quinta-feira, janeiro 31, 2019

(DIM) «A Mosca II» de Chris Walas (1989)


Nos muitos anos de deambulações oceânicas foram-se acumulando em casa muitas videocassetes com filmes e programas, que as televisões iam apresentando, e consideradas como suficientemente interessantes, ora serem vistas a bordo no embarque seguinte, ora para apreciar em casa durante o período de férias. Vinte anos passados sobre o meu último desembarque - aconteceu ao largo de Durban, com uma baleia a acompanhar a lancha que me trazia para terra, como se fizesse de guarda de honra à minha despedida da vida marítima! - ainda tenho por descobrir muitos dos tesouros nelas escondidos nos milhares de registos, que não voltaram a ser mexidos desde o momento da sua gravação.
Meses atrás dei assim com um filme de Inês de Medeiros e de Yves Peretti sobre Lisboa, realizado há quase vinte anos e que, confessando a atual munícipe de Almada não o ter, tive todo o gosto em lho fazer chegar. Desta feita, e sempre na lógica de ver os conteúdos e dissociar-me depois dos respetivos suportes, dei com «A Mosca 2», filme rodado há trinta anos por Chris Walas, assumindo-o como sequela do que David Cronenberg assinara três anos antes. A diferença entre a versão I e a II é, porém de tomo: embora ambas repliquem as que Kurt Neumann realizara originalmente em 1958 e 1959, Cronenberg reinventara a história e integrara-a, coerentemente, nos temas obsessivamente abordados em toda a obra anterior e na que a este título sucederia. Pelo contrário, Chris Walas não revelaria outra preocupação senão preparar os espectadores para as cenas de terror da última parte do filme, quando Martin Brundle se metamorfoseia em inseto e causa sangrento massacre no laboratório do dr. Bartok.
Como de costume o cientista, que cumpre o papel de vilão, não olha a meios para levar por diante a experiência científica, que o pode tornar célebre e milionário, acabando por ser merecidamente castigado. Curiosamente na altura da estreia do filme ninguém parece ter reparado, que a cientista Beth Logan, ao apaixonar-se pelo protagonista, não se inibe de levá-lo para a cama, tendo ele cinco anos de idade, muito embora os cromossomas lhe tivessem propiciado crescimento inusitado para o senso comum. De qualquer forma, numa altura em que os polícias das atividades de alcova andam de rédea solta, por certo não deixariam de reclamar contra o filme, se ele tivesse agora a sua estreia, tendo em conta a explicita relação pedófila.
O valor do filme é, pois, muito fraquinho, não suscitando a curiosidade que a versão do final os anos 50 decerto suscitaria com maior sucesso.

quarta-feira, janeiro 30, 2019

(PtE) Uma realidade muito para além da imaginada


Segundo os astrónomos são mais frequentes os sistemas planetários com duas estrelas enquanto referentes orbitais do que os similares ao nosso, apenas com o Sol a servir-nos de centro. Nesse sentido, quando George Lucas imaginou como seria o cenário de nascimento da família Skywalker em «Guerra das Estrelas» - no planeta Tatooine em cujos céus brilhavam duas estrelas - fez coincidir a imaginação com uma realidade muito comum na parcela de universo, que nos é acessível com os telescópios mais potentes e com o que segue a bordo da sonda espacial Kepler. O único senão na verosimilhança da história reside no facto de, em todos os sistemas binários investigados até agora, só se terem encontrado grandes planetas gasosos, porque os outros, os mais pequenos e rochosos, semelhantes à Terra, parecem não ter condições para se formarem. Ora, a vida só parece possível de despontar nos que possuem essa característica, por neles existir a imprescindível água em estado líquido.
Há, porém, a considerar que a Ciência tem por regra a relatividade dos seus enunciados, só se aceitando como verdadeiros, enquanto prova em contrário não surge. Daí que não seja de excluir essa coincidência entre o que Lucas imaginara e o que a Astronomia detetará no futuro. Até porque - e essa é a razão maior para encontrarmos um entusiasmo superlativo nos que se dedicam ao estudo do Universo! - as descobertas dos últimos anos vêm demonstrando que as realidades com elas relacionadas vão muito para além do que o mais engenhoso escritor de ficção científica pudesse ter antecipado. E até há já quem imagine a existência de uma outra estrela a formar um sistema binário com o Sol, mesmo que muito distante. Mas ainda assim, suficientemente próxima para explicar alguns dos desvios orbitais, que os planetas mais afastados da Terra, apresentam, quando equacionados em função da atração gravitacional daquele.

