domingo, fevereiro 27, 2011

Kagen no Tsuki - Last Quarter

Filme: KEN NAKAI, «O ÚLTIMO QUARTO DA LUA»

Existem muitas razões para afirmar que existe um enorme abismo entre nós e os japoneses. Como se fôssemos oriundos de planetas completamente diferentes.
Uma dessas razões é a cultura manga, por muito que a juventude ocidental se esteja a deixar seduzir por aquilo de que se fundamenta. Mas, para quem por ela ainda se não deixou contaminar, um filme como este não deixa de se revelar algo de muito estranho.
A  protagonista é Misuki, que vive uma festa de 19º aniversário, que vai da felicidade plena ao seu contrário. Precisamente quando a melhor amiga mostra uma fotografia de cumplicidade amorosa entre si e Tomoki, o namorado que lhe prometera uma fidelidade absoluta.
Ferida nos sentimentos, Misuki vagueia pela noite e é atraída por uma casa gótica donde soa uma música familiar. Quem a toca é Adam, um antigo cantor de sucesso morto dezanove anos atrás, de suicídio ou de acidente, logo após a perda irremediável da namorada, Sayaka.
Misuki acaba por ficar em coma depois de um atropelamento e é nesse limbo, que se divide entre a tentação de reencarnar essa Sayaka, acompanhando Adam para o céu, ou voltar à vida, recuperando a relação com Tomoki. Este esforça-se por a levar a optar pela segunda possibilidade, contando para tal com a ajuda de dois alunos de liceu com capacidades mediúnicas assaz desenvolvidas.
A história, surgida primeiro numa manga assinada por Ai Yazawa, foi desenvolvida para servir de oportunidade de sucesso para alguns dos principais actores japoneses da actualidade, ainda que quase desconhecidos neste lado do planeta.
Trata-se em definitivo de um filme para adolescentes, com a diferença de substituir a moda dos vampiros por aqui reinante pela dos fantasmas.
Com um happy end, que sossega as inquietações de uma geração cujos problemas de adaptação à mudança muito pouco devem a ter com a mistificação quanto ao que se seguirá ou não à própria morte.

Sherlock Holmes Trailer

Filme: GUY RITCHIE, «SHERLOCK HOLMES»

É forçoso reconhecer que a idade já vai tendo um efeito incontornável na forma como vou vendo os filmes. Filho de um outro tempo em que a informática ainda não desempenhava papel tão relevante na criação de efeitos especiais na indústria cinematográfica, confesso-me muito mais sensível a uma ambiência sherlockiana passada do que à soberba reconstituição da Londres de finais do século XIX. Por isso a reacção mais óbvia para definir a suscitada pelo filme do Guy Ritchie com o Robert Downey Jr e o Jude Law é que se cai no excesso da parra para tão pouca uva.
Irritante, igualmente, aquele atestado de menoridade mental ao espectador fazendo-lhe o desenho de tudo quanto irá ou acabou de suceder. Como se, mais do que esse tal clima, fosse mais determinante explicar tintim por tintim o que ele estava a visualizar.
Quanto à história em si, temos mais uma variação do demiurgo apostado em conquistar o poder à custa da implantação do terror, sendo travado pelos heróis de serviço.
E, porque se está num tipo de cinema para plateias de consumidores de pipocas arranjam-se diversas cenas de pancadaria e umas explosões de permeio, como se fossem condimentos imprescindíveis para tão mentecaptos destinatários.
Na lógica do entretenimento puro e duro é como o melhoral: não faz bem, nem faz mal... mas a versão do Billy Wilder em 1970 ainda figura como exemplo de referência de um tipo de cinema fundamentado na personagem de Conan Doyle, que vai muito além deste espalhafato visual.

Livro: MARK TWAIN, «A VIAGEM DOS INOCENTES» (11)

