sexta-feira, outubro 31, 2014

LEITURAS: «1Q84» de Haruki Murakami (2º volume) X - Nem o Líder morre, nem...

Aomame lamenta a morte de Ayumi, mas à cabeça vem-lhe sobretudo a imagem de Tengo, ainda com dez anos, mas que nunca esquecera. Pelo contrário até lhe alimentara uma paixão muito idílica. É nesse estado de espírito, que se despede do apartamento, que ocupara nos últimos anos, para se dedicar à execução do que lhe tinha sido encomendado: a morte do Líder da seita Vanguarda. Para tal irá servir-se dos talentos de personal trainer para a ele aceder e golpeá-lo eficazmente no momento mais adequado.
Entra-se por esta altura numa daquelas partes do romance, que designaria como feita para «encher pneus».  Assim, todo um capítulo é dedicado ao encontro de Aomame com os guarda-costas do Líder, descrevendo-se pormenorizadamente como se viu revistada. Quer no corpo, quer na mala, nada lhe encontram e, no entanto, traz consigo o picador de gelo a utilizar no momento decisivo.
Quando, enfim, a levam ao quarto onde o Líder a espera, quase às escuras, temos longas páginas com ele a descrever-lhe os problemas físicos que o apoquentam, traduzidos numa deformação visual e em espasmos musculares. Ora são estes últimos os causadores de imponentes ereções, nas quais as púberes sacerdotisas se empalam na esperança de dele engravidarem. Nessa versão não se confirma propriamente a violação das raparigas, muito embora não deixem de se tratar de relações pedófilas.
Aomame vai orientando os exercícios musculares para que foi contratada e indicados para o alívio das dores do cliente. Mas, no momento crucial - aquele em que lhe deverá cortar o fluxo sanguíneo ao cérebro! -, intui que ele adivinha a razão de ser da sua presença  e até a insta a executar a missão. É que tudo quanto fazia era por se sentir refém do Povo Pequeno, desejando a morte como forma de libertação.
Por esses dias Tengo anda a sentir-se enervado com a solidão a que parece fadado. Komatsu envia-lhe uma carta em vez de lhe telefonar. Mas o marido da amante liga-lhe para o avisar do fim definitivo dos encontros com ela. E Ushikawa também lhe aparece a insistir para que receba a bolsa de três milhões de ienes sob o risco de sofrer consequências desagradáveis se insistir na recusa.
É para superar a crescente angústia, que decide visitar o pai, internado num lar longe de Tóquio. Embora o saiba acometido de grave senilidade, gostaria de ver respondidas as questões existenciais que o obcecam: que fora feito da sua mãe? Fugira com outro homem ou morrera? E quem era o seu verdadeiro pai?
No regresso á capital, ele conclui: “Este homem não é um invólucro vazio. Não é uma simples casa desabitada. É um homem de carne e osso que sobrevive como pode, algures neste pedaço de terra à beira-mar plantado, carregando às costas um espírito tacanho e obstinado, bem como as suas recordações sombrias. Vê-se obrigado a conviver com esse vazio, que se vai expandindo de forma progressiva dentro dele.” (pág. 168)

quinta-feira, outubro 30, 2014

ÉCRÃ: o momento e a forma de morrer

Será que devemos ter a liberdade de definir o momento e a forma como iremos morrer?
O debate está aberto atualmente em vários países, sendo conhecido o caso de uma doente terminal com um tumor no cérebro, que se prepara para morrer este fim-de-semana no Estado do Oregon, ou o  de um filme acabado de lançar em França sobre os últimos meses de vida da escritora Anne Matalon, que desejava igualmente um final à sua escolha.
Como noutros tipos de causas ditas fraturantes o debate conta de um lado com quem professa a liberdade de cada um fazer do seu corpo o que melhor lhe aprouver - tese com a qual inquestionavelmente me identifico - e a outra, a dos fundamentalistas normalmente associados às religiões monoteístas, que consideram a Vida em si uma realidade absoluta, justificativa da militância fascizante de quererem impor a outrem os preconceitos que lavram nas suas mentes.
«Le Moment et la Manière», o filme de Anne Kunvari, que teve de vencer tantos obstáculos para se estrear esta semana nos ecrãs franceses, conta como, após catorze anos de combate incessante contra o cancro, a escritora Anne Matalon acabou por falecer em julho de 2012.  Sem conseguir vencer as barreiras, que a impediram de decidir sobre a sua maneira de morrer.
O documentário é, por natureza, intimista e de uma grande ternura pela protagonista que teve a perfeita noção de, com o seu exemplo, ajudar a vencer uma das batalhas ainda por resolver e em que estão em causa as liberdades fundamentais devidas a cada um de nós, que vivemos numa sociedade supostamente democrática... 

