domingo, julho 31, 2016

(O) O quarteto de cordas nº 2 de Janacek


(L) As concomitâncias entre o que se vive, o que se escreve e o que se lê

“Éramos tão diferentes, anos atrás, no limiar de tudo. Olhávamos para os adultos e o seu pobre mundo com a certeza de que encontraríamos outros significados, outros modos, outros sentimentos. Afinal a diferença era só a expectativa que sempre habita os jovens. Como dizer-lhes, ao marido, ao amigo: olhem, o tempo da expectativa possível passou, a nossa vida é isto, já somos grandes, já chegámos ao nosso destino, e afinal não há mais nada, nada…”
Este trecho que encontramos na página 183 de «Chão Salgado», livro de Isabel Barreno, dá-nos a chave para um melhor entendimento de uma obra, que transita entre o quotidiano de uma escritora em part-time e o romance, que se esforça por construir.
É também o testemunho de uma geração, que viveu durante muitos anos no fascismo, criou ilusões de Utopias desmentidas pelas realidades e, chegada à maturidade viu-se sem grandes sentidos para justificar a própria existência. As relações familiares são insatisfatórias (com o marido), desagradáveis (com a sogra) ou inquietas (com o filho acometido de crises de epilepsia) e a escrita funciona como uma forma de, através de personagens fictícias, encontrar soluções para as angústias do dia-a-dia.
Poderia haver outras soluções e esses alter egos até as procuram num livro - o do Velho - mas nenhum traz as panaceias para esse permanente estado de desprazimento. Trate-se da Bíblia ou do Capital.
Lembrando o poema de Drummond, se chegou a haver festa, ela há muito se finou, deixando à deriva os que a teriam desejado permanente. Por isso a narrativa criada por Graça é confusa, desestruturada, esforçando-se ela por lhe encontrar o fio condutor da coerência. Que só encontra quando a ajusta em cada um dos seus momentos com os por si vividos durante essas semanas.
É esse o interesse maior deste título de Isabel Barreno: por muito que conflitue com a nossa intrínseca condição de leitores apostados em encontrar nas prosas alheias as próprias chaves que nos ajudem a desenlear os nossos próprios novelos.

(V) Bosch adivinhado à distância

Não fossem os rigores estivais, que quase nos tiram o fôlego com a falta de ar das temperaturas à beira dos 40ºC, e valeria a pena ir a Madrid ver a exposição promovida pelo Museu do Prado para revelar as obras do pintor flamengo Hieronimus Bosch. Mas outro motivo dissuasor de tal hipótese está nas filas de visitantes, que testam a sua paciência até chegarem às bilheteiras.
Num artigo interessante publicado no «Libération» de dia 29/7, coloca-se a questão de se distinguir um quadro verdadeiro de um falso, trabalho rigoroso de análise promovido pelos historiadores de arte inseridos no Bosch Research Project.
Segundo Frédéric Elsig a análise não se cinge aos raios X ou à do tipo de madeiras, que servem de suporte às telas. Na forma como estão representadas as orelhas das personagens ou os incêndios em segundo plano, é possível distinguir o que foi obra de Bosch ou de um dos seus seguidores ou imitadores. Nesta altura estão validados como autênticos apenas vinte e um quadros e vinte desenhos.  Alguns dos que chegaram a ser-lhe atribuídos foram afinal criados pelos assistentes, que lhe davam apoio no seu atelier.
O verdadeiro nome de Bosch era Hieronimus Van Aken e o pseudónimo explica-se como sendo o sufixo do nome da terra onde nasceu entre 1450 e 1455.  A morte ocorreria em 1516, razão porque se comemora este ano o sexto centenário de tal desiderato.
Conhecido como pintor extravagante teve grande sucesso em vida, sendo muito apreciado, copiado e imitado. No século seguinte houve quem o dissesse apostado em ver os homens a partir do respetivo interior em vez do seu lado de fora, dando suporte artístico às preocupações moralizadoras da Contra-Reforma. «O Jardim das Delícias» mais não seria do que a representação dos vícios, que deveriam ser duramente reprimidos.
Na realidade Bosch criara o quadro com base numa interrogação teológica: “o que teria sido o mundo se o homem não tivesse pecado?”
Trata-se, pois, de uma Utopia, um mundo extraordinário onde os homens e as mulheres entregavam-se aos prazeres sem quaisquer reservas morais. Só que o painel da direita ilustra o inferno em que se convertera o presente com todos os objetos artificiais, que ganharam estatuto de imprescindibilidade: as armas, os instrumentos musicais, etc.
Não havia, pois, nenhum propósito moralizador no tríptico até por ele ter sido encomendado por Henrique de Nassau, que fizera construir no seu palácio uma cama para trinta convivas sempre disponíveis para festas boémias muito bem regadas.
Apesar desse sucesso efémero, Bosch cairia no esquecimento até voltar a ser revalorizado a partir da segunda metade do século XIX.
Para Elsig ele “é um pintor mais problemático do que outros por ter misturado no tempo um conjunto de obras muito heterogéneas com base na iconografia”. E não faz sentido  vê-lo como um precursor do movimento surrealista como o pretenderam alguns dos parceiros de Breton,  pois mais não fez do que corresponder à evolução do gosto artístico da época, decidido a romper com os rígidos códigos artísticos praticados até então.