Para um ateu convicto, que dá tanto crédito à mística cristã como à de qualquer outra religião - sempre forma de instilar ópio no povo, como dizia Lenine - será sempre motivo de admiração, que as atitudes meio tresloucadas de um místico pudessem disseminar-se pelos séculos fora e por toda a Europa e Américas de forma a influenciar os usos e costumes de gerações.
E, no entanto, constata-o Twain na sua visita pela Galileia, aquilo era um território exíguo e inóspito, aonde quase todos se conheciam.
A dimensão épica, que os defensores dessa doutrina religiosa  criaram é uma mera elucubração sem sentido. Mas, também o confirma Twain: a realidade por si presenciada acaba por ser tão diferente do que sobre ela lera em livros assinados por outros viajantes anteriores. Que terão visto maravilhas aonde só sobrava miséria e desolação!
Até as águas supostamente azuis do Lago Tiberíades nada devia a essa cor bem definida!
Uma fraude, assim constata um dos companheiros de viagem do autor, que se prepara para esmagar uma tartaruga, quando se descobre eivado do logro de não se ouvir dela qualquer cântico, consoante lho tinham prometido os panegíricos cristãos.
Que tudo quanto Jesus representa seja uma colossal mentira, poucos ainda se atrevem a proclamá-lo. Afinal não foi ainda há muito tempo que a Inquisição enviava para a fogueira quem se atrevesse sequer a pensá-lo. E no mundo islâmico perdura idêntico fanatismo por quem considera ridículo aquela imagem de homens barbudos a darem cabeçadas no chão de rabo para o ar.
Se altura há em que Twain transige numa certa complacência para com a mística religiosa é à noite. Quando se pode aceitar alguma margem para a magia do transcendente:
À luz das estrelas, a Galileia não tem fronteiras para além da vasta bússola dos céus, e torna-se num teatro com capacidade para grandes eventos, adequado para uma religião que pode salvar o mundo, bem como para a Figura majestosa que dominará a cena, proclamando os seus mais altos decretos. Porém, à luz do sol, dizemos: será mesmo pelos feitos realizados e pelas palavras ditas há dezoito séculos nesta pequena área de rochas e areia que hoje badalam os sinos nas ilhas dos mares remotos e por toda a imensa extensão de continentes que abarcam a circunferência do vasto globo?
É coisa que só podemos compreender quando a noite esconde todas as incoerências e nos proporciona o teatro digno de tão grandioso drama. (pág. 531).

Documentário: PAUL ELSTON, «CLEÓPATRA, RETRATO DE UMA ASSASSINA»

Teria a bela Cleópatra uma jovem irmã? O documentário aborda uma investigação sobre essa relação bem pouco fraterna.
Uma descoberta arqueológica recente permite estabelecer um novo olhar sobre Cleópatra, provando-se que a rainha não foi complacente para com a sua irmã Arsinoe IV, cinco anos mais nova que ela.
Desde o princípio, que esta princesa se opõe à aliança de Cleópatra com César. Capturada depois de uma derrota militar, Arsinoe será desfilada como prisioneira no regresso de César a Roma em 46 a.C.
Votada à execução, a jovem princesa comove a multidão, forçando César a exilá-la em Éfeso. Refugiada no templo de Artemísia, ela julga-se em segurança. Erradamente…
Uma equipa austríaca pode estabelecer que o esqueleto de uma jovem mulher, exumada em Éfeso em 2007, era realmente de Arsinoe.
Nesta abordagem, digna de um policial, alternam-se sequências de animação em 3D com cenas de reconstituição mostrando as horas mais brilhantes e sombrias do mundo antigo.
Impiedosa, a rainha egípcia valer-se-á das suas alianças políticas e de alcova com César e com Marco António para assumir o comando absoluto do seu país. Não hesitando em assassinar ou mandar assassinar os irmãos, que pudessem pôr em causa a legitimidade do seu mandato.
E fica a tese de que, Arsinoe ou Cleópatra seriam mestiças, tendo em si sangue núbio...

Livro: MARK TWAIN, «A VIAGEM DOS INOCENTES» (10)

Dobradas as quinhentas páginas do livro de reportagens de Mark Twain durante o cruzeiro mediterrânico de 1867, encontramo-lo na Palestina a compreender as diferenças entre as dimensões míticas  dos episódios e lugares descritos na Bíblia e a pálida constatação da realidade.
Forçoso é reconhecer que a idade tem dessas consequências. A relativização da importância do que, em jovens, empolávamos à medida da nossa inconsciência.
Fiquemos, então, com um trecho elucidativo dessa constatação por parte do autor de «Tom Sawyer»:
Acho que fiquei um pouco espantado quando descobri que o sultão da Turquia era um homem de estatura mediana. Devo tentar reduzir a minha noção da Palestina a um formato mais razoável. Na mocidade, adquirimos às vezes impressões desmesuradas contra as quais temos de passar a vida a lutar. (…) As monarquias dos trinta «reis», que Josué destruiu numa das suas famosas campanhas, só cobriam, todas juntas, uma área mais ou menos do tamanho de quatro condados de tamanho normal. O pobre xeque idoso que vimos em Cesareia de Filipe, com a sua banda de sequazes maltrapilhos, seria um «rei» nesses tempos antigos. (pág. 502-503)

domingo, fevereiro 20, 2011

TOKYO! The Official Movie Trailer - Michel Gondry, Leos Carax and Bong J...