quarta-feira, outubro 29, 2014

LEITURAS: «1Q84» de Haruki Murakami (2º volume) IX - A punição dos crápulas

No início do segundo volume Aomame visita a anciã que a costumava contratar para punir os violadores e outros perpetradores de violência doméstica. Encontrara-a penalizada pela forma brutal como fora morta a cadela de estimação e pelo desaparecimento de Tsubasa, uma miúda de dez anos, que acolhera na Casa de Abrigo adjacente à sua propriedade.
A nova encomenda consiste em matar o Líder da seita Vanguarda: “Como sabes, esse homem tem por hábito violar rapariguinhas de dez anos, que não tiveram ainda a sua primeira menstruação. Para justificar tais atos, inventou uma doutrina e aproveita-se da comunidade religiosa a que pertence, explorando ao máximo o seu próprio sistema. Mandei averiguar o assunto o melhor que pude e confiei a investigação a profissionais dignos de confiança, o que me custou mais do que o previsto. Não foi tarefa fácil. Isto para dizer que conseguimos, ao fim de muitas diligências, identificar quatro meninas que, tudo leva a crer, terão sido violadas por esse homem. A Tsubasa foi a quarta.” (pág.16)
Aomame começa de imediato a preparar-se para a nova missão ouvindo a Sinfonietta de Janacek e olhando para o céu aonde, estranhamente, continua a ver duas luas. Algo porém mudará em breve: a mudança de identidade e de residência tão só cumprido o homicídio previsto.
“Estava tudo pronto. Mentalmente encontrava-se preparada. Poderia abandonar o apartamento em qualquer momento, bastava que Tamaru desse sinal de vida. No entanto, a chamada telefónica nunca chegou a acontecer”. (pág. 77)
No entretanto também morre a polícia sua amiga com quem se acostumara a partilhar noitadas de sexo puro e duro com parceiros de ocasião encontrados em bares. Arriscando-se sozinha a uma dessas surtidas, Ayumi fora estrangulada num quarto de hotel, encontrando-se nua e algemada à cama.
Tengo, cujo percurso temos acompanhado em paralelo com o de Aomame, é visitado por um personagem sinistro, Ushikawa, que lhe vem oferecer uma bolsa de três milhões de ienes em nome de uma desconhecida Nova Associação para o Desenvolvimento das Ciências e das Artes do Japão. Por subentendidos deixa perceber que sabe ter sido ele quem reescrevera o livro da desaparecida Fuka-eri, ameaçando-o com a divulgação dessa fraude à imprensa.
Já em casa, Tengo senta-se na cozinha a beber chá frio e a pensar na rapariga, que escrevera a primeira versão de «A Crisálida de Ar»: “O que faria ela durante todo o dia, sozinha, encerrada no seu esconderijo distante? Mas, naturalmente, ninguém podia saber o que fazia Fuka-eri!
Na mensagem enviada em forma de cassete, ela tinha dito que a sabedoria e a força do Povo Pequeno poderiam causar danos, tanto ao Professor como ao próprio Tengo. Na floresta é melhor ter cuidado. Tengo olhou invariavelmente à sua volta. Sim, o coração da floresta era o mundo deles (pág. 55)
Confirma-se, entretanto, a ligação potencial entre Aomame e Tengo. Vinte anos atrás eles tinham sido colegas na escola primária, saldada com a primeira ejaculação dele mediante a masturbação.
Nunca mais ela lhe saíra do pensamento, impedindo-o de amar quem quer que fosse...

segunda-feira, outubro 27, 2014

ÉCRÃ: «Diana Vreeland: the Eye Has to Travel» de Lisa Immordino Vreeland (2012)