sábado, julho 30, 2016

(L) O romance mais recente de Jonathan Franzen

Jonathan Franzen é um dos mais destacados escritores norte-americanos dos nossos dias, apesar de ter-se formado em geologia, e chegando a ser um dos assistentes-investigadores da Universidade de Harvard. Mas, desde 1988, a opção pela literatura tornou-se irreversível, estando publicados em português quatro dos seus principais títulos: «Correções», «Liberdade», «Zona de Desconforto» e «Purity».
Neste último romance a protagonista é uma jovem estudante a contas com um dos problemas mais naturais na sua idade: o custo das propinas, que a endividam. Inquieta-a, igualmente, o sentir-se desconhecedora de si mesma, situação que acredita ultrapassável se conhecer a identidade do progenitor. Algo que a mãe, uma mulher de pose aristocrática, mas sem cheta, se escusa a desvendar.
Porque encontra razões para acreditar que uma associação alternativa sedeada na Bolívia - o Sunshine Project - lhe pode dar essa resposta, ela apresta-se a mudar-se de armas e bagagens para a América Latina. Mas o líder desta é um alemão tão carismático quanto narcisíaco e cujo segredo se revela pífio.
Pip acaba por se ver num mundo marcado pela Guerra Fria e pela queda do muro de Berlim, pelo aquecimento climático, por Julian Assange e pela ambiguidade dos que propagam alertas, com terrorismo e armas nucleares à mistura.
Franzen associa intrigas ao longo de vários períodos históricos e continentes para criar uma narrativa consistente capaz de manter preso o leitor à leitura e rejeitando os propósitos mais inovadores, que definiam a vanguarda como a forma de complicar uma história simples dando-lhe a máxima complexidade. Mas a crítica não se revelou particularmente entusiasmada com tão ambiciosa obra, continuando a preferir-lhe as anteriores do autor.

(V) Não há bem que sempre dure

E isso ajusta-se a «Penny Dreadful», cuja produção foi dada por terminada ao fim de três temporadas, apesar de ter sido concebida a partir do rico alfobre dos romances fantásticos da Inglaterra do século XIX.
Acaso John Logan, o criador da série, pudesse prosseguir com o seu projeto, optaria muito provavelmente por associar ao seu universo o que Lovecraft criou na primeira metade do séc. XX nos Estados Unidos. Porque o que esteve em causa nos vinte sete episódios foi a mítica luta entre o Bem e o Mal, de acordo com a vulgata católica. Não é por acaso que na cena crucial o derradeiro episódio, tudo se resolve com um «Padre Nosso«-
Tal como Nina na primeira temporada, Vanessa Ives sucumbe à atração das criaturas da noite, embora consiga dar-se ao sacrifício redentor, quando o Amor lhe surge como alternativa solar à anterior aceitação do abismo.
Nesse sentido uma continuação dispensaria o desempenho de Eva Green, que foi  um dos rostos mais expressivos de toda a série. Mas talvez reencontrássemos Dorian Gray a contas com a imortal solidão  numa casa enorme cheia de retratos, ou Victor Frankenstein, porventura mais cauteloso perante a possibilidade de ressuscitar quem já morreu. Também Jekyll, subitamente investido na condição de Lord Hyde,  ou essa Drª Seward, cujas práticas psiquiátricas envolvendo hipnose tanto contribuíram para a resolução definitiva da intriga. Mas os mais prováveis protagonistas de uma quarta temporada, de que nos vimos privados, seriam sempre Sir Malcolm, enfim liberto dos seus fantasmas familiares, Ethan porventura mais capacitado para controlar os ímpetos revelados nas noites de Lua Cheia ou a audaz Catriona, que foi aqui induzida para substituir Vanessa como principal papel feminino.
Haveria, igualmente, a curiosidade por quanto viria a suceder com as criaturas concebidas por Frankenstein: quer Lily, quer Caliban, conseguiriam resgatar das vidas passadas a tal alma de que se tinham sentido despojados? Nunca o saberemos, mas fica-nos a recordação de uma das séries mais bem concebidas e desenvolvidas dos últimos anos tendo por tema os do género fantástico.

