sábado, dezembro 30, 2023

O pente de Caravaggio

 

Olhar para um quadro com a devida atenção, focar-se num dos detalhes e concluir o quanto é revelador sobre a obra do artista e a época em que viveu: esse o propósito da série O Mundo num Quadro de que já conhecêramos outro episódio, dedicado a Vermeer e ao chapéu de um homem por ele representado.

De Caravaggio é escolhido um quadro menos conhecido, hoje pertencente a um museu de Detroit, em que o chiaroscuro está inevitavelmente presente como marca definidora de quem o pintou e tendo por tema a conversão de Maria Madalena:  constituindo-se demonstração substantiva do espírito da Contra Reforma  vemos a frívola prostituta a ouvir atentamente a explicação da irmã, Marta, sobre quem era Jesus Cristo e a render-se incondicionalmente à sua devoção.

Na mesa, enquadrada em primeiro plano, aparece o pente em marfim, com um dente partido, que é o objeto da análise do documentário de Nicolas Autheman. Porque ele simboliza o passado da convertida ao adivinhar-se-lhe a proveniência: um dos prostíbulos em que ela se dedicava ao meretricio. De facto, em 1598, data da obra, era na noite romana e seus prazeres, que se podiam encontrar objetos exóticos para ali trazidos pelos boémios, bandidos e vagabundos, oriundos de todas as latitudes. E com quem Caravaggio, sempre fascinado pela luxúria e seus excessos, se cruzava.

Não admira que ganhasse má fama ao escolher como modelos quem estava nos mais baixos degraus da escada social e de quem se fazia parceiro das supostas transgressões morais da época. Não espanta assim a sanha com que o tentariam capturar e executar, quando lhe atribuíram a autoria de um homicídio durante uma zaragata.

Provavelmente levado para Roma por um português ali chegado com a embaixada do representante da coroa lusa junto do Vaticano, o pente evidenciava a relação estreita existente entre os reis de Lisboa e do Congo antes da perda da independência em favor dos Filipes. Quando se tratavam de igual para igual com trocas comerciais, que envolviam o precioso marfim...

sexta-feira, dezembro 29, 2023

Os pacóvios críticos de Saramago

 

Leitor assíduo, e obviamente repetente, dos romances de José Saramago, continuo a ter um prazer inaudito em encontrar-lhe a finura de um humor, que se foi aprimorando com a idade e o avanço da obra. 

Exemplo lapidar de oportuna sátira é o momento de As Intermitências da Morte em que ironiza com muitas das conhecidas críticas verberadas insistentemente por gente pacóvia a pretexto das suas escolhas da pontuação ou da sintaxe. A réplica de tal corja aparece-lhe na figura de um gramático que, retomado o normal fluxo de enterros dos defuntos, publica uma análise crítica ao manuscrito enviado pela morte para explicar as razões para ter posto fim à experiência de, durante oito meses, não ter cumprido a missão de levar consigo quem, naturalmente, deveria ter-se finado.

Trocista, o autor acaba por fazer convergir em si a identificação com tal morte: Segundo a opinião autorizada de um gramático consultado pelo jornal, a morte, simplesmente, não dominava nem sequer os primeiros rudimentos da arte de escrever. Logo a caligrafia, disse ele, é estranhamente irregular, parece que se reuniram ali todos os modos conhecidos, possíveis e aberrantes de traçar as letras do alfabeto latino, como se cada uma delas tivesse sido escrita por uma pessoa diferente, mas isso ainda se perdoaria, ainda poderia ser tomado como defeito menor à vista da sintaxe caótica, da ausência de pontos finais, do não uso de parêntesis absolutamente necessários, da eliminação obsessiva dos parágrafos, da virgulação aos saltinhos e, pecado sem perdão, da intencional e quase diabólica abolição da letra maiúscula, que, imagine-se, chega a ser omitida na própria assinatura da carta e substituída pela minúscula correspondente. Uma vergonha, uma provocação, continuava o gramático, e perguntava, Se a morte, que teve o impagável privilégio de assistir no passado aos maiores génios da literatura, escreve desta maneira, como não o farão amanhã as nossas crianças se lhes dá para imitar semelhante monstruosidade filológica, a pretexto de que, andando a morte por cá há tanto tempo, deverá saber tudo de todos os ramos do conhecimento. E o gramático terminava, Os disparates sintáticos que recheiam a lamentável carta levar-me-iam a pensar que estaríamos perante uma gigantesca e grosseira mistificação se não fosse a tristíssima realidade, a dolorosa evidência de que a terrível ameaça se cumpriu.”