Confesso que a moda nunca foi propriamente a minha onda. Uma vez, por motivos profissionais, tive de assistir a um desfile e vi-me a adotar o olhar do antropólogo, que escalpeliza os comportamentos ritualizados de uma sociedade alienígena, em vez de apreciar as propostas dos criadores com a seriedade dos que ali iam acompanhando a passagem dos manequins.
Tenho de reconhecer que sempre encarei esse fenómeno com a mesma arrogância de um jovem deputado comunista, que desvalorizava ainda há pouco tempo o aquecimento global como arma de manipulação ideológica do sistema capitalista para pôr em causa a necessária industrialização da nossa sociedade. A minha lógica esquerdista apontava para a indústria da moda como a forma dos sistema alienar a juventude, e particularmente as mulheres, reduzindo-as ao papel de um título do cinema francês de há quarenta anos: «Sê bela e cala-te!».
Há uns quantos anos esse preconceito começou a vacilar. Primeiro com a coleção de design de Francisco Capelo, inicialmente descoberta no CCB e depois transitada para o MUDE. Posteriormente, com os museus Victoria & Albert em Londres ou o Metropolitan de Nova Iorque, qualquer deles com excelentes coleções dedicadas à moda.
Em suma: ainda estou longe de me imaginar anualmente a comparecer na Moda Lisboa - que continuo a ver com a mesma distância das Galas da SIC ou da TVI - mas já enquadro de bom grado a apreciação estética de muitos dos criadores desta área numa das vertentes da arte contemporânea.
É nesse sentido que vi o filme de Lisa Immordino Vreeland com uma grande curiosidade inicial e um progressivo espanto pela personalidade admirável da sua biografada. De facto, Diana Vreeland (1903-1989) correspondeu bem àquilo a que os norte-americanos designam como um «character». E que carácter!
Personalidade fora do comum, tão excêntrica quanto brilhante, ela reinou durante 55 anos no mundo da moda, impondo nele a sua noção de estilo e criando tendências, que revolucionaram o gosto de sucessivas gerações.
«The Eye Has to Travel»  não se limita a desenvolver o retrato íntimo de uma das mulheres mais excecionais do século XX, um verdadeiro ícone que mudou tudo quanto até aí eram os padrões da moda, da arte, do jornalismo e da cultura em geral.
Ela foi a principal redatora do “Harper’s Bazaar» entre 1936 e 1962, mudando-se depois para a «Vogue» até 1971. Em ambas as revistas foi genial como revolucionou a forma de olhar para o que deveria associar-se a uma perspetiva moderna da aparência feminina. E, quando os orçamentos começaram a minguar, tornou-se curadora do Metropolitan de Nova Iorque, organizando aí exposições de referência sobre o trajar em diferentes épocas da História da Humanidade.
Ela quis ser eternamente jovem até ao último dos seus dias. Por isso mesmo tanto admirou o vanguardismo dos Ballets Russes dos anos 20 como a música dos Beatles ou dos Rolling Stones na década de 60.
Até quando sofreu a perda do homem com quem esteve casada durante quase meio século a sua aposta consistiu sempre em olhar para o lado e fixar-se nos seus conceitos de beleza.
Este documentário realizado pela esposa de um dos seus netos não teme avançar com algum mimetismo para com o seu tema: nele se celebra a festa permanente das aparências sem dar qualquer importância ao lado obscuro desse mundo, que se traduz amiúde numa certa vampirização de quem o representa.
Mas, que importa? Com Diana Vreeland enfatiza-se o seu lado mais luminoso, aquele em que  o chique e o choque eram permanentes para se conseguir combater o tédio com sucesso. É que para Diana Vreeland a provocação também estava sempre na ordem do dia ou não fosse da sua lavra a expressão: “O bikini é a coisa mais importante desde a invenção da bomba atómica”. Porque, apesar de já ter chegado à condição de sexagenária, quando ele irrompeu na moda internacional, Diana já percebera como as inovações nas passerelles sempre anteciparam revoluções mais vastas nos comportamentos políticos e sociais das sociedades.
Foi a ela que se deveu a consagração de muitos criadores de moda (Yves Saint Laurent, Valentino) ou de top models (de Lauren Bacall a Twiggy ou a Marisa Berenson) sem esquecer a influência na indumentária de Jacqueline Kennedy de quem foi amiga.
Graças ao seu instinto impôs a sua extravagância, ideias inovadoras e o gosto pela experimentação. No fundo o documentário é uma magnífica lição da História do Século XX por uma perspetiva a que não estávamos habituados e com imagens de arquivo e testemunhos até agora inéditos. 

COSMOS: o Espaço distorce-se

Enquanto para Newton o Espaço era passivo, para Einstein é dinâmico, condicionado pelo Tempo, que define como se movimenta. Com o inventor da Teoria da Relatividade o Espaço já não pode ser visto como algo de estático: é um ator e desempenha papel de protagonista no espetáculo cósmico. Pode-se-o conceber como uma espécie de tecido dinâmico, ativo e flexível, que seria melhor entendido se fizéssemos uma viagem ao interior de um buraco negro.
Os buracos negros são o que resta de estrelas, que explodiram  e têm um tamanho ínfimo em comparação com o inicialmente existente. Na sua proximidade, segundo Einstein, a gravidade atinge valor tão elevado, que é capaz de torcer o espaço como se ele fosse um pano amarrotado.
O problema, que se colocou aos cientistas desejosos de confirmarem esta teoria foi o de terem o buraco negro mais próximo a muitos milhões de quilómetros. Mas no final dos anos 50 um cientista chamado Leonard Schiff refletiu sobre a forma de superar essa limitação, inspirando-se num brinquedo infantil: o pião. Imaginou assim um giroscópio colocado em órbita da Terra para ver como se comportaria: teoricamente em vez de adotar o movimento de circulação, que lhe seria habitual, dever-se-ia comprovar experimentalmente a alteração ao eixo desse movimento causado pela influência do movimento da própria Terra, desviando-o o bastante para poder medir-se.
A dificuldade com que Schiff e os seus colegas Bob Cannon e Bill Fairbank depararam foi com a previsão de Einstein, segundo o qual, a distorção do Espaço suscitado pelo movimento da Terra seria ínfima. Tão ínfima, que corresponderia a medir o diâmetro de uma moeda a cem quilómetros de distância.
Durante dois anos a equipa de Schiff andou a dar tratos à cabeça de como tornar possível essa medição. A alternativa consistiu em fixar quatro giroscópios na extremidade de um telescópio apontado para uma estrela distante. Se o espaço se deformasse, ao fim de algum tempo, ele deixaria de estar apontado para ela por se ter entretanto desviado.
Em 1962 decidiram pedir um milhão de dólares de subsídio à NASA para concretizarem um programa intitulado Gravity Probe B, que deveria produzir conclusões no prazo de três anos.
Verificou-se que eles pecaram por excessivo otimismo: com uma equipa que foi crescendo ao longo dos anos, a Gravity Probe B revelou-se uma das mais longas experiências científicas. Porque implicou criar um telescópio espacial muito apurado e giroscópios de uma fiabilidade irrepreensível.
Por nove vezes a NASA ponderou em pôr cobro a um projeto, que ia perdurando década após década e com um custo já da ordem dos 750 milhões de dólares.
Finalmente, em abril de 2004, foi lançado para o espaço o equipamento destinado a comprovar a validade da teoria de Einstein. Dos três cientistas, que tinham estado na origem do projeto só Robert Cannon ainda estava vivo.
Durante um ano a Gravity Probe B orbitou em torno da Terra enquanto a equipa analisava todos os dados por ela recolhidos. Só que se concluiu pela existência de uma ligeira oscilação dos giroscópios, que afetavam os resultados, Corrigi-los custaria milhões de dólares suplementares.
Os fundos investidos no projeto estavam quase esgotados e quase meio século de esforços pareciam reduzidos a nada. Depois, quando os braços começavam a baixar, surgiram duas fontes inesperadas de financiamento, uma oriunda do filho de Bill Fairbank e outra da família real saudita.
Nos dois anos seguintes, os dados foram corrigidos e concluiu-se que as equações de Einstein quase correspondiam ao desvio do eixo dos giroscópios em órbita.
Tratou-se da primeira vez que se pôde comprovar a olho nu a justeza das previsões de Einstein. Tratou-se, pois, da primeira experiência científica a confirmar que a distorção do Espaço é mesmo real, assemelhando-o ao tal tecido previamente sugerido.