sexta-feira, julho 29, 2016

(V) Um produto destinado a fazer consumir pipocas

Pode-se ter visto um filme há dois dias e já nem quase sequer nos lembrarmos da história nele contada? Sim, se ele for o paradigma daquelas produções feitas para adolescentes acéfalos, que se empanturram de pipocas e de coca-cola enquanto as imagens desfilam à sua frente num ecrã onde tudo parece “fantástico” ou “espetacular”!!!
Predispus-me a dar atenção a «Tomorrowland» por conter George Clooney no elenco, que me garantia poder tratar-se de obra asseada. Porém, quando deparei com o símbolo da Disney no genérico e com as imagens iniciais a evocarem o kitsch dos anos 50, concluí tratar-se de um daqueles filmes, que interessam aos distribuidores mais pelas receitas nos seus bares do que pelo dinheiro dos bilhetes em si mesmos. Até porque, tendo em conta a capacidade de fabricar efeitos especiais apenas por meios informáticos uma produção deste tipo acaba por não se revelar tão dispendiosa quanto outrora, onde se teriam de investir verbas chorudas em cenários e estardalhaços pirotécnicos
Temos, então, o confronto entre o engenho humano e a ameaça de distopia provocada por um personagem perverso ao estilo de Mabuse de Fritz Lang, que consegue manipular as consciências com as mensagens subliminares induzidas nas mentes coletivas. Clooney é o misantropo, que vive as frustrações do passado no seu eremitério, mas disposto a dele sair para ajudar uma adolescente rebelde e uma replicante em conflito com o seu Criador a derrubá-lo.
Faltando menos de dois meses para o planeta conhecer o definitivo Apocalipse os três salvam-no mediante a receita do costume: quando tudo parece definitivamente perdido, é quando tudo se recompõe e se salva. Assinale-se, ainda assim, a primazia de dois dos papéis principais caberem a personagens femininos. Algo vai lentamente mudando no cinema mais mainstream. 

(L) O que nunca se saberá (1)

Na edição de julho da «Science et Vie» o tema de capa é o que a Ciência nunca conseguirá descobrir. O que não corresponde a uma admissão de derrota perante questões absolutas, mas o estímulo para nelas encontrar aproximações sucessivas de respostas.
No dossiê o primeiro limite enunciado é o cognitivo: por muitos exames que se façam à atividade cerebral de alguém nunca se conseguirá concluir se ama efetivamente quem diz amar. Ou seja, o que é “sentido” não se pode traduzir em medições quantitativas dos estímulos detetados em áreas específicas do cérebro. Até por essas medições, mesmo quando idênticas em indivíduos distintos, correspondem a gradações diferentes das tais “sensações”.
O segundo limite é o da lógica e tem a ver com o teorema de Goddel, que defende a possibilidade de existência de contradição no principio matemático tido como mais axiomático. Por exemplo, no limite nunca conseguiremos ter a certeza de que 1 + 1 = 2, pois trata-se de algo semelhante ao paradoxo do cretense: serei um mentiroso quando digo que estou a mentir?
O terceiro limite abordado no texto está ligado às medidas e aos erros que elas provocam: podemos prever as condições meteorológicas com alguma fiabilidade para o período de alguns dias, mas nunca para além disso por se irem somando todas as influências, que tendem a conduzir um sistema ordenado para o caos.
É por isso que os astrónomos não poderão imaginar a posição dos planetas daqui a 60 milhões de anos, porque bastam as interações entre dois asteroides da respetiva Cintura, Céres e Vesta - para o posicionamento de Marte se alterar, e com ele todos os demais parceiros em rotação em torno do Sol.
Outro limite indesvendável para a Ciência é o do nosso antepassado universal, ou seja, dessa célula aventada por Darwin em 1859, que teria estado na origem de todos os seres vivos. Surgida provavelmente há 3,5 mil milhões de anos, recebeu o nome de Luca: Lost Universal Common Ancestor.
Tendo em conta que a árvore filogenética de todos os seres é uma rede inexpugnável de raízes e sem conduzirem a um tronco comum, esse objetivo revela-se inalcançável.
Há ainda a considerar o limite intelectual da Ciência: nunca se compreenderão que ultrapassa o nosso entendimento. Isso significa que as nossas capacidades cerebrais nunca conseguirão equivaler-se às da Inteligência Artificial apesar de, por agora, ela consistir apenas em operações de cálculo sem as capacidades da analogia, que delas nos distinguem enquanto seres humanos
Mas, mesmo que os avanços nesse sentido não produzam resultados permanentes, há quem avance os riscos delas tornarem-se tão aceleradas nos seus cálculos, que os seus conceitos de tempo se alarguem o bastante para só se tornarem compreensíveis noutra realidade espaço-tempo, que não a nossa...

