lar.
Numa população tão escassa também seria improvável encontrar matéria para dar fôlego a romances policiais, mas tudo indica que a moda do género nos países escandinavos contagiou o seu vizinho mais ao norte. Por isso temos hoje Arnaldur Indridason como o representante de uma escola de literatura desse tipo com crescente adesão dos leitores europeus: os seus livros vão-se encontrando com maior ou menor facilidade nas livrarias lusas e dos demais parceiros comunitários.
Datado de 2001, «La Femme en vert» - que li agora na sua versão francesa - ainda é um romance frágil na sua estrutura, mas já aponta para os objetivos do autor em questionar a história islandesa mais recente e a forma como se relacionam homens e mulheres.
Tudo começa com uma polícia, Elinborg, a fazer um relatório sobre a descoberta de uns ossos no bairro de Thusold.
O caso começa por não ter relevância, dando-nos inicialmente o ensejo para conhecer algo mais sobre esta personagem: tendo passado os quarentas, é casada em segundas núpcias com um mecânico apreciador dos seus dotes culinários e que lhe aceitou em casa os três filhos do anterior matrimónio, acrescentados ao que ele também tivera. Com formação em geóloga, faz parte do muito restrito clã feminino no Departamento de Homicídios de Reiquiavique.
Conhecemos-lhe depois os colegas: Sigurdur Oli, que tarda em decidir-se a casar com Berghora com quem vive há vários anos.  E, sobretudo, Erlandur, que terá importância crescente no romance, porque a filha, Eva Lind foi encontrada em coma num descampado perto da maternidade, aonde pretendia aparentemente chegar  devido à sua avançada gravidez. O feto acaba por perder-se e ela (sobre)viverá em estado crítico durante todo o curso da história.
Em casa, nessa noite, Erlandur “sentiu o profundo silêncio que reinava na sua vida. Sentiu a solidão que o acossava. O peso dos dias cansativos a formar uma cadeia, que ninguém conseguiria quebrar, enrolava-se à sua volta, oprimindo-o, asfixiando-o.” (pág. 67)
Nesta avançada altura do romance ainda pouco encontráramos do que o definiria como um policial. 

(I) A eternidade e mais alguns dias

A eternidade ou a sua busca é o que Proust persegue com o seu episódio das madalenas, um dos mais conhecidos da sua volumosa obra. É essa inesperada projeção no passado, que permite viajar à procura do tempo perdido, porque o seu resgate significa viver-se no presente, mas também em cada um dos momentos vivenciados outrora e que o mero mergulhar de um pequeno bolo numa tijela de chá traz à memória na sua luz, odores e sons, ou seja, em tudo quanto de então percetível ou não, ficou associado a tal momento.
O personagem entediado, que descobre, subitamente, essa porta para o passado, não a quererá mais fechar, por descobrir um dos princípios da Física mais explorados pela Ficção Científica: estaremos aqui neste binómio do espaço tempo, mas continuamos igualmente vivos noutros, que hoje consideramos passado, ou nos que ainda estaremos por descobrir no futuro?
Proust liga-se, então, a Kurt Vonnegut no seu matadouro 5, logo transmutado nessa Tralfamadore onde o peregrino Billy descobre verdadeiramente a essência do Amor.
Se o escritor francês concluirá que o mais importante na vida é a Arte, o norte-americano dá primazia ao Amor. O tempo julgado perdido poderá ser afinal o do reencontrado e revivido. E essa é a melhor hipótese de se julgar possível a eternidade, que a Razão e a nossa completa aversão a Deus, inviabiliza.