domingo, outubro 26, 2014

ÉCRÃ: «Bande de Filles» de Céline Sciamma

Há menos de uma semana estreou-se em França o terceiro filme de Céline Sciamma, que nos permite questionar o tipo de cinema a que temos direito nos ecrãs nacionais, Comandados por quem decide quase só comprar filmes no mercado norte-americano, deixa na marginalidade os que, de origem europeia, conseguem romper essa regra. Ora, «Bande de filles» teria todas as condições para representar um enorme sucesso de bilheteira se promovido de forma a chegar a quem com ele muito ganharia em vê-lo: todas as Mariemes, que vivem nas Covas da Moura, que circundam a grande Lisboa e com ela se identificam enquanto adolescentes a contas com a segregação de serem raparigas, de cor e sem outras perspetivas de futuro, que não sejam as de imitarem as mães como empregadas de limpeza ou de cuidadoras nos asilos de velhos.
A protagonista é Marieme e tem 16 anos. Vive com a mãe, com o irmão mais velho e duas irmãs mais novas num subúrbio parisiense e está a contas com um chumbo na escola secundária. Eis senão quando outras três raparigas como ela - Lady, Adiatou e Fily - a convidam para pertencerem ao seu bando.
A princípio renitente, Marieme junta-se-lhes com entusiasmo quando as descobre em contacto com Ismael, um amigo do irmão, por quem alimenta uma paixão.
Passa então a adotar o pseudónimo de Vic e a violar tudo o que lhe possa parecer proibido: faltar ás aulas, dançar o mais possível e falar alto. A todas elas Importa sobretudo a sensação de ditarem as suas próprias leis. Mas Marieme está particularmente interessada em multiplicar o mais que puder os encontros com Ismael, muito embora o saiba temeroso da violência do irmão dela, pelo que se vêem obrigados a encontros às escondidas.
Surge então um combate com outro bando rival quando Lady, a chefe do grupo de Marieme, é ridicularizada pela adversária. Decidida a vingar a amiga, Vic desafia a vencedora e vence. É na euforia desse resultado, que avança para a concretização sexual com Ismael. O que lhe vale uma tareia monumental do irmão.
Refugiando-se em casa de um mafioso, que controla o bairro, ela tem o rumo traçado.
Quando ali volta, anos depois, é já na condição de dealer, recusando reencontrar as antigas amigas, aceder aos avanços do mafioso que a ajudara ou aceitar a proposta de Ismael para que casem.
Céline Sciamma assinou um filme muito físico, onde por uma questão de afirmação, as raparigas mimetizam os clichés machistas como forma de sentirem um ligeiro perfume de liberdade.
Para enfatizar essa forma de olhar para a realidade a câmara transfere-se para os olhos das personagens, para as bocas que se abrem desmesuradamente ou para o frenesim das ancas a abanarem-se. À volta planam os rapazes, que lhes cobiçam os corpos com gula de abutres.
Sciamma também revela os bairros por onde elas andam com perspetiva de arquiteto: as torres muito altas, as esplanadas imensas, os passeios inclinados.
O filme só perde algum interesse no final, com a emancipação de Marieme e a sua dissolução num coletivo depois de ter-se mostrado tão ciosa da sua individualidade. 