Indiferente aos tontos dislates dos detratores o nosso Nobel ainda teimaria em demonstrar a excelência do seu estilo por mais cinco anos, até que, em 2010, a tal morte do romance veio busca-lo...

quarta-feira, dezembro 27, 2023

Quando o meu avô soube existir uma tal Flandres

 

João acabara de fazer dezoito anos, quando ouviu falar da Flandres pela primeira vez. Se lhe dissessem ser cenário de combates na guerra incendiada lá para além do que conseguia imaginar como distância, não adivinharia vir a conhecê-lo de bem perto, tão só compareceria às sortes.

Tudo se tornaria amarga novidade nesse verão de 1916, quando recebera ordem de se juntar aos vinte mil mancebos enviados para os lados do Ribatejo para aí treinarem o que iriam fazer nas trincheiras, outro termo de que nunca ouvira falar, mas descobriria concreto na forma de lama, metralha e frio, já que as fardas mostrar-se-iam mais do que inadequadas para as tempestades que o esperariam.

Em Tancos - assim se chamava o sítio! - nunca encontrou o general Norton de Matos, mas depressa se viu perante os cavalos vindos da Argentina que deveria cuidar com os desvelos exigidos pelos desagradados oficiais, que maldiziam um tal Afonso Costa, responsável por mandá-los partir para longe a pretexto de defenderem os interesses pátrios, fossem eles quais fossem.

Desse político continuaria a dizer cobras e lagartos meio século depois quando, no terraço que dominava a quinta de Castelo Picão, me fazia confidente das memórias de juventude. Infelizmente, ainda era demasiado novo para o questionar sobre quanto vivera nessa experiência, mas dá para lembrar o seu ódio aos ingleses a quem culpava pelo desastre de La Lys.

Desconfio nunca ter compreendido, mesmo replicando-lhas por mero seguidismo, as simpatias sidonistas dos oficiais, que lhe davam as ordens, e estariam depois na organização do golpe de 28 de maio de 1926.

A um século de distância ainda se afigura paradoxal o equívoco contributo à implantação do fascismo pelas revoltas populares contra os mais progressistas governos republicanos. Mas, se ainda hoje são as classes mais desfavorecidas quem servem de tropa fandanga às extremas-direitas, financiadas pelos que deveriam ser as suas verdadeiras inimigas, talvez não tenha grandes motivos para me admirar!

quinta-feira, dezembro 21, 2023

Uma fotografia de Sartre na União Soviética

 

O que conta uma fotografia? Que verdades ou mentiras podem estar nela contidas?

As questões justificam-se quando deparamos com a que Antanas Sutkus tirou a Jean Paul Sartre na costa lituana numa das viagens por ele - e Simone de Beauvoir - feitas à União Soviética, quando por ela sentia uma curiosidade empática, ciente de, mesmo com significativos desvios ao que deveria ser o seu projeto político, constituía pertinente contraponto ao capitalismo ocidental.

Os detratores do regime salientaram dessa imagem, reconhecidamente reenquadrada pelo fotógrafo, a sombra  que se cola aos passos do filósofo francês, dizendo-a pertença de um dos agentes do KGB, que não o largariam para lhe condicionarem a visita ao guião preparado para o efeito.