Filme: MICHEL GONDRY, LEOS CARAX e BONG JOON HO, «TOKYO!»

As minhas frequentes passagens por Tóquio, até há uma dúzia de anos atrás, deram-me a convicção de que aquela gente não são propriamente terráqueos: se os extraterrestres chegaram ao nosso planeta terá sido por aquele arquipélago asiático, que decidiram ficar, tão diferentes são os usos e costumes ali praticados, em relação aos nossos.
Terá sido algo de semelhante, que terão sentido três realizadores diferentes ao fazerem da capital nipónica o centro de outros tantos filmes que, em conjunto, se nos apresentam sob este título comum: «Tóquio!».
O primeiro episódio é de Michel Gondry e os sonhos estão uma vez mais presentes, mesmo que transpostos para uma realidade assaz complicada para os jovens locais. De facto, Akemi e Hiroko chegam a Tóquio numa noite de chuva intensa e alojam-se em casa de uma amiga dela, mesmo tratando-se de um minúsculo apartamento.
O objectivo será o de mostrarem o filme realizado por Akemi numa sala pouco conhecida, mas que poderá constituir o ponto de partida para o almejado sucesso vivido a dois. Mas a irresponsabilidade de ambos acaba por os perder e se Akemi arranja um modesto emprego a fazer embrulhos numa loja, Hiroko vai perdendo o contacto com a realidade, acabando por se transformar numa cadeira e viver em casa de um desconhecido, cuja vida vai partilhando sem ele disso se dar conta.
De forma simbólica estão omnipresentes questões como a da falta de oportunidade para os mais jovens, as dificuldades em arranjar alojamento e de como a falta de ambição torna descartáveis quem a não consegue recuperar.
No segundo filme, Denis Lavant volta a interpretar um personagem à margem da sociedade, saindo dos esgotos para semear o nojo, o medo e a morte entre quem tem o azar de com ele se cruzar. Os noticiários televisivos dão conta do estado de sítio vivido na capital enquanto ele não é capturado. E a explicação para os seus actos é simples: decidiu atacar os japoneses porque têm uma elevada longevidade e olhos em forma de vagina.
Condenado à morte por enforcamento, nada parecerá capaz de o exterminar.
Carax regressa assim a um tema muito recorrente no cinema japonês do tempo da guerra fria, quando Godzillas e outros monstros vindos de fora semeiam o pânico na estruturada sociedade japonesa. O racismo está, pois, subjacente, a uma história, que não deixa de evocar os efeitos criminosos desse modo nipónico de reagir ao que é diferente: o massacre de Nanquim, por exemplo, bem explicito num cartaz exposto no túnel subterrâneo aonde se acolhe o temido agressor. E há também a piscadela de olho a um dos mais memoráveis filmes de Nagisa Oshima.
O terceiro episódio, da autoria de Bong Joon Ho mostra o conhecido tema dos hikikomori, ou seja, desses solitários, que se encerram em casa, eximindo-se ao convívio com quaisquer outras pessoas. Mas, em breve, se conclui que não se trata de um ou outro caso isolado: toda a cidade desertifica porquanto todos se encerram em casa. E até as pizzas são entregues por robôs. Resta, porém, a esperança de um final em aberto, quando são os que se isolam, quem procura resgatar os que se preparam para os imitar.
Depois do desemprego, da falta de casas ou do racismo, temos, pois, a solidão, a incomunicabilidade entre as pessoas. Tudo questões, que muito têm a ver com os japoneses. E, no fim de contas, também connosco, que somos capazes de ser também tão extraterrestres quanto aqueles estranhos seres… pelo menos quanto a estas matérias!