(DL) No meio de tal tragédia, quem eram os verdadeiro selvagens?


A Literatura mundial é rica em romances denunciadores do sofrimento de crianças e adolescentes em pensionatos, aonde se veem coercivamente internados sem que haja quem lhes venha em socorro. Em quase todos surgem padres e outros «educadores», que revelam um pendor sádico na forma como contra elas exercem repelente violência, surgindo, em contraponto, a solidariedade entre as suas vítimas.
Nesse sentido o romance da canadiana de expressão francesa Nathalie Bernard nada traz de novo, mas o caso muda de figura ao sermos confrontados com a informação dela ter-se inspirado nos pensionatos criados para albergarem crianças ameríndias, da tribo dos algonquinos, a quem se pretendiam impor comportamentos, crenças e costumes da sociedade branca.
Na história de dois miúdos, que fogem da instituição depois de comprovarem a morte de Lucy, a sorridente amiga, que lhes iluminava dos dias, e recorrendo aos saberes herdados dos genes para escaparem à perseguição dos captores, está uma impressiva evocação dos crimes cometidos pelos que se arrogavam da capacidade civilizadora dos selvagens, e mais não eram do que os seus algozes.

terça-feira, janeiro 29, 2019

(AV) Cores exuberantes para intenções distintas


Olhando-se para «Baile no Moinho de La Galette» não se julgaria que Paris estivera a ferro e fogo cinco anos antes, quando a Comuna de Paris procurara derrubar um regime que, fraco perante os fortes, acabara de se curvar perante os prussianos e, ao invés, impunha à sua população uma existência miserável e ditatorial. Esse é o aspeto mais paradoxal, que fica desse quadro, porque Renoir toma como motivo a alegre e festiva convivência dominical, alheado das alternativas e sórdidas realidades, que, por essa altura, tanto motivavam os escritores realistas.
Renoir nunca revelará particulares inquietações sociais, escudando-se numa estética influenciada pelas, então muito na moda, estampas japonesas, refletida na paleta muito colorida com que representa amigos, conhecidos e outros figurantes a dançarem e a conversarem ao som das mazurcas e das polcas, interpretadas pela orquestra que, sugerida ao fundo, consubstancia o ideário impressionista, de que esta obra se tornaria um dos principais títulos.
Diz-se que, concluído o quadro, Renoir começaria a sentir as poliartrites a condicionarem-lhe os movimentos dos dedos. Mas o desvio ao figurativismo mais ortodoxo nada devia a essa limitação física, que o não impediria de ainda produzir obra vasta e comercialmente bem sucedida.
Um século depois, outra artista, Niki Saint-Phalle também exploraria as cores mais luminosas para dar corpo a algumas das suas esculturas mais representativas, as Nanas, figuras redondas, matriarcais, que deveriam contribuir para a alavancagem do estatuto da mulher numa sociedade contra cujas desigualdades começavam a lutar. Integrando-se no movimento feminista da época, ela viria a radicar-se na Califórnia nos anos 90, quando lhe acabara de morrer o marido - o também artista Jean Tinguly - e os pulmões indiciavam os efeitos da utilização intensiva de um material tão agressivo quanto o é o poliéster.
Nesses últimos dez anos de vida, passados na região de San Diego, e continuando a ter em mente o Parque Guell em Barcelona, replica a criação de um novo espaço ao ar livre, no meio do qual distribui as suas obras mais recentes. Assim fizera em Itália com o Jardim dos Tarots e repete no Círculo Mágico da Rainha Califia, com estátuas-totens influenciadas pela simbologia da cultura ameríndia, que ela pretendia revalorizar.
Comparando as obras de Renoir e de Niki Saint-Phalle pode-se considerar que constituíram testemunhos vibrantes das épocas em que viveram, mas com ambições opostas quanto à intenção de com elas influenciarem os quereres dos seus contemporâneos.