Na realidade essa sombra era a de Simone de Beauvoir, que seguia o companheiro e a quem Sutkus - assumido admirador de Sartre - decidira excluir da imagem. O que não conteve a pulsão de quem, no ocidente, viu a imagem em revistas de grande tiragem e a deu como exemplo da presença omnipresente da polícia política no quotidiano soviético.

Quanto a Sutkus, depois de servir o regime como seu fotógrafo oficial - embora recolhendo imagens comprometedoras só divulgadas depois da sua implosão! - passou a integrar a sociedade lituana pós-independência recolhendo do passado a versão mais benigna para justificar a sua ambígua condição de “resistente”! 

terça-feira, dezembro 19, 2023

A África colonial e neocolonial de expressão francesa

 

1. Não foram poucas as vezes que passei diante da estação ferroviária de Pointe Noire numa altura em que estava ao abandono devido a um importante acidente causador de muitas vítimas. Mas já a sabia ponto de chegada da linha vinda de Brazzaville, objeto de intensa denúncia de André Gide, que acompanhara-lhe in loco a construção e denunciara o uso intensivo do trabalho escravo.

Há quase cem anos o escritor encabeçara uma campanha mediática de grande impacto sobre os crimes do colonialismo francês sem porém os conseguir travar. A infraestrutura, tão necessária as empresas metropolitanas para assegurarem o escoamento das matérias-primas, prosseguiria até à sua inauguração em 1934 e o trabalho forçado ainda se manteria na legislação colonial francesa até ao fim da Segunda Guerra Mundial.

2. Le Pays des Autres e Regardez-nous danser  são dois romances fundamentais na obra de Leila Slimani de quem me apresto a ler aquele que lhe valeu o Goncourt há sete anos. E que para tal descoberta me servirão de referência.

Nesses dois títulos ela cria ficções com muito de autobiográfico sobre o Marrocos do tempo dos avós (o primeiro) e dos pais (o segundo).

Le Pays des Autres decorre logo após a Segunda Guerra quando a alsaciana Mathilde vai juntar-se ao marido na zona montanhosa próxima de Meknés frustrando-se com um tipo de vida muito diferente da por ela imaginada, quando se apaixonara e decidira acompanhá-lo no regresso à terra donde partira. Em vez do amor romântico descobriria a indiferença de um homem mais interessado no trabalho do campo do que nela, também impossibilitada de conviver com os colonos da região. Vigorava ainda o protetorado francês estabelecido em 1912 e o nacionalismo não tardaria a manifestar-se sob a forma de revoltas sangrentamente esmagadas.

O segundo tomo dessa saga familiar começa quando a independência já dura há doze anos e Essaouira, cidade da costa atlântica está a ser tomada de assalto pelos hippies europeus e norte-americanos.

Aicha deseja de mais liberdade e emancipação para as mulheres da sua geração confrontando-se com as tradições misóginas da cultura dos mais velhos. E há o rapaz vindo do interior do país e fascinado por esses estrangeiros com quem acamarada sem contudo se fazer verdadeiramente integrar no seu mundo.

Embora Leila Slimani não mereça particular simpatia ideológica - é notória a sua simpatia pelo macronismo! - vale a pena conhecer-lhe a obra como reflexo de uma mentalidade neocolonial, que lhe subjaz as ficções. 

sábado, dezembro 16, 2023

Da pequena corrupção às portas giratórias

 

O que sucede numa sociedade onde impera a corrupção? Um estudo das universidades de Newcastle e Copenhaga demonstra que  nelas os cidadãos são mais infelizes e mostram  sinais de perturbações mentais. Privados da participação na responsabilidade do Estado podem chegar a decisões desesperadas.

Em 2001 um vendedor ambulante tunisino imolou-se pelo fogo para protestar contra a omnipresente corrupção de que se sentia vítima. Assim começou a Primavera árabe com um incrível efeito de contágio, que chegou a alimentar expetativas otimistas quanto à evolução de muitos dos regimes por ela afetados, mas afinal redundando em quase nada de significativamente alterado: a corrupção continuou a fazer parte do quotidiano dessas sociedades. Como já sucedia na Roma Antiga onde foi uma das principais causas para a queda do seu império. mas onde, durante séculos, foi normativa no funcionamento das relações económicas e sociais.