Livro: AMÉLIE NOTHOMB, «UNE FORME DE VIE»

Amélie Nothomb dá sempre a ideia de escrever facilmente. Fala de si, das suas obsessões e é como se ligasse o piloto automático. Daí que a sua bibliografia já conte com dezenas de títulos, todos eles a parecerem contribuir para a sua autobiografia.
Em «Une Forme de Vie», romance datado de 2010, temo-la em correspondência epistolográfica com um soldado norte-americano em Bagdad, Melvin Mapple, que a comove com o seu problema: como consequência do stress motivado pelo ambiente em que está mergulhado, come incessantemente, de tal forma que já terá atingido os cerca de duzentos quilos de peso.
A essa excrescência de si mesmo ele dá o nome de Scherezade, encarando-a de forma sensual, muito embora se confesse de todos incompreendido devido ao seu aspecto grotesco.
Impressionada com tais relatos, Amélie acede ao pedido dele, que vê no seu corpo uma forma genuína de «body art» com vocação de protesto contra a guerra, e consegue-lhe a integração numa galeria belga, que expõe a sua fotografia como demonstração dessa condição de obra artística.
Os meses vão passando e o súbito silêncio de Melvin inquieta Amélie, que investiga a probabilidade de algo funesto lhe ter acontecido. Mas o que descobre deixa-a boquiaberta: toda a história de Melvin assentava numa fraude já que ele nunca deixara o seu quarto junto à garagem dos pais em Baltimore aonde deixara crescer o seu volume devido à sua forma obsessiva de encarar a relação com o seu computador.
Para Amélie, que está em vias de ir ao seu encontro nessa cidade norte-americana a única forma de evitar tal incómodo residirá em dar-se como terrorista e portadora de uma bomba atómica no questionário a que tem de responder no voo até ao outro lado do Atlântico.
Uma vez mais, finda a sua leitura, os romances de Amélie Nothomb revelam-se como meros divertimentos tipo melhoral: nem fazem bem, nem mal...

Official Séraphine movie trailer

Filme: «MARTIN PRÉVOST, SÉRAPHINE»

Senlis, em 1914. Séraphine é uma mulher de meia-idade, feia e anafada, que sobrevive (mal) graças a um conjunto de trabalhos esforçados: a lavagem de roupa no rio, a ajuda ao talhante da aldeia e o de mulher-a-dias de uma mansão alugada a um alemão.
O que ela verdadeiramente aprecia é subir às árvores e, do alto das suas ramagens, ver toda a paisagem circundante. E que ela traduz depois naquilo que a ocupa no seu pequeno quarto alugado: pinturas de cores exuberantes.
Por mero acaso o alemão em causa, Wilhelm Uhde, descobre essa vocação e entusiasma-se com ela. Tanto mais que é um conceituado crítico de arte e marchand, conhecendo bem o valor das novas expressões artísticas então em curso.
O destino de Séraphine poderia ter mudado na altura se a guerra não tivesse obrigado o seu protector a fugir dali com súbita rapidez. Passar-se-ão anos até nova oportunidade se repetir. E será em 1927, quando o mesmo Uhde volta a região para aí se estabelecer com a irmã e com o amante tuberculoso.
Constatando que a capacidade artística de Séraphine melhorou com o tempo, ele passa a financiá-la e a estimulá-la para se dedicar em exclusivo à pintura. Mas a degradação do estado mental da artista acentua-se com delírios cada vez mais descontrolados.
A crise de 1929 irá repercutir-se seriamente no mercado da arte e o próprio Uhde tem de medir bem as suas despesas, negando à sua protegida o financiamento das suas, cada vez mais singulares, iniciativas. Quando, uma manhã, Séraphine se veste de noiva e vai distribuindo as suas pratas pelas portas da aldeia, o manicómio acaba por ser o seu destino natural.
A venda dos seus quadros só servirá para que as suas condições de internamento até à morte, ocorrida em 1942, sejam as melhores.
Sobre esta história real, Martin Prévost cria um filme cativante com imagens naturais bastante cuidadas, e em que se coloca a questão de se aferir sobre a natureza de um talento inato. Para a protagonista não sobram dúvidas: essa vocação é uma dádiva divina. Para Uhde, pouco crente nas místicas religiosas, confirma-se a génese atávica dos chamados primitivos modernos...
E Yolande Moreau terá aqui o grande papel da sua vida...

quarta-feira, fevereiro 16, 2011

[ORIGINAL] Bad Lieutenant (1992) extended Trailer

Bad Lieutenant: Port of Call New Orleans Trailer

Filmes: ABEL FERRARA, «POLÍCIA SEM LEI» e WERNER HERZOG, «POLÍCIA SEM LEI»