sábado, outubro 25, 2014

ÉCRÃ: «Camille Claudel, 1915» de Bruno Dumont

ÉCRÃ: «Camille Claudel, 1915» de Bruno Dumont

Um dos filmes, que mais me surpreenderam durante a adolescência, foi «Au Hasard Balthasar» de Robert Bresson, que passou numa daquelas sessões das seis e meia da tarde do antigo Monumental, onde o melhor cinema de todos os tempos era visto com veneração por toda uma geração ansiosa por um novo país liberto do fascismo e por isso mesmo disponível para estéticas e narrativas a contracorrente da modorra quotidiana.
Lembrei-me dele ao ver este filme de Bruno Dumont, que capta a tragédia de Camille Claudel a quem a família decidiu coartar a liberdade encerrando-a num manicómio donde nunca mais sairia.
Em 1915 esse internamento ainda era recente e decorrera do escândalo, que os Claudel queriam abafar, devido à ligação amorosa de Camille com Rodin e à forma como depois o deixara ao fim de quinze anos de frustrações amorosas e artísticas. Porque, escultora com toda uma obra por criar, ela vira-se continuamente boicotada por um homem, que começara por a amar, mas depois se revelara mesquinho na inveja pelo seu talento.
Onde Dumont se filia no cinema de Bresson é na forma como mostra um tempo quase parado, feito de rotinas sempre iguais e onde a câmara se concentra nos olhares - sobretudo de Binoche - e nos travellings que a acompanham pelos corredores e pelo jardim do asilo de Montdevergues.
Camille é a vítima da misoginia do amante, mas sobretudo do fanatismo religioso do irmão, que tinha todas as possibilidades para a trazer de volta a Paris e se recusa. Porque a considera merecedora de expiação dos pecados de que a julga culpada.
Muito lento, «Camille Claudel, 1915» é um filme exigente na disponibilidade, que exige de um espectador por norma habituado a outro frenesim, a muito mais ação. Trata-se, pois, de um cinema para uma minoria tão exígua quanto a da tal geração que, há quarenta e cinco anos, ansiava por mundos novos a sério e não adivinhava o quão depressa eles se anunciavam...

ÉCRÃ: «Magia ao Luar» de Woody Allen

ECRÃ: A maturidade de Colin Firth

É o próprio Colin Firth quem o afirma: até aos 49 anos sempre se considerou um ator aborrecido, por muitos desempenhos memoráveis, que nos tenha dado, como foi o caso do «Valmont» de Milos Forman ou o personagem de Mr. Darcy na série inglesa retirada do «Orgulho e Preconceito« de Jane Austen.
Só a partir de «Um Homem Singular», o filme que Tom Ford rodou em 2009 baseado no romance de Christopher Isherwood, é que Firth se considerou um ator meritório. Até porque chegara à profissão como forma de catarse de toda uma infância de nómada a acompanhar os pais, professores, pelos países onde eles iam sendo colocados, desde a Nigéria aos Estados Unidos, passando pelo Canadá. Terá sido essa obrigação em fundir-se com uma nova cultura em cada mudança, que terá possibilitado ao jovem Colin desenvolver os dotes de camaleão de que se serviria depois na sua carreira de ator.
Passar de um papel para outro, de um local de rodagem para outro qualquer sítio onde se situe a produção seguinte, fá-lo replicar esse passado dos progenitores,  sempre sem um local fixo, que defina como seu.
A profissão permite-lhe reconstruir um mundo familiar, feliz e caloroso, enquanto olha, irónico e de forma distanciada, para as honras e prémios, que vai acumulando.
Recentemente ele regressou aos ecrãs lisboetas num filme de Woody Allen, que teve sucesso mitigado: «Magia ao Luar». Passado na época dos «Anos Loucos», Firth é um prestidigitador, que conhece bastante bem todos os truques para criar a ilusão, mas fica atónito com o encanto de uma jovem espírita capaz de lhe perturbar as certezas.
Numa entrevista ele explicou a razão porque desejava tanto trabalhar com Woody Allen: é que ele deu-lhe páginas e páginas de texto sobre a sua personagem, dando-lhe a liberdade de cortar o que não quisesse e até de lhe facultar um momento de «to be or not to be» sob a forma de um monólogo.
Para quem considera «Hamlet» o personagem mais fascinante da história do teatro, a experiência do filme foi imperdível. Mas não só: esse estado de dúvida criado em Stanley, até aí convicto da sua imperturbável racionalidade, fê-lo sentir-se no duplo do realizador, também ele um mágico a precisar de crer na sua própria magia.