A corrupção também está nos comportamentos infantis desde muito cedo, mormente nas  cábulas utilizadas para melhorar as possibilidades de ter boas notas nos testes e exames. Um estudo de 2017 demonstrou que, quanto mais corrupta é uma sociedade, maior é o nível de batotice investido pelos estudantes nos seus desempenhos escolares.

Se existe muita pobreza e desigualdade as pessoas são suscetíveis a recorrerem à corrupção para melhorarem a condição económica. Mas que dizer das portas giratórias tão comuns nas nossas sociedades ocidentais com políticos, como Paulo Portas ou Durão Barroso, a abandonarem funções públicas para levarem os conhecimentos nelas auferidos, e as complementares agendas de contactos para os porem ao serviço dos interesses privados?

quinta-feira, dezembro 14, 2023

A corrupção: sintoma do atual estado do capitalismo

 

Não é preciso dar muitos tratos à imaginação para considerar países onde a administração pública é extremamente vagarosa, os funcionários ganham mal e as licenças de construção demoram imenso tempo a serem emitidas. Em vez de se perder tempo em filas sem fim há quem ceda à tentação de subornar quem possa superar esses obstáculos.

A corrupção beneficia supostamente todos quantos nela participam dando a uns quantos a ilusão de ser imprescindível para o sucesso dos negócios. Mas a investigação sociológica demonstra a falsidade dessa impressão, porque acontecem tragédias relacionadas com desmoronamentos de construções decorrentes de processos ilícitos de autorizações para serem levantadas sem as devidas inspeções.

Entre 1980 e 2010 uma grande maioria - 83% - das vítimas dos sismos acontecidos em várias geografias cingiram-se a países muito pobres onde grassa a corrupção. É ela que está na origem de muitas ineficiências das instituições públicas e a falta de confiança na sua capacidade para darem as esperadas respostas sociais. Daí que saia degradada a qualidade da Democracia ou o adiamento da sua consolidação perturbando as próprias transações económicas, que a mão invisível prometia ser virtuosa quanto ao mérito e aos resultados. Como o capitalismo evoluiu progressivamente para a conquista do Estado por um pequeno grupo de indivíduos as instituições públicas são mobilizadas para servirem os seus próprios interesses, muito particularmente o sistema judicial. Assim se consegue legalizar a corrupção para livrar de problemas quem a pratica e afastar eficazmente quem se lhes oponha.

O compositor Paul Dessau: a balada do exílio, Anne-Kathrin Peitz, 2022

 

Só agora tomei conhecimento do percurso biográfico e artístico de Paul Dessau, compositor alemão desaparecido aos 84 anos em 1979 na antiga República Democrática Alemã e com um percurso comunista consistente desde os anos 20. Daí o véu de esquecimento, que tende a envolver-lhe a evocação.

De origens judaicas teria a mãe assassinada no campo de Theresienstadt depois de a não ter convencido a manter-se no exílio para onde a levara, quando começara a sentir as perseguições nazis. E também ele escaparia por pouco às perseguições macartistas em Hollywood, onde encontrara trabalho depois da passagem por França, onde a Ocupação tornara inviável que continuasse a viver. A condição de muito próximo colaborador de Brecht tornava-o alvo preferencial dos inquisidores, quando tornou-se evidente que o autor de Mãe Coragem viria a ser um dos ódios de estimação do Congresso norte-americano.

Embora autointitulado príncipe do dodecafonismo as suas composições têm uma linha melódica que as torna facilmente trauteáveis, quando se sai das salas de concerto onde são executadas.  O que não será de estranhar dada a ligação ao dramaturgo para quem tanto trabalhou, inspirado pela tradição do teatro musical berlinense dos inícios do século XX. E que bem merece que lhe conheçamos a obra... 

quarta-feira, dezembro 13, 2023

A corrupção como mal necessário?