(DIM) «Para sempre», um filme de Heddy Honigmann

Se nos preparamos para ver um documentário quase todo passado no cemitério do Père Lachaise em Paris, podemos apostar na inevitabilidade de nos ser mostrada a campa de Jim Morrison, o vocalista dos Doors, que garantiu, anos a fio, um fluxo ininterrupto de fãs a visitá-lo.
Isso poderia ser verdade se a realização não fosse assinada por Heddy Honigmann, que nos tem encantado com filmes inolvidáveis pela sua originalidade e humanidade. Porque num local habitado por mortos, são os vivos quem aqui contam. E são eles que vão desfilando perante o nosso rendido olhar, dando-nos a conhecer as suas histórias pessoais.
Há Yoshino, a japonesa fascinada pela música de Chopin desde os oito anos e que a interpreta ao piano como forma de comunicar à sua maneira com o pai, falecido anos atrás, de esgotamento como sucedeu a tantos japoneses da sua idade e condição.
Uma velha senhora, lava as campas de Proust, de Apollinaire e de Modigliani, conhecendo-lhes bem as obras e biografias.
Conhecemos três espanholas chegadas a França no fim da Guerra Civil para escaparem às exações de Franco e ainda indignadas por o terem deixado mandar no seu país durante cinquenta anos.
Um apaixonado pelo local, de que se tornou guia assíduo, chama a atenção para os túmulos mais esquecidos e degradados, onde jazem poetisas e cantoras desaparecidas ainda jovens e de quem mais ninguém se parece lembrar.
Um ilustrador, Stéphane, é também um visitante frequente da obra de Proust, que começou por detestar quando tinha vinte anos e redescoberto com inesperado fascínio quinze anos depois. Na história das madalenas recorda a teoria sobre o acesso à eternidade e como o que mais importa na vida é a arte.
Há também a caribenha, que evoca a paixão fulgurante por um jovem vinte anos mais novo, subitamente falecido por causa de uma picadela de abelha, quando ainda só contavam com dois meses de casados.
Uma armeniana exuberante orgulha-se da cruz ali afixada, símbolo identitário da sua cultura, e fala com admiração do progenitor, um renomado artista na sua arte de criação de calçado.
David, o embalsamador de uma funerária, igualmente encontrado à beira da sepultura de Modigliani, reconhece-lhe a influência na sua arte, quando procura dar aos cadáveres a aparência de quando ainda neles pulsava a vida.
Um iraniano, que ganha a vida como motorista de táxi em Paris, recolhe-se amiúde junto ao sepulcro de Sadegh Hedayat, grande poeta da sua cultura cujos versos canta na orquestra clássica a que pertence.
Mas não é só ele quem ali canta: um grupo de admiradores do autor da canção «Le Temps des Cerises» vem entoá-la junto ao túmulo do seu criador.
Pode-se, pois, concluir que há ali bem mais do que histórias de solidão como a princípio tememos. É que mesmo nos casos de quem ali vem para falar com os seus mortos ou ler-lhes volumoso livro, continua a existir uma ininterrupta comunicação entre quem se foi e quem cá ficou.
Heddy Honigmann vai acompanhando todas essas histórias com os sons de Chopin, e o recurso à estatuária ilustrativa dos sentimentos e emoções ali revelados.
Há muito mais vida neste filme sobre a homenagem aos mortos do que na maioria das fitas por aí exibidas para entretenimento dos consumidores de coca-cola e pipocas.


sábado, outubro 29, 2016

(DL) John Banville, «O Mar» (V)