ÉCRÃ: A amizade entre Truffaut e Renoir

No dia 21 de outubro passaram trinta anos sobre a morte de um dos melhores realizadores franceses do século passado: François Truffaut.
Em França têm decorrido diversas iniciativas em sua homenagem, que nos permitem conhecer ou recordar algumas das características por ele reveladas como homem e como criativo.
Uma delas diz respeito á sua filiação para com a obra de Jean Renoir, um mestre que ele idolatrava ao ponto de crismar de Les Films de la Carrosse a sua produtora. Ou de inserir no genérico de «A Sereia do Mississipi» algumas cenas da «Marselhesa». Ou de dar a Jean Dasté, um ator que trabalhara com o mestre, um dos papéis de «O Menino Selvagem». Ou de inspirar-se numa peça de Renoir («Carola») para redigir o argumento de «O Último Metro». Ou, enfim, de dar ao seu alter ego, Antoine Doinel, um apelido semelhante ao de Ginette Doynel … que  fora a secretária do admirado realizador.
O fascínio de Truffaut por Renoir surgira quando tinha 14 anos e, em poucas semanas, vira doze vezes «A Regra do Jogo». Doravante nunca deixaria de admirar o espírito livre do criador insensível às críticas e às convenções, nada cedendo que pudesse obstar à sua visão do mundo e do que dela pretendia traduzir em filme. Por isso mesmo não hesitava em explorar os vários géneros como pretexto para melhor captar a complexidade da realidade.
Em 1954, já com 22 anos, Truffaut escreveu uma carta a Renoir em que lhe confessava toda a sua admiração. O que lhe valeu ser convidado para o assistir na encenação teatral de «Júlio César» de Shakespeare depois de uma curta passagem pela rodagem de «French Cancan».
De mestre venerado, Renoir tornou-se para o jovem Truffaut um amigo, um cúmplice. É que lhe transmitiu uma inesquecível lição de moral e de cinema: “Dar a oportunidade a todos os personagens sem os julgar. E nunca esquecer quanto a vida é paradoxal”.

sexta-feira, outubro 24, 2014

OLHARES: «Médicos Criminosos em Auschwitz» de Emil Weiss (2013)

O corpo médico desempenhou um papel determinante no projeto de aniquilação de judeus pelos nazis. E Auschwitz foi o único campo de extermínio onde se criou um programa de investigação médica destinado a estudar a esterilização e a procriação de acordo com a ideologia nazi, liderado pelos doutores Schumann e Mengele, que conseguiram fugir depois da guerra, jamais tendo sido confrontados judicialmente com os seus crimes.
A partir dos testemunhos de médicos deportados que foram designados para essa deriva demencial - recolhidos sobretudo nos processos de Nuremberga em 1946 -, dos relatórios “científicos” dos médicos-chefes à administração nazi e de cartas recebidas ou enviadas, o realizador Emil Weiss confronta o espectador com o horror.
O filme é o último de uma trilogia, que incluiu «Destruição - Auschwitz, os primeiros testemunhos» e «Sonderkommando Auschwitz - Birkenau» - todos eles a darem um particular ênfase às palavras e a um estilo muito depurado. Algumas imagens e fotografias dos médicos, bem como os longos travellings pelas ruínas desertas do campo, criam metáforas fortes sobre a terrível verdade, que escondem, mas pressentida pelos sons dos comboios, das portas, que as acompanham: as inúmeras vidas esmagadas pela bárbara máquina de destruição nazi.



OLHARES: «Cazaquistão, os benefícios do leite de camela» de Wolfgang Mertin

No Cazaquistão, há um alimento ancestral que está a conhecer um inesperado sucesso: o leite de camela. Os pastores não poupam palavras para lhe descreverem os benefícios, razão para estarem a aumentar em número os cazaques, que redescobrem as vantagens de colherem sustento na criação de cáfilas de camelos e de dromedários. O que ganham com a venda da carne e do leite permite-lhes retomar a tradição secular dos antepassados, que assim viveram no deserto. Tanto mais que a vida razoavelmente  confortável de que dispunham antes da implosão da União Soviética tornou-se bastante difícil de replicar no atual enquadramento capitalista!
Em superfície o Cazaquistão é o nono maior país do planeta e a maior parte do seu território compõe-se de estepes, desertos e zonas semidesérticas. Tais regiões podem parecer agrestes, mas não o são para os criadores de camelos, nomeadamente Berigbaï e a sua esposa Goulya aí nascidos. Eles são nómadas que transportam os bens, incluindo a iurta no dorso dos animais, mas contando com a ajuda de dois jipes todo-o-terreno facultados pelo patrão, Sydyk, que enriqueceu com esse negócio e agora lhes paga mensalmente um salário mais elevado do que o praticado normalmente nas cidades.
O documentário acompanha essa família pelo deserto de Taukum, durante a sua migração estival, num território quase do tamanho da Suíça e com o habitat ideal para as várias raças de camelos e dromedários, que estão a converter-se numa das mais prósperas atividades económicas do país.
As camelas desde sempre que facultam uma das riquezas mais apreciadas pelos habitantes do deserto: o  leite, que é particularmente nutritivo.
Os nómadas inventaram um método primitivo da sua conservação, acrescentando-lhe bactérias e conseguindo assim o «shubat», uma bebida algo ácida, mas muito apreciada, sorvida como se se tratasse de um refresco e capaz de suscitar grandes benefícios para a saúde.
No Cazaquistão o «shubat» tem muita procura e há quem o diga capaz de curar algumas doenças. Virtudes, que se poderiam explicar pelo facto de, no deserto, os camelos alimentarem-se de todo o tipo de plantas, muitas delas conhecidas pela utilização na farmacopeia tradicional do país. Por isso mesmo tende a exportar-se para distâncias cada vez maiores, como é o caso da China, que já dele se tornou um importante cliente.
Os cientistas estudaram-lhes as principais características, concluindo que o leite de camela é muito rico em enzimas e proteínas antibacterianas capazes de reforçarem o sistema imunitário!
O futuro parece ser auspicioso para os pastores cazaques, que descobriram á sua custa os encantos dos hábitos ancestrais. Por muito que já não dispensem a televisão nem a visita mensal à cidade, que os transporta para um tipo de civilização, que quase os tinha esmagado...