 

A corrupção é difícil de detetar por não se verem facilmente as suas vítimas ao contrário do que sucede com outros crimes. Por vezes é uma entidade abstrata, tipo sociedade a que fica em perda. Vê-se a vantagem obtida por um pequeno grupo de pessoas, mas não se vê quem sai prejudicado, quem não recebe os recursos públicos, não obtém os cuidados de saúde ou a educação por causa dessa corrupção. Existe um acordo entre quem tem poder e quem está no setor privado, negociando entre si os preços dos produtos e/ou serviços comprados pelo Estado com a comissão embolsada por alguém em particular.

Existe também o nepotismo, ou seja a capacidade de usar a influência em favor de um familiar ou um amigo.

Apesar da da ilegitimidade de tais comportamentos há quem insista na inevitabilidade da corrupção para que a economia funcione por ser essa a natureza que está na origem do Estado desde que se criou, constituindo uma espécie de lubrificante capaz de facilitar a modernização e obviar à burocracia.

O historiador Jens Ivo Engels lembra como, sem uma administração centralizada, nem uma comunicação eficiente, os reis colocavam pessoas de confiança em postos chave para, em troca de empregos, de dinheiro e outras ajudas, ganharem sólida reputação e subservientes partidários. Havia obrigações dos dois lados, uma lealdade que nunca deveria ser questionada. Porque, acaso o fosse, todo o castelo de cartas em que assentava essa soma de dependências poderia ruir de um momento para o outro.

A Revolução Francesa alterou esse estado de coisas com a criação do funcionário moderno, que deveria ser suficientemente remunerado pelo Estado para prescindir de presentes e outras mordomias devidas ao sistema de apadrinhamento.

A corrupção deveria, pois, ter sido erradicada com a criação do Estado moderno. Lincoln logo o desmentiu quando quis abolir a escravatura, mas faltavam-lhe apoiantes na Câmara dos Representantes. Daí que tenha comprado os votos dos seus adversários demonstrando que uma das conquistas progressistas mais relevantes da História americana do século XIX foi conseguida à custa da corrupção e tendo por autor uma das suas mais “imaculadas” personalidades.

terça-feira, dezembro 12, 2023

A corrupção está no âmago da sociedade capitalista

 

A corrupção está de boa saúde na nossa sociedade capitalista, estando-lhe no âmago dentro da lógica de tudo se vender e comprar, até mesmo a boa consciência dos que ocupam cargos de poder. No entanto, se vivêssemos num mundo sem corrupção, os cofres públicos estariam mais recheados, disporíamos de melhores meios para usufruirmos qualidade de vida e menos vícios quanto a estarmos sempre a construir prédios, rotundas, parques gimnodesportivos e autoestradas. E (quase) todos seríamos bem mais felizes!!!

A corrupção é uma espécie de areia na engrenagem, mesmo havendo quem coloque a questão de outra maneira:  ela não será uma regra informal no seio da sociedade para regular as trocas entre ela e o Estado? Será ela aceitável, se não mesmo indispensável, para encarrilhar certas necessidades? Essa é a forma de pensar dos liberais, com mais ou menos Iniciativa, ou dos extremistas de direita com a boca cheia de fortes palavras contra ela, mas os mais gananciosos a servirem-se do pote, quando ele lhes cai no colo.

Todas as semanas surgem casos de corrupção por toda a União Europeia, causando prejuízos que se cifram em milhares de milhões de euros: 904 mil milhões de euros por ano segundo um estudo encomendado pelo grupo dos Verdes no Parlamento Europeu em 2018.

Essa verba seria suficiente para erradicar a malária, garantir a educação das crianças dos 45 países mais pobres, facilitar o acesso à agua potável e ao saneamento básico nos países em desenvolvimento e acabar com a fome por todo o planeta. E ainda sobrariam 520 mil milhões de euros para outras decisões úteis a toda a Humanidade.