A polémica ainda não tem dois anos. Ao estrear-se o seu filme, Werner Herzog negava qualquer conhecimento da versão da mesma história, dezassete anos antes realizada por Abel Ferrara. Mas tendo-o ou não conhecido, Herzog tudo fez para que essa mesma história redundasse num outro filme. Por um lado mudando-a de Nova Iorque para a cidade de Nova Orleães acabada de ser fustigada pelo furacão Katrina. E por outro ao mudar completamente a perspectiva induzida no espectador pela evolução da intriga.
Aonde Abel Ferrara demonstrava, uma vez mais, que o seu cinema não existe para entreter o espectador, incomodando-o com a abjecção mais insuportável (violações, insultos machistas, etc), nem sequer lhe dando o paliativo de um final minimamente tranquilizador, Herzog prefere confundi-lo. O seu Terence, interpretado por Nicholas Cage, é muito diferente do hediondo Harvey Keitel da precedente versão. Nesta, mais recente, o polícia corrupto e toxicómano luta contra os seus próprios demónios, tudo fazendo para se redimir.
Herzog consegue ser tão cínico nessa ambivalência do personagem que, para satisfação do público norte-americano das sessões de pipocas e de baldes de coca-cola não lhes deixa de propiciar um quase final cor-de-rosa em que tudo se parece compor como se se tratasse de um estalar de dedos. Ou do delírio psicadélico de uma valente pedrada com heroína ou cocaína. Para logo o desmentir na cena seguinte em que o início e o final do filme se interligam com personagens mergulhados dentro de água a questionarem-se sobre se os peixes sonham…
Se ambos dão uma imagem cáustica de uma América enleada  em vícios vários (além da droga, há o alcool e o jogo!), qualquer dos filmes acaba por ter um efeito perturbador: se o de Ferrara constitui um violento murro no estômago, o de Herzog transfere para  nós a tremenda confusão na cabeça do protagonista. Como se as imagens já não tivessem a ver com a nossa racionalidade, mas apenas nos transferissem para a cabeça de quem olha à volta e só vê iguanas e lagartos a tentarem sobreviver num espaço recheado de terríveis ameaças.

segunda-feira, fevereiro 14, 2011

Trailer La Teta asustada

Filme: CLÁUDIA LLOSA, « A TETA ASSUSTADA»

Quem canta seus males espanta!
Perpétua está a morrer e ainda canta uma melopeia monocórdica. É a sua história. De quando era ainda tempo de terrorismo e a violência ainda conseguia ser mais cruel. No seu caso, violaram-na e obrigaram-na a comer o pénis ainda morno do seu assassinado Josefo.
É nessas memórias, que Fausta cresceu. Sempre assustada. Porque quem foi gerado no terror, no terror fica sempre a viver. No hospital identificaram-lhe uma batata na vagina. E querem-na retirar. Mas ela recusa: sempre é uma forma de protecção contra os homens, esses sempre potenciais violadores.
O seu problema imediato é outro: levar o cadáver da mãe para a sua aldeia natal. Para o que carece de umas largas centenas de soles, que os tios - a contas com o casamento da prima - não lhe podem emprestar.
Fausta vai, então, servir para casa de uma pianista em crise de inspiração, mas que lhe promete as pérolas de um colar quebrado se ela lhe cantar as suas canções inventadas. Por exemplo uma que fala em sereias…
É o confronto entre dois mundos tão diferentes: o da pobreza dos subúrbios, aonde impera o mau gosto das imitações de quanto se vê nas telenovelas, com o de uma sofisticação empobrecida numa classe já distante dos seus melhores dias.
O que a pianista faz é sugar de Fausta o que ela lhe pode dar: uma autenticidade, que disfarça os seus impasses e a fazem manter um sucesso ilusório. Sem pretender depois corresponder aos seus compromissos.
Mas Fausta acaba por se apropriar do que é seu: essas pérolas, que lhe garantem o passaporte para a sua almejada viagem com o cadáver. Que não chegará ao destino previsto. Porque, pelo meio, surge a costa do Pacífico, e é nas suas margens desérticas, que o corpo de Perpétua repousará em paz…
No mínimo, o filme de Cláudia Llosa é diferente de tudo quanto nos habituamos a ver. Há um certo realismo mágico associado à crueza das imagens de uma América Latina paupérrima em valores e em bens de consumo. A luta de classes está lá, mas as gentes assustadas não parecem capazes de romper um estado das coisas, que se catalisa em festas de ocasião.