segunda-feira, janeiro 28, 2019

(S) Arthur Rubinstein a interpretar o Concerto para Piano, opus 16, de Grieg

(AV) A modernidade disruptiva de Rodin


No cruzamento das avenidas Raspail e Montparnasse, em Paris, encontra-se a estátua de Balzac, que tanto escândalo causou quando o escultor a apresentou pela primeira vez, em 1898, no salão do Champ de Mars. Quem, por pressão de Zola, lha havia encomendado - a Societé des Gens de Lettres - logo se escusou a recebê-la, argumentando que não homenageava o autor de «A Condição Humana», antes o denegria com essa simplificação das formas, a aproximá-la da abstração, e com a volumosa cabeça a aparentar um ser disforme, que consideravam nada ter a ver com o modelo real.
Bem tentaram os amigos - quase todos pertencentes aos que, por essa altura, lideravam a defesa de Dreyfus - defender essa opção estética e organizar uma subscrição, que pagasse o trabalho, que o cliente original se escusara a ressarcir, mas o escultor recusou a oferta e resguardou a obra no seu ateliê, donde só sairia cinquenta anos depois, altura em que foi feita a fundição do modelo em bronze e exposta novamente á apreciação pública.
Os conceitos estéticos muito haviam mudado nesse meio século: quando Rodin criou aquela que seria a sua obra mais original, a escultura ainda era a expressão artística, que menos mudara em função da transformação em curso desde que a Revolução Industrial impusera novos ritmos, modas e pensares. A pintura conhecera uma sucessão de estilos, alguns deles dentro do mesmo ideário impressionista. A fotografia, primeiro, e o cinema depois, desafiavam para novas formas de olhar a realidade. E a literatura, com os realistas, trazia para a ribalta o difícil quotidiano das classes desfavorecidas. Não admirava que fosse Rodin, também delas oriundo, a protagonizar esses ventos de mudança na arte em que escolhera expressar-se. Quando, aos 23 anos, esculpira «O Homem do Nariz Quebrado», inspirara-se precisamente num tal Bibi com quem costumava cruzar-se no bairro em que vivia, acentuando-lhe a barba, as rugas e o singular apêndice, que lhe serviria de título. A exemplo do que sempre intentaria, a obra sugeria reflexões, que coincidiam com as obsessões do artista com o curso do tempo e os efeitos por ele suscitados no que se deixava fixar num breve instante.
Não admira que, a exemplo da obra dedicada a Balzac, esta escultura, apresentada trinta e três anos antes ao Salon, viu-se liminarmente rejeitada.

(DIM) «Ninguém é santo» de Neil Jordan (1989)


Olha-se para o genérico deste filme rodado há trinta anos e encontram-se nomes estimáveis - Neil Jordan na realização, Phillippe Rousselot na fotografia, Robert de Niro, Sean Penn, John C. Reilly, Demi Moore ou Bruno Kirby  como intérpretes - justificativos de nele se investirem quase duas horas na expetativa de se tratar de algo merecedor de alguma atenção.
De início pensa-se na possibilidade de remake daqueles filmes dos anos dourados de Hollywood em que um Bogat fugia da prisão e, ruim como as cobras, tudo fazia para lá não voltar. Porque é disso que se trata: aproveitando a fuga de um condenado à morte, ocorrida no momento em que o estavam a sentar na cadeira elétrica, dois estarolas - Ned e Jim  - acompanham-no, mas logo dele se afastam, procurando abrigo num mosteiro onde assumem ser dois famosos teólogos, que ali são esperados para a procissão anual da sua milagrosa Virgem das Lágrimas.
Retomando a histriónica gestualidade, que antes lhe conhecêramos em «O Rei da Comédia», De Niro é tudo menos convincente nos equívocos suscitados pelo desfasamento entre o que é o que deveria aparentar ser. Sean Penn, ainda muito novo, serve-lhe de compère, sem salvar um argumento, que depressa se sente não ter ponta por onde se lhe pegue, resumindo-se às tentativas do par de fugitivos em atravessar a fronteira para o Canadá ali à distância de umas centenas de metros, sem nunca ultrapassarem os obstáculos, que lhes coartam as intenções.
O mais singular é a sugestão homossexual da atração entre Jim e um jovem monge a quem se junta no final, decidindo-se pela vida monástica como alternativa à delinquência, que até então lhe marcara o percurso. Pode-se depreender o tipo de animação, que preenche aquela vida santificada!
Como balanço não se estranha que, comercialmente, o filme tenha constituído um fracasso, só recuperando, em receitas de bilheteira, metade do que nele fora investido...