quinta-feira, outubro 23, 2014

LEITURAS: «1Q84» de Haruki Murakami (1º volume) VIII - Linhas paralelas começam a convergir

Estamos a chegar ao final do primeiro volume da trilogia de Murakami e as histórias de Aomame e de Tengo começam a convergir, quando a viúva de Azabu dá a conhecer à sua colaboradora uma rapariga de dez anos recolhida na sua casa-abrigo e cujo útero fora destruído pelo Povo Pequeno descrito no romance de Fuka-eri.
Recordemos que, até então, as histórias de Aomame e de Tengo tinham decorrido em paralelo, mas sem se tocarem. Ela foi-nos apresentada como uma jovem professora de ginástica, que mata crápulas conhecidos pela violência doméstica, que praticam contra as suas esposas ou filhas, enquanto o protagonista masculino é um professor de matemática ao mesmo tempo dedicado à escrita e por isso contratado para reescrever um romance destinado a ter um enorme sucesso.
A viúva de Azabu explica a Aomame que Tsubasa fora repetidamente violada pelo líder da comunidade Vanguarda, indicado como o próximo alvo a abater. Por muito que desconhecessem quem seria esse Povo Pequeno de que a rapariga não cessava de referenciar.
Enquanto a assassina profissional inicia as investigações sobre a Vanguarda para concretizar a sua missão, «A Crisálida de de Ar» constitui um enorme sucesso literário graças ao Prémio conquistado.
Tengo bem gostaria de se afastar do livro de Fuka-eri e da estranha seita religiosa donde ela proviera, mas não consegue: “Embrulhara-se pelo seu próprio pé, sabendo perfeitamente que tal implicava um certo grau de risco. A máquina já estava em movimento, e ganhara demasiado impulso para que fosse capaz de a deter. Tengo era, ele mesmo, uma peça da engrenagem - uma peça fundamental, agora que pensava nisso. Conseguia ouvir o surdo gemido da máquina e sentir o seu ímpeto implacável”. (pág. 443)
Ora Tengo ouve o professor Ebisuno explicar-lhe os motivos para que surja um grande interesse mediático em torno de «A Crisálida de Ar»: espera assim remover os obstáculos que o têm impedido de entrar nas instalações da Vanguarda para saber o destino dos pais de Fuka-eri. E conclui: “Não sei o que é o Povo Pequeno de que a Eri fala, e ela não consegue ou não quer exprimir por palavras aquilo em que consiste. Contudo, parece certo de que o Povo Pequeno desempenhou um papel qualquer na mudança súbita e drástica que transformou a Vanguarda de comunidade agrícola em organização religiosa”. (pág. 378)
Com o primeiro volume do romance a aproximar-se do final começam a aumentar as situações estranhas: a cadela que guardava o abrigo das mulheres agredidas explode e fica em pedaços; Fuka-eri desaparece; Komatsu e o professor Ebisuno ficam incontactáveis para Tengo; e sugere-se a perda de Ayumi para Aomame depois de se ter empenhado em descobrir nos arquivos da polícia quanto pudesse servir à amiga sobre os dados recolhidos sobre a Vanguarda.