O romance de John Banville encaminha-se para as páginas finais, aquelas em que iremos esclarecer a forma misteriosa como o começara: “Foi no dia da estranha maré que os deuses partiram.(…) Depois daquele dia nunca mais voltei a nadar.” 
Pressentimos algo de trágico, mas nada nos prepara para o desenlace que John Banville nos irá prodigalizar. É que, a trinta páginas de distância, ele parece concentrar o narrador-protagonista no progressivo distanciamento em relação à sua defunta mulher: “Pensava em Anna. Obrigo-me a pensar nela, faço-o como um exercício. Está enterrada em mim como uma faca e, no entanto, começo a esquecê-la. O quadro que guardo na memória começa já a esboroar-se, pedacinhos de pigmentos, pequenas partículas de folhas de ouro vão-se desprendendo, quebradiços. Será que um dia a tela inteira vai ficar vazia?” (pág. 136)
O valor que de si sentira estava ligado a ela, porque agora não podia deixar de menosprezar-se: até a suposta monografia de Bonnard, que era suposto estar quase concluída, não passara das primeiras páginas: “Sempre fui um evidente zé-ninguém, cujo maior anseio era ser um não tão evidente alguém. Sei o que digo. Percebi imediatamente que Anna era a operadora da minha transmutação. Ela era o espelho de fora em que todas as minhas distorções desapareceriam.” (pág. 137)
Antes de mergulhar nas memórias da sua distante puberdade, Max conclui o balanço de toda a sua experiência conjugal: “Anna e eu fizemos o melhor que pudemos. Perdoámos um ao outro tudo o que não éramos. Que mais se podia esperar neste vale de tormentos e de lágrimas? (…) Porém, e a despeito de tudo, não consigo libertar-me da convicção de que houve qualquer coisa em que falhámos, de que houve qualquer coisa em que falhei, só que não faço ideia o quê” (pág. 139)
Uma tarde o jovem Max surpreende uma cena em que julga ver Rose confessar a Connie Grace o seu amor pelo pai das crianças, a quem servia de perceptora, sem que visse na “rival” uma reação emotiva. E conta-o a Chloe e a Myles. Agora, à distância de meio século olha para o desenlace com outra perspetiva: “Não posso deixar de especular que aquilo que aconteceu no dia da estranha maré foi de algum modo uma consequência da paixão secreta de Rose”. (pág. 148).
Nesse dia, depois de apanhar Chloe em flagrante jogo erótico com Max, Rose pretende castiga-la, mas a rapariga e o irmão fogem-lhe para a beira de água, entram oceano adentro afastando-se sem intenção de retrocederem: “Estavam agora os dois muito longe, tão distantes que pareciam dois pontos lívidos entre o céu pálido e o mar ainda mais pálido e depois um dos pontos desapareceu. Depois disso, tudo se precipitou muito rapidamente, refiro-me ao que pudemos presenciar. Um esparramar de água, um pequeno esguicho de água branca, mais branca do que a que está à volta, e depois mais nada. O mundo indiferente a fechar-se”.  (pág. 154).
Esse primeiro encontro com a morte deixara o jovem Max aturdido: “quais eram os meus sentimentos? Creio que o sentimento mais forte era de pavor, pavor de mim próprio, pois tinha conhecido duas criaturas vivas que agora, subitamente e assombrosamente, estavam mortas, Mas acreditaria eu que estavam realmente mortas? No meu espírito pairavam suspensas num vasto espaço luminoso, de pé, com os braços enlaçados e os olhos muito abertos, olhando gravemente à sua frente os abismos infinitos da luz”  (pág. 155)
Só quando a filha de Max o vem buscar à Casa dos Cedros depois de sofrer um grave traumatismo craniano na sequência de uma bebedeira, que o levara a ser encontrado inconsciente à beira-mar, é que o leitor percebe que Miss Vavasour, a sua anfitriã, é Rose. Ela contara-lhe, entretanto, que os Grace pouco tinham sobrevivido aos filhos: Carlo sucumbira a um aneurisma e Connie a um acidente de viação. Essa mesma Connie, que o jovem Max não compreendera ser o verdadeiro foco da paixão de Rose, como já tinha sido da dele próprio.