Números eloquentes, que ninguém cuidou de contestar.

quinta-feira, dezembro 07, 2023

Utopias e pandemias

 

1. Passaram agora cem anos sobre o nascimento do Urbano Tavares Rodrigues. E, à exceção da Antena 2, somadas a algumas iniciativas em bibliotecas municipais, quase não dei pela efeméride.  Trata-se, porém, de um dos mais influentes escritores portugueses do século XX, que paga os custos de sempre ter-se assumido como comunista.

Justifica-se a suspeita de se ter tornado vítima de um macartismo cultural, que vigora atualmente entre nós e só vai poupando José Saramago, porque ninguém lhe pode negar o Nobel. 2. Utopista, e por isso mesmo também realista, Orhan Pamuk deu uma entrevista em que apresenta a solução para os grandes problemas da atualidade, mormente para as guerras, as pandemias e as alterações climáticas: o apagamento dos governos nacionais em proveito de um outro de âmbito mundial determinado a enfrentar e a resolver esses grandes desafios e daí forte o bastante para superar os obstáculos dos oligopólios. Enquanto isso não sucede vai continuando a investigar e a escrever novos romances, ao mesmo tempo que não se priva de ir zurzindo no regime de Erdogan.

Dele agora publicado a Editorial Presença um volumoso romance - Noites de Peste - com mais de 600 páginas e cuja escrita iniciou antes da pandemia do covid. Pioneiro ele escolhe por tema uma epidemia numa ilha imaginária em 1901 espelhando a tentação dos governos para, nesse tipo de situações, se tornarem ainda mais autoritários. De passagem ainda reflete nas circunstâncias em que o Império Otomano desapareceu.

3. Estou a ler um capítulo de Les Ingénieurs du Chaos em que Giuliano da Empoli revela a forma como se constituiu e empolou o Movimento Cinco Estrelas em Itália.

Explorando as emoções negativas nas redes sociais e usando o insulto como mensagem política mais frequente, Empoli revela os interesses  empresariais de quem explora a raiva, a paranoia e a raiva de tantos humilhados e ofendidos das nossas sociedades capitalistas e os transforma em idiotas úteis ao serviço dos interesses de quem deveriam fugir como da peste. 

terça-feira, dezembro 05, 2023

Nicole Kidman de olhos bem abertos

 

Data deste ano o documentário Nicole Kidman: les yeux grands ouverts de Patrick Boudet, que retrata a atriz ambivalente, que rodou com Gus Van Sant, Jane Campion e Stanley Kubrick. Embora parecesse talhada para as grandes produções de Hollywood ela não teve pejo em arriscar no desempenho de papéis controversos quando ainda vivia na Austrália e a condição de “mulher de Tom Cruise” não se pusera: em 1989 protagonizou Calma de Morte onde já se colocava a situação de uma mulher forçada a atitudes extremas para se libertar das grilhetas masculinas.

A mudança para a costa ocidental dos Estados Unidos aconteceu logo a seguir, bem como o casamento com o parceiro de cartaz em Dias de Tempestade de Tony Scott.

Nos onze anos, que durou essa ligação, Kidman não enjeitou seguir rumo à parte optando por filmes de autor mesmo se, também eles seduzidos por produções mais avantajadas. Caso de Gus Van Sant em 1995 com Disposta a Tudo ou Jane Campion em 1996 com Retrato de uma Senhora.

O que o documentário comporta de maior novidade é a depressão em que mergulhara no final do mediático casamento e a avassalava quando a Academia lhe deu o Óscar pelo desempenho de Virginia Woolf em As Horas.

Nas quatro décadas em que multiplicou-se por incontáveis desempenhos, Nicole Kidman sempre quis ser combativa, mormente em prol das causas feministas, mas também ambígua nas suas vulnerabilidades. Por isso, apesar de personagens masoquistas, e até sujeitas a violência conjugal, primam na sua filmografia as que lutam para afirmarem a sua identidade e emancipação.