quinta-feira, julho 28, 2016

(L) A Ficção narrativa como forma de introspeção

“Graça juntava estes bocados e não sabia ainda qual era a verdadeira mensagem que todos eles, juntos, expressavam. E se poderia dizer que ela falava da sua própria terra, isso também só era verdade num nível bastante superficial: por trás havia muitas outras terras, havia uma terra onírica, alienígena, forçando sua expressão própria através dela, Graça.” (pág. 91)
Quase a chegar a meio deste romance, «O Chão Salgado», que Isabel Barreno publicou há um quarto de século, torna-se cada vez mais evidente a pertinência do tema: até que ponto pode o escritor esconder-se nos seus personagens? Até que ponto eles não lhe servem de estímulo para se questionar a si próprio?
Graça inventa personagens femininos com nomes começados por G (Gracinda, Graziela, Gisela, etc) e masculinos em V (Valentim, Valdemar, Vicente) e vai-os fazendo encontrar-se e desencontrar-se ao ritmo das respetivas peregrinações. O antigo estivador, a quem uma mal explicada agressão tornou paranoico, ciranda de terra em terra com a submissa esposa, dizendo-se pregador, mas mais parecendo saltimbanco. E o jornalista, que ajudara a fundar um partido político, interroga as pessoas para lhes tentar conhecer as aspirações e opiniões.
Há, porém, Camila, a personagem que foge à regra pré-estabelecida pela autora e se fechara na casa-casulo a ler atentamente o diário da tia-trisavó, suficientemente louca para ter vivido uma gravidez histérica.
Por esta altura questionamo-nos se Graça estará a sentir os limites de uma relação conjugal e de uma condição maternal em que a felicidade parece ausentar-se.
É a escrita como modelo de catarse?

(V) «Outsider», um filme dollarista

A invenção é atribuída aos mexicanos: o género cinematográfico, que tem produzido tantos filmes nos últimos anos sobre os mercados financeiras e a falta de escrúpulos de quem neles enriquece, passou a ser conhecido como «dollarista».
Seria muito natural que os franceses rodassem um filme sobre Jérôme Kerviel, o corretor da Société Génerale, que dera milhões a ganhar à empresa, mas depois, tomado pelo frenesim de quem se sentia num autêntico casino, lhe causou perdas astronómicas. A tarefa coube a Christophe Barratier, que já conhecera enorme sucesso de bilheteira com «Os Coristas». Cabe-lhe o mérito de dar grande verosimilhança ao ambiente das salas onde se negoceiam as ações, com os escassos contatos entre quem nelas trabalha e a eletrostática dos ecrãs informáticos. Assiste-se à embriaguez causada pelas curvas dos índices e que cria uma sensação de violência permanente entre esses jovens brilhantes, a quem os bónus e as promessas de futuros compensadores os torna particularmente arrogantes.
Como se conhece bem a história, o filme depressa se torna monótono, porque não entusiasmam por aí além os planos dos atores a olharem para os ecrãs. Mas pode-se vê-lo como uma espécie de western em que os corretores avançam por territórios a desbravar, com mortos, catos, vilões e xerifes. E há aquela piada segundo a qual os que trabalham na banca gostam de ver os filmes pornográficos da frente para trás, porque preferem a versão em que é a rapariga a pagar pela relação.
Dentro do género, há decerto filmes mais interessantes como é o caso de «Margin Call» ou «O Lobo de Wall Street».