sexta-feira, outubro 28, 2016

(DIM) Tão solitários, tão dependentes do mundo digital

Há onze anos o «Crash» de Paul Haggis conseguiu o Óscar do melhor filme graças a um argumento construído segundo a lógica do mosaico: diversas personagens, que seguem percursos paralelos até se encontrarem mais tarde ou mais cedo na sequência das respetivas ações. Desde então o recurso a essa estratégia narrativa, apesar de tudo bastante mais antiga do que esse exemplo, passou a ser utilizada exaustivamente por outros argumentistas como modelo a imitar.
«Disconnect», rodado em 2012 por Henry Alex Rubin segundo argumento de Andrew Stern, é um exemplo paradigmático desse género de filmes. Agarram-se em doze personagens infelizes com as respetivas vidas, sujeitam-nos a infernos ainda mais desesperantes e, no fim, vemo-los encontrar alguma luz ao fundo do túnel, quando as crises em que mergulharam parecem ter encontrado a catarse possível.
Há uma repórter numa estação televisiva local, que imagina-se já na CNN à conta de uma reportagem em que se infiltra no mundo da pornografia infantil. Os louros provisórios dão lugar a problemas com o FBI e com o empregador, sem conseguir sequer livrar desse beco sem saída o rapaz, que lhe servira de cobaia. Pelo contrário ele despede-se com a raiva de ter tido nela, não a confidente maternal por que ansiara, mas a traidora, que quase lhe fizera perder o frágil sustentáculo em que sobrevive.
Há um par de miúdos, que se diverte a fazer partidas a outros com a parvoíce própria da adolescência. Mas, quando a brincadeira se transforma numa forma de bullying, que atira com a vítima para uma tentativa de suicídio de efeitos provavelmente irremediáveis, é o inferno pessoal que têm por garantido, porque não só são descobertos pelos pais, como os veem bater-se por dores, que eles próprios provocaram.
E há, ainda, um casal incapaz de comunicar desde a morte do filho, ainda bebé. A internet serve-lhes de refugio, ele para jogos de cartas a dinheiro e ela para conseguir conversar num chat com quem vive luto igualmente doloroso. Por um ou por outro há quem lhes roube toda a informação sobre os cartões bancários e os espolie do escasso dinheiro, que têm. A vingança sobre quem lhes dizem ter sido o culpado parece ser a forma de começarem, enfim, a comunicar. Mas estão quase a cometer o crime, quando os avisam de serem tão vítimas dos autores da fraude, quanto a potencial vítima que pretendem matar.
No conjunto das três histórias, que se entrecruzam, temos famílias incapazes de comunicar e por isso vivendo cada um dos seus elementos estratégias distintas, mas sempre ineficazes, para combaterem a solidão. E se o melodrama se adocica perto do final não deixa de constituir alerta importante para quem usa e abusa do mundo digital sem se aperceber dos riscos a ele associados.

quinta-feira, outubro 27, 2016

(V) «O Paraíso Radioativo» de Ben Lewis (I)

Após a experiência da ocupação alemã durante a 2ª Guerra Mundial, De Gaulle instituiu o princípio de não regatear esforços para que a França passasse a estar sempre na vanguarda do tipo de armamento existente em cada momento, o que significou o acesso à bomba nuclear.  Foi por isso decidido utilizar Mururoa, um atol paradisíaco do Pacífico, para os respetivos testes depois de umas experiências pífias no deserto do Sahara antes da independência da Argélia.
Em 2 de julho de 1966  a operação militar com o nome de código de «Alderaban» constituiu s primeira concretizada nesse atol da Polinésia francesa. Previamente tinham-se aí estabelecido três mil técnicos e cientistas, sem contar com outros instalados nas ilhas mais próximas.

Nessa altura a França não suspeitou o atentado, que preparava à sua imagem, porque criara-se a ideia de se tratar de uma região paradisíaca a ser preservada como tal. Tanto mais que a contaminação decorrente da explosão do engenho a algumas centenas de metros de altitude era enorme, razão porque, desde 1963, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos já haviam evoluído para explosões subterrâneas, tecnologia ainda inacessível aos cientistas franceses.
As imagens da época até nem correspondem às do tradicional cogumelo, porque o vento logo tratou de lhe dar formato bem mais irregular.
A 11 de setembro de 1966 os franceses fizeram explodir uma nova bomba de 200 quilotoneladas sob o nome de «Betelgeuse». De Gaulle visita então a Polinésia Francesa para enfatizar a importância do território como sede da organização destinada a dar ao país o carácter de dissuasão imprescindível para garantir a paz num mundo perigoso. E prometeu compensações, que permitisse desenvolver a colónia no seu todo.
De Gaulle assistiu a essa segunda explosão, dessa feita com um cogumelo, que ele classificou de «magnifico». A França conseguia assim mostrar-se equiparada à Grã-Bretanha e aos Estados Unidos, corrigindo a situação de menoridade criada durante a Ocupação e mesmo durante a subsequente Libertação.
Em 24 de agosto de 1968 ocorreu o terceiro teste, sob o nome de código «Canopus», e com uma bomba dez vezes mais potente que a anterior.
Populações de outros atóis próximos ficaram na zona contaminada, mas as autoridades apenas lhes propiciaram toscos abrigos do tipo agrícola, que apenas os «protegeram» simbolicamente, nada tendo sido feito para evitar a contaminação dos peixes das lagunas e das nozes de coco, que constituíam a base da sua alimentação.
Em 1971 explodiu a bomba «Encelade» com uma megatonelada, que transformou o céu numa única imagem totalmente branca. Uma vez mais, nos meses seguintes, as populações das ilhas próximas continuaram a consumir alimentos afetados pela radiação irradiada.
A inconsciência quanto aos perigos desses testes era tal, que houve quem ficasse contaminado por jogar ténis no terreno adjacente à pista de aviação aonde o aparelho incumbido de registar a  contaminação a grande altitude, foi lavado com água e uma espécie de gel. O escorrimento dessa mistura tóxica dirigira-se «inocentemente» para esse campo de recreio.
Igualmente afetados foram os mergulhadores da Marinha Francesa, que ocupados nas medições subaquáticas e que viriam a ter problemas de saúde graves passados poucos anos depois.
Em 1974, porém, um vice-almirante francês ainda garantia a inexistência de qualquer relação de causa e efeito entre os testes e os problemas de saúde que  não tardariam a revelar-se. As indemnizações ainda não estavam na ordem do dia...