domingo, janeiro 27, 2019

(S) De manhã - o início de «Peer Gynt» de Grieg

(PtE) Dançar, aqui estar, respirar


1. Numa das suas crónicas, Tolentino Mendonça escreve sobre uma coreógrafa francesa, Nadia Valori-Gauthier que, desde o atentado ao Bataclan em 2015, regista diariamente um minuto dedicado à dança. Trata-se de uma performance singular, captada nos mais diversos cenários, e que pretende saudar a vida no que de único contém. Ela vê nesse ato artístico um modelo de resposta a Nietzsche, segundo o qual se deveria dar como definitivamente perdido o dia em que não se tivesse dançado pelo menos uma vez. Ora ela dança, dança, dança, não se cansa de dançar. E eu, que sou um pé de chumbo com pergaminhos antigos de dolorosas pisadelas em quem comigo arriscou dançar, só posso admirar a beleza de movimentos, concebidos como expressão de repúdio aos que, em nome de inomináveis crendices, condenaram quem desconheciam a perderem definitivamente o usufruto dos dias...
2. O rosto, as mãos e os olhos de Jorge Molder constituem a matéria sobre que fundamenta um dos mais singulares percursos artísticos da nossa contemporaneidade. Perante as enormes fotografias em que lhe admiramos a plasticidade das mãos, a expressividade do olhar, ou as marcas que a idade lhe foi acentuando no rosto, interrogamo-nos sobre o sentido do que vemos. O que nos quer transmitir o artista, que nos chega a incomodar, quando fixa a câmara e coincide com o cruzamento do nosso olhar?
Será natural, que a sua subjetividade não coincida com a nossa, por serem diferentes os vivenciares e as inquietações. Pessoalmente faz-me refletir sobre o imparável tempo, que consigo tudo leva. Como na canção do Léo Ferré. Mesmo se registados os efémeros instantes em que uma objetiva se fecha e deixa perenizada a corporalidade de quem aqui terá vivido.
Nesse sentido, e embora, se trate de projeto diferente, como não associar Molder à recém-desaparecida Helena Almeida, que nos deixou inesquecível testemunho da sua desesperada vontade de respirar?

(DL) Pode-se adivinhar a morte a prazo da Literatura?


Muito interessante, como quase sempre sucede, a crónica de António Guerreiro na edição do «Ípsilon» desta semana por  considerar chegada a hora do que Goethe designou por «Literatura Mundial», ou seja, uma escrita criativa já não subordinada às idiossincrasias identitárias de cada cultura, mas a uma espécie de cânone global, quer na língua (até ver o inglês), quer nos conteúdos. Nesse sentido o mais recente romance de Michel Houellebecq  - «Serotonine» - corresponderia a essa realidade, porque, tão-só lançado, logo se viu objeto de sinopses e de análises por prestigiadas publicações dos vários continentes. E, no entanto, nenhuma delas a afiançar que se pudesse tratar de um romance com mérito.