quarta-feira, julho 27, 2016

(L) «O Chão Salgado» de Isabel Barreno

Graça anda às voltas com a criação de um romance, em que as personagens femininas têm nomes começados pela letra g - Gracinda, Gabriela - e os masculinos por v a exemplo do marido Vítor - Valentim, Vicente.
Uma ida ao hospital com o filho adolescente leva-a a imaginar um estivador subitamente encontrado inconsciente numa rua junto ao porto e levado para o hospital. Aí, acossado por ideias paranoicas, e ajudado pela devotadíssima mulher, foge antes de lhe darem alta. Valentim julga-se perseguido por poderoso inimigo, que encontra aliados em todos quantos o rodeiam para melhor o controlar.
Quando Graça interrompe a história, Valentim e Graziela tinham encontrado abrigo num monumento em ruínas, cujos recuados proprietários haviam sido condenados à morte por traição. E aquele chão árido fora coberto de sal para nele nada mais frutificar.
Discutindo com amigos esta fase do romance, Graça reconhece que o marido da porteira era estivador, o que explicaria a escolha do seu personagem. Já o segundo par de personagens provem de outras influências: Gabriela é uma quinquagenária, que decidiu mudar-se da cidade para uma pequena vila à beira-mar e aí se enamora de um vizinho bem mais novo, que além de jornalista, fundara um pequeno partido político cujo programa é honrar os compromissos emitidos.
Há o fantasma do envelhecimento  e do correspondente desinteresse sexual a par de uma explicita crítica à «política politiqueira».
Mas, por essa altura, anda também Graça preocupada com a possibilidade de, através dos seus pensamentos, influir na realidade, mormente interrogando-se se o desfalecimento de Valentim no início do seu romance não prenunciou, (e até causou?) a crise epilética que lhe leva o filho ao hospital.
Vencidas as primeiras sessenta páginas do romance, ele é decididamente uma abordagem da conceção da obra e das influências nela implementadas pelos acontecimentos e pensamentos de quem a concebe.


(L) Um texto luminoso de Eduardo Lourenço

Os meus amigos mais chegados sabem-me determinado a fazer desta recente entrada na condição sexagenária a oportunidade para ler ou reler alguns dos títulos maiores da literatura mundial, retirando das prateleiras os livros de leitura sempre adiada pela falta de disponibilidade dos anos de múltiplos afazeres profissionais. Mesmo a decisão de manter um afastamento sabático da militância ativa - limitando-a a este esforço de contrariar nas redes sociais a predominância de opiniões de direita! - facilita esse encontro com Proust ou Joyce ou o reencontro com Thomas Mann ou Jorge Luís Borges. Para não falar da intenção de manter sempre Saramago, numa das suas muitas obras, como livro de cabeceira.
Por agora a opção de leitura mais exigente do que os meus bem amados policiais incide sobre a «Viagem à Índia» de Gonçalo M. Tavares, de que comecei por ler o texto luminoso de Eduardo Lourenço para o seu prefácio.
O grande ensaísta considera a Índia como um mito que o Ocidente sempre gosta de revisitar por ser “terra onde a realidade e o sonho se confundem»  e é porta aberta “para uma quietude capaz de nos curar do nosso demoníaco desassossego”. É que hoje vivemos num Ocidente “sem futuro utópico” e com uma sempre glosada “ausência de sentido”.
Eduardo Lourenço elogia na obra de Gonçalo M. Tavares a procura do “paradoxal enigma” da Índia, embora todas as viagens sejam sempre ”um regresso ao passado de onde nunca saímos”.
Por isso “todas as viagens são viagens à Índia” incluindo a deste Bloom transformado num Ulisses do século XXI, que parte de Lisboa em busca da sabedoria e do esquecimento.

(O) Rameau e a Teoria da Harmonia

Há uns anos a minha descoberta de Jean-Phillipe Rameau iniciou-se com este rondó da obra «Les Indes Galantes», que vemos aqui interpretada pela Magali Léger e pelo Laurent Naouri acompanhados pela Orquestra dos Musiciens du Louvre sob a direção de Marc Minkowski.
Tendo em conta que Rameau foi um dos grandes teorizadores da Harmonia na música, escrevendo até um Tratado a ela subordinado, este é um bom exemplo para nos determos nesse importante conceito, que esteve subjacente às composições criadas entre a Idade Média e o século XX, quando surgiram propostas atonais.
A preocupação com a Harmonia na música relaciona-se com a dos gregos da Antiguidade Clássica que visavam contrariar o caos do universo através de conceitos geradores da sua ordem. Por isso a Harmonia é a combinação de notas diferentes para criar um som agradável ao ouvido de quem a escuta. Na maior parte das obras os autores criam uma melodia principal facilmente reconhecível, combinando-a depois com outras melodias ou acordes, que servirão de acompanhamento àquela. 