(L) «O Mar» de John Banville (IV)

Aonde pertencemos? Em que sítio, de entre todos quantos conhecemos e frequentámos, é o que se ajusta ao momento de todos os balanços, aquele em que se olha para trás e perspetiva-se onde se acertou, onde se errou, onde eventualmente não poderíamos ter feito senão aquilo que fizemos?
Max Morden voltara para a terra natal tão só enviuvara da mulher, que sucumbira um ano depois de se declarar o seu tumor.
“Foi num fim de tarde como esse, a tarde de domingo em que vim para aqui ficar, depois de Anna ter finalmente partido. (…) Sentia-me inexplicavelmente mais leve, como se o anoitecer no gotejar e no escorrer do que tem de patético e falacioso, me tivesse libertado momentaneamente do meu fardo de mágoas!” (pág. 94)
Escusara-se, pois, a ficar na casa partilhada com ela durante as décadas de conjugalidade, mais ou menos tranquila, que com ela partilhara. Com algumas traições mútuas de permeio e um ódio aqui e além difícil de controlar.
A Miss Vavasour mostra-lhe o quarto, que se dispõe a alugar-lhe na Casa dos Cedros: “senti que andava a viajar há muito tempo, há anos, e chegara finalmente ao destino para onde, durante todo o tempo, sem o saber, me dirigia e onde devo ficar, já que é, por agora, o único lugar possível, o único refúgio possível, para mim.” (pág.100)
E, no entanto, aquela era a mesma casa onde Connie Grace nunca pudera imaginar-se como a primeira paixão do miúdo da aldeia, que vinha brincar com os filhos, que afinal se pusera a namoriscar Chloe numa sucessão de avanços e recuos determinados pelos caprichos dela e pelo espanto dele: “Aquelas semanas com Chloe constituíram para mim uma sucessão de humilhações mais ou menos arrebatadas. Ela aceitava-me com uma complacência desconcertante como se eu fosse um suplicante no seu santuário.” (pág. 105)
Só tantos anos depois, Max compreende qual o seu verdadeiro poder: “Estou convencido que ela foi para mim a verdadeira origem da autoconsciência. Antes, havia uma coisa e eu era parte dessa coisa, agora havia eu e tudo o que não era eu.” (pág. 107)
O seu tempo atual é de aprendizagem. Entregue a si mesmo não consegue habituar-se a essa nova realidade, que o faz sentir-se mais fragilizado:
“Presentemente, tenho de tomar o mundo em pequenas doses cuidadosamente rateadas como se estivesse a receber uma espécie de tratamento homeopático embora não saiba muito bem o que é que esse tratamento pretende remediar. Talvez esteja a reaprender a viver no meio dos vivos, a exercitar-me melhor dizendo. Mas não, não é isso. Estar aqui é apenas uma forma de não estar noutro sítio qualquer.  (Pág. 123)
Como outro paliativo bebe excessivamente., o que será determinante quanto ao que lhe ocorrerá no final do romance: “Já falei do meu vício de beber? (…) Bebo como uma pessoa que enviuvou recentemente - um enviuvado? - uma pessoa de escasso talento e de ainda mais escassa ambição, com a cabeça encanecida pelos anos, insegura e perdida, carente de consolo e das breves tréguas do esquecimento induzido pelo álcool”. (pág. 127)
Nesta altura do romance estamos prestes a chegar-lhe ao final, tema do próximo texto. 