De entre as questões, que Guerreiro lança, há a das traduções, que me parece particularmente sugestiva, porque a lógica do «traduttore, traditore» faz todo o sentido. Nunca tentei ler uma das traduções de Saramago em inglês ou francês, mas acredito que muito dificilmente nelas encontraria o que me seduz  no estilo do autor: uma construção das frases com inserção de juízos ou questões filosóficas de permeio, uma certa musicalidade do texto quando lido oralmente, uma diluição pragmática entre diálogos e narração com recurso a uma pontuação reduzida ao mínimo. Quem poderá dizer que um romance numa língua se mantém fiel a si mesmo, quando vertido para outra completamente diferente?
O risco que a afirmação dessa tal Literatura Mundial comporta é o da sua extinção a prazo. Porque essa globalização linguística e dos temas abordados tenderá a reduzir os romances não integráveis nesse novo cânone como aberrações ostracizadas pelo mercado de comercialização do livro e pelo gosto dos seus leitores. Numa réplica do que são os movimentos sociais, as minorias enfraquecidas não conseguem evitar o seu inevitável esmagamento. Mas, paradoxalmente, Guerreiro, prevê que o sucesso dessa tal Literatura Mundial alberga em si o estigma da sua própria extinção porque o que se enquadra na criatividade artística sempre carecerá de novidade, de rutura com o que antes existia, razão porque o vitorioso padrão  logo se verá por sua vez derrubado. Para fazer sobressair o quê? Guerreiro não o prevê, mas até pode nem ter nada a ver com a Literatura, então definitivamente declarada como coisa morta num tipo de sociedade, que lhe deixará de sentir a falta.

sábado, janeiro 26, 2019

(DL) «Keila la Rouge» de Isaac Bashevis Singer


Prémio Nobel da Literatura em 1978, Isaac Bashevis Singer escrevia em yiddish na linha da tradição dos maiores narradores de contos judaicos. Nascido em 1904 estava destinado a tornar-se rabino, replicando o percurso biográfico do progenitor, mas a sua vontade foi outra, a de se consagrar ao jornalismo e à literatura.
Em 1935, e perante a ascensão do antissemitismo à sua volta, abandonou Varsóvia e juntou-se ao irmão, Israel, já radicado em Nova Iorque. Encontra aí um ambiente propício para a sua cultura de origem, abundando filmes, peças de teatro e folhetins radiofónicos a terem nela inspiração. Com obra vasta, e amiúde adaptada ao cinema, Singer deixaria (quase) inédito um romance, que fora publicado em folhetins por um revista  - «Forverts» - de distribuição cingida aos leitores do yiddish.
A Stock acabou de lhe assegurar edição francesa, revelando um retrato sombrio da comunidade judaica de Varsóvia em vésperas da Primeira Guerra Mundial, quando, nos bairros mais miseráveis da cidade, ombreavam as ortodoxas escolas hassidistas e os sórdidos bordéis. A devota população estava obrigada a conviver com Max, um temível proxeneta, que abusava das raparigas e as enviava para os prostíbulos da América Latina. É ele quem, na festa do Kippour, viola Keila, a ruiva que é a protagonista do romance, e está casada com o influenciável Yarmy.
Prostituída, Keila enamora-se de Bunem, filho do rabino, a quem seduz, sem porém, o livrar do característico conformismo social, que o leva a não levar a sério o amor que ela lhe dedica. De alguma forma esse personagem, replica o próprio Singer que se dissociara da tradição e dos rituais, mas não se deixara convencer pela modernidade, colocando-se, perante Deus na condição de crente sem, porém, o pretender servir.
Vivia-se, então, sob domínio da Rússia czarista e antissemita, que impulsionava o desejo de exílio dos que ali se sentiam ameaçados. Keila e Bunem conseguem, então, mudar-se para Nova Iorque, palco das suas mais amargas desilusões. Ele sente-se estrangeiro num ambiente hostil em que a condição social não é revelada pela forma de vestir ou pelos comportamentos. E ela, que se sente profundamente judia, mesmo sem conhecer os fundamentos da fé, deseja voltar para Varsóvia por corroborar essa sensação de se ver rodeada de judeus que tinham deixado de o ser.
Egocêntrico e contraditório, Bunem não reconhece em Keila a vontade de se metamorfosear, condenando-os a não viverem um futuro, que estaria ao alcance de ambos. E nem Solcha, que fora sua namorada, e decidira dedicar-se exclusivamente ao militantismo anarquista, o consegue demover da pulsão suicida. Porque os silêncios de Deus convencem-no da impossibilidade de redenção.