(L) As Viagens Imaginárias de Manguel

Em jovem Alberto Manguel chegou a ser um dos contratados para ler para Jorge Luís Borges já então acometido de cegueira. Atualmente é diretor da Biblioteca Nacional da Argentina, depois de ter percorrido o mundo e escrito uma memorável ‘Historia da Leitura”, que fez dele o mais fiel discípulo do mentor pela cultura aí evidenciada.
Para o seu «Dicionário dos Lugares Imaginários», publicado há cerca de trinta anos, Manguel analisou milhares de textos venerados como «A Divina Comédia» de Dante ou “As viagens de Gulliver” de Daniel Defoe, ou até os mais esquecidos sobre aventuras anódinas. O projeto traduziu-se em imaginar um território e tentar acreditá-lo existente. Algo que satisfaz quem conserva algo de infantil, excitando-se com grutas desconhecidas, ilhas paradisíacas e sociedades apostas no amor em vez da guerra.
É que, desde as suas origens, os homens sentiram a pulsão de inventarem reinos e terras longínquas, que não tinham qualquer conotação com a realidade. Entre  «Ilíada» ou a «Odisseia» e «As aventuras de Robinson Crusoe» os exemplos são múltiplos e, muitas vezes, maravilhosos.
Muitas das primeiras viagens foram buscas impossíveis, com todos esses périplos a terem fundamentos mágicos e espirituais. No prefácio do livro, Manguel restitui à viagem o seu sentido utópico evocando Thomas More e Stevenson, de quem respiga esta frase emblemática: “Mais vale viajar com esperança do que chegar ao seu destino!”.
 São mundos imaginários legados por grandes sonhadores, mesmo que viajantes imóveis, os selecionados por Manguel para um novo volume da coleção «Bouquins» intitulado «Voyages Imaginaires». A sua escolha incidiu em seis autores, quase desconhecidos, que propõem outras tantas viagens surpreendentes como é o caso da «História dos Sévarambos» de Denis Vairasse, huguenote francês do século XVII amigo de John Locke e que imaginou uma sociedade desconhecida oriunda de um segundo casal do tipo Adão e Eva e cuja civilização desenvolvera-se nas costas australianas.
Há também a «Viagem a Icária» de Étienne Cabet,que tentou fundar uma colónia no Mississípi no século XIX, com a ajuda de quinhentas famílias europeias.
Charlotte Perkins Gilman assina uma utopia feminista intitulada «Herland», enquanto se deve a James DeMille «O Estranho Manuscrito encontrado num cilindro de cobre» sobre uma população imaginária, que preza a morte a e pobreza, vivenda na escuridão e fugindo da luz.
O fascínio do imaginário passa por estas mais de mil e trezentas páginas...


(V) A melhor maneira de filmar Miles

Está nos cinemas lisboetas o filme de Don Cheadle sobre Miles Davis e que evita o que de pior têm os biopics: a estereotipada via de mostrar como alguém saiu das suas circunstâncias originais, as do ambiente em que nasceu e cresceu, para alcançar a notoriedade devida ao seu talento. Nesse sentido costumo olhar sempre com desconfiança para aquelas legendas iniciais de muitos filmes, que afiançam tratar-se de uma “very true story”. Trata-se de vigarice certa.
A realidade muito raramente condiz com a estrutura narrativa dos filmes pelo que os argumentistas acabam sempre por a modificar de acordo com o ritmo ficcional necessário à criação da sucessão de expectativas e da sua progressiva resolução até ao desiderato final.
Don Cheadle considerou, e muito bem, que a obra de Miles Davis não se coadunava com tal cânone. É que, depois de se tornar num competente instrumentista dos mais clássicos standards do género, ele desestruturou-os com as suas propostas que configuraram muito do que se designaria como Free Jazz.  Por isso a vida de Miles é vista como um conjunto de momentos sem um fio cronológico: mais do que o homem, Cheadle está interessado em homenagear a sua obra.
É certo que a presença de Ewan McGregor no elenco só se justifica com a necessidade de criar um (inexistente na realidade) personagem branco, que facilitasse o financiamento de alguns investidores numa produção deles tão carecida. Mas, no essencial, Miles tem aqui um merecido tributo.