(V) «Eu, Daniel Blake» de Ken Loach

Não sei quando se estreará entre nós o mais recente filme de Ken Loach, «I, Daniel Blake», ontem chegado aos ecrãs franceses e por isso merecendo do canal franco-alemão ARTE uma sessão temática dedicada ao realizador. Esperemos ter a oportunidade de, muito em breve, o vermos igualmente nos nossos cinemas.
Para o octogenário Loach este é um filme, que não deveria ter rodado, já que anunciara anteriormente a intenção de abandonar a atividade de cineasta. Mas a sua indignação com a «crueldade consciente» das políticas de David Cameron a respeito dos desempregados - cada vez mais abandonados à sua má sorte e pressionados a arranjarem um emprego onde ele é cada vez mais inexistente -, justificou a revogação da prévia intenção.
Tratando-se de um melodrama sem pudores de se mostrar maniqueísta, «I, Daniel Blake» é a resposta de Loach a um neoliberalismo capaz de simplificar os conceitos pelos quais tudo se analisa para melhor justificar os seus inaceitáveis fundamentos. Eficiente em ludibriar a opinião pública com o seu discurso mistificador, ele merece de Loach uma contrarresposta, igualmente, simples e eficaz, por suscitar emoções de indignação em quem a assume e pode sentir-se estimulado a sair da sua injustificada letargia.
De um lado temos desvalidos bondosos e solidários em contraponto a serviços de “apoio” a empregados já vinculados às “regras do mercado” e por isso apostados em hostiliza-los em vez de ajudá-los a encontrar soluções para os seus impasses.
Quando tivemos Mota Soares como ponta-de-lança do governo de Passos Coelho a idealizar a privatização da Segurança Social, era um cenário deste tipo o que se pretendia implementar.
Logo no genérico do filme temos disso demonstração, quando o protagonista, Daniel Blake se sujeita a um interrogatório patético por parte de uma inspetora desses serviços de apoio a desempregados: carpinteiro, que sempre descontara toda a vida para a Segurança Social e com todos os impostos em dia, pretendia apenas seguir o conselho médico que, face ao ataque cardíaco por ele sofrido num estaleiro de construção, o mandara pedir a reforma por doença. Agora, armando-se em médica, que o não é, essa inspetora obriga-o a levantar o braço esquerdo e a interroga-lo sobre eventual prisão de ventre, antes de dar-lhe o veredito: recusa da pensão de reforma e obrigatoriedade de provar regularmente a busca ativa de emprego.
A nós, que olhamos para tal cena, tudo parece reduzir-se a um sistema sádico, apostado em criar na vítima um pico de stress tal que, pela morte prematura, poupe o dinheiro por ele reclamado como um direito.
É num desses dias de comparência em tais serviços, que Daniel conhece Katie, uma mãe solteira com dois filhos, tão desesperada em encontrar forma de sobreviver que já até se predispõe a prostituir-se.
Temos, assim, um lumpemproletariado a quem só se atribui o direito da vergonha por ter caído tão abaixo na escala social, a serem contidos por vigilantes mal pagos, mas na primeira linha da expressão da agressividade contra os que se revoltam com inteira justiça.
Loach pretende demonstrar a perfídia de um sistema, que cria embates físicos entre os mais desfavorecidos , mesmo que os de um lado não tenham consciência, ou não queiram ter, de como são meros peões de uma disputa onde todos são comandados quem lucra obscenamente com a sua exploração.
Desde a inesperada consagração com a Palma de Ouro em Cannes, o filme tem tido bastante sucesso público, mas importa saber até que ponto ele consegue, de facto, ser útil ao despertar dos abúlicos, de forma a fazê-los atuantes no desacorrentar da sua opressão e humilhação.