Livro: ORHAN PAMUK, «ISTAMBUL - MEMÓRIAS DE UMA CIDADE» (1)

1.
Há autores, como Conrad, Nabokov, Naipaul, que conseguiram escrever mudando de língua, de nacionalidade, de cultura, de pátria, de continente e mesmo de civilização. A criatividade, neles, foi buscar alento precisamente ao seu exílio ou migração. Da mesma forma, sei que a minha ligação à mesma casa, à mesma rua, e à cidade, influenciaram a minha identidade. Esta ligação a Istambul significa que o destino da cidade passa a fazer parte do carácter dos seus naturais. (pág. 14)
Esta citação de Orhan Pamuk logo no início do seu ensaio autobiográfico sobre a sua cidade, faz como que uma segregação entre dois tipos de escritores. Há os que se estimulam na permanente descoberta, que a viagem para o desconhecido provoca, e há os que falam do que muito bem conhecem de si e do espaço aonde cresceram.
Pamuk será destes últimos: existe uma ligação quase indissociável entre a sua cidade e as inquietações, que o movem para a escrita.
A cidade é um pouco ele mesmo, porque seria completamente diferente se tivesse nascido num qualquer outro lugar. Mas o mesmo sucede em relação à sua rua ou à classe social onde cresceu. O que permite concluir uma óbvia certeza: mesmo quando crescemos numa geração de pessoas com vivências semelhantes dentro do mesmo espaço , existe sempre um factor identitário, que nos torna únicos.
2.
Cada novo olhar para aquelas fotografias evocava em mim a importância da vida e dos instantes que quisemos preservar do tempo para os pôr em realce no interior de uma moldura. Observando ao mesmo tempo o meu tio que interrogava o meu irmão mais velho sobre um problema de matemática e uma fotografia dele tirada trinta anos antes, ou entoa o meu pai a folhear as páginas do jornal e a ouvir as piadas que se diziam à volta, como podia adivinhar pelo seu sorriso, ao lado de uma fotografia dele com cinco anos, em que exibia como eu, o cabelo tão comprido como o de uma rapariga, tinha de súbito a impressão de que a existência era feita para oferecer oportunidades de viver esses momentos especiais que se metiam dentro das molduras. (pág. 21)
Interessante é a evolução que as fotografias foram tendo na vida das pessoas ao longo do século XX. Esta reflexão de Pamuk sobre a vida ser feita de momentos capturáveis por uma máquina fotográfica e doravante perduráveis em molduras, teve razão de ser enquanto era a rotina dos mesmos gestos o que caracterizava os seus dias e anos. Tudo o que sobressaísse desse ritmo uniforme valia a pena registar. Só que a aceleração do que se faz, o aumento dos rendimentos, o acesso progressivo a mais bens hedonísticos, deixa de justificar esse desejo de conservar memórias. Porque o mais importante passa a ser o que ainda se irá viver e não o que se viveu. As imagens que se criarão interiormente em nós do que as já deixadas para trás.

sábado, fevereiro 05, 2011

Livro: MARK TWAIN, «A VIAGEM DOS INOCENTES» (9)

Ao acompanharmos Mark Twain por Constantinopla e pelos portos russos do Mar Negro, é inevitável pensarmos nas reacções dos contemporâneos de Fernão Mendes Pinto à sua Peregrinação. Porque embora o essencial das suas descrições assentem em situações reais, devemos sempre interrogar-nos sobre o empolamento dado pelo escritor, decidido a colorir amplamente as suas vivências.
Na capital turca somos obrigados a rir com o relato das suas desventuras num restaurante aonde o cozinheiro preparava carne de salsichas proveniente de alguns rafeiros ou palitava os dentes com o mesmo talher com que mexia os ovos.
A visita aos banhos turcos também não corre melhor. Por isso se nos chocáramos com a descrição de Twain a propósito da sua passagem pelos Açores, os turcos não terão grandes razões de contentamento quando lêem o que deles diz o escritor.
Na Rússia os passageiros do paquete são levados ao palácio de férias da família imperial em Ialta, para aí serem recebidos em audiência. Apesar da imagem autocrática dela dada pelos escritores da época, Twain mostra o czar e os seus parentes mais próximos como gente afável e pouco dada a sobrancerias aristocráticas.