LEITURAS: “O Eterno Efémero” de Urbano Tavares Rodrigues

Um homicídio anda a alimentar a imaginação dos entediados lisboetas dada a notoriedade da vítima, Miguel Ruiz Fernandes, cuja libertinagem era pública.
O inspetor Moura Prata vê-se com cinco suspeitos para interrogar: quatro mulheres e um homem, que integravam o clube onde o defunto mentor dava asas à sua imaginação erótica influenciada pelos jogos sadomasoquistas inspirados na filiação em Bataille.
Mas, mais do que a vertente policial, o inspetor interessa-se sobretudo pela personalidade daquelas mulheres, três delas casadas, questionando-se sobre as razões que as terão enredado numa teia de sedução, que as conduzira a inesperada escravidão. Porque se Miguel lhes começara por parecer um anjo  anunciador do acesso ilimitado ao prazer sexual, depressa se convertera num ser perverso capaz de utilizar as chantagem para as manter submissas aos seus ditames.
O outro homem presente nessas orgias, Leopoldo Fialho, depressa fora catalogado como desprezível pelo inspetor. Tal como ele oriundo do Alentejo profundo, descendia da aristocracia rural que lhe legara a sua genética preguiça intelectual e física, e o deixara na posição confortável de apenas ser o comparsa do morto.
As mulheres, todas engenheiras de profissão, são bem diferentes umas das outras. Três delas mais velhas, deixavam à jovem Cátia o papel ingrato de se sujeitar aos jogos eróticos mais complicados: ser fechada num caixão, deixar-se crucificar. Mas tendo procurado sacudir o tédio conjugal ou apostar na aventura dos sentidos, também elas tinham sentido crescer em si o ódio por Miguel. Por isso mesmo qualquer delas poderia ser a assassina.
Moura Prata compreende como a violência progressiva de cada orgia tendia a causar a explosão de violência bastante para se cumprir a velha ligação entre Eros e Tanatos. Sem que necessariamente a luxuria significasse algo de subversivo, muito menos de revolucionário. Nos seus jogos de prazer à custa das quatro mulheres e do amigo, Miguel Ruiz revelava a malignidade fascista que poderíamos igualmente detetar nas personagens hediondas de «Salô» de Pasolini.
Publicado em 2005, «O Eterno Efémero» constitui um romance crepuscular na bibliografia de Urbano Tavares Rodrigues, mas mantendo as principais características de toda a sua obra anterior: personagens de um elevador social, que para uns tende a subir e para outros toma o sentido contrário, gerando incómodos, desejos de redenção.
O erotismo está sempre presente, bem como a permanente indagação do que se esconde por trás do mistério feminino, bastante mais complexo e inacessível do que possa aparentar. No fundo em paralelo com uma sociedade, cujos potencial de transformação é bastante superior à da inércia de repouso em que parece assentar. Algo que as pequenas histórias deixadas por Urbano nalguns capítulos sem imediata relação com a história principal, apenas confirmam! 

quarta-feira, outubro 22, 2014

PALCOS: Let's Dance: uma história inovadora da dança contemporânea

Nos últimos três domingos o canal franco-alemão ARTE esteve a mostrar uma história inédita da dança do século XX a partir do corpo dos bailarinos: um panorama em três tempos centrados no pé, na nudez e nos corpos atípicos.
Pôde-se assim comprovar como a dança foi vivendo revoluções  políticas, morais, estéticas ou técnicas, que se traduziram, por exemplo, em despir-se no palco, mostrar a pele e o sexo, dançar com um corpo nada conforme com os cânones ou mandar ás malvas o dançar em pontas dos pés.
A dança acompanhou a forma como os corpos evoluíram em cena, na rua, no cinema, na publicidade, na moda, etc.
Desde os pés descalços de Isadora Duncan aos sapatos de saltos altos Louboutin, da discriminação racial à conquista do direito a um corpo diferente, é um século de dança, que passou diante dos nossos olhos.
Infelizmente perdi o primeiro episódio, pelo que entrei no tema quando estava já em causa a nudez na dança, algo que se tornou muito comum nos nossos dias. Ela não é, porém, um fim em si, mas uma ferramenta de que dispõem os coreógrafos e os bailarinos para abordarem temas como a moral, a política, o sexo, o pudor, a provocação, ou seja, a revolução.
O terceiro episódio intitulou-se «Este é o meu corpo» e teve a ver com o facto de, durante muito tempo, a dança e o seu público só autorizavam corpos jovens, esbeltos e musculados, quase irreais na sua perfeição e graça. Mas, pouco a pouco, outros corpos conquistaram o seu direito a expressarem-se em palco, apostando nas suas diferenças para conseguirem criar danças impressionantes e belas: corpos negros nos EUA excluídos dos palcos durante a segregação racial; corpos de transexuais a reinventarem-se em Nova Iorque nos anos 80 com o “voguing”; corpos feios, sujos e maus do muito admirado “May B.” de Maguy Marin; corpos velhos, gordos, amputados ou mesmo representados por hologramas - todos eles passaram a surgir na dança contemporânea...
Ir ao bailado já não passa obrigatoriamente por adotar aquela atitude burguesa de quem espalha pelos amigos, que se foi à Gulbenkian ou ao Camões para ver bailarinas em tutus e os seus partenaires em collants a repetirem os sobejamente conhecidos movimentos há décadas inventados e desde então sem qualquer outra originalidade.
Será possível ainda alguém ser estimulado pela banalidade, mesmo que de excelência, do ballet clássico tradicional? Essa não é decerto a minha onda! Troco mil «Lagos dos Cisnes» ou «Quebra-nozes» por um único da dupla Helvieu-Montalvo ou da belga Anne Teresa De Keersmaeker. Terei decerto mais saudade de Pina Bausch do que de mil Nureyeves ou margotfonteynes.
A exemplo de qualquer outro espetáculo, a dança deve surpreender-nos, mexer connosco e, se possível, deslumbrar-nos. Por isso mesmo, quando a coreografa de Wuppertal pegou num clássico como «A Sagração da Primavera», por muito que não pudesse ignorar a forma como os Ballets Russes a haviam criado originalmente, o resultado final sairia completamente diferente.