segunda-feira, março 20, 2006

AS CRIANÇAS DE RUA DE DAKAR

O filme é a preto e branco, não só por opção estética, mas porque os recursos decerto não abundavam. A urgência do que se mostra não se compadece com pruridos artísticos, tão obscena se revela uma realidade afrontosa para todos quantos têm os meios para a transformar. Papisthione, que assina a realização, perfaz o que lhe é possível: dar a ver a vida miserável das crianças de rua em Dakar. Se Karl Marx dizia, que à realidade não bastava interpretá-la, sendo necessário transformá-la, «Da Vida das Crianças no século XXI» corresponde a um libelo impressionante para quem perfilhe aquele conceito ideológico.
Logo nas primeiras imagens quem está por trás da câmara interroga uma rapariga, que se prostitui. Entregue a si mesma, ela ainda consegue emitir palavras de esperança em relação a um futuro melhor. Com a ajuda de Deus, sugere! Mas os próprios olhos traem-lhe o verbo: ela sabe que, mais do que fiar-se na Virgem, é obrigada a correr. Para sobreviver…
«Como vão as crianças?». A legenda aparece a separar sucessivos quadros, qual deles o mais incómodo para quem procurasse entretenimento nas imagens.
Na seguinte há corpos espalhados, amontoados, num casebre: o sono, provocado pelo cansaço, ou pela inspiração de colas e outros recursos alucinogéneos, constitui o paliativo para enfrentar a dura realidade da vigília. É a fuga possível às injustiças, que leva um dos miúdos, de olhos esbugalhados a emergirem do seu rosto de esfomeado a perguntar: «Mas já não há leis neste país?»
Injustiças feitas de diversas formas de violência, que lhes acentuam as marcas de cicatrizes por todo o corpo, sobrepondo-se ao encardido da porcaria ou às feridas deixadas por parasitas, que lhes sugam o sangue….
Há tanta tristeza naqueles rostos, que ainda é possível o espanto ao vê-la adensar-se, quando a chuva cai e os ensopa, forçando-os a escolherem refúgios de circunstância aonde o espaço ainda se mostra mais apertado… Ou quando um pequeno cão morre à nascença e força lágrimas, que se julgariam definitivamente esgotadas nas suas glândulas.
O cinema deve ser assim: não deixar indiferente quem o vê. Mas depois de sacudida a letargia para que nos empurra a letargia dos dias, que se pode fazer em alternativa? Acentuar a nossa consciência social? Reagir ao deparar-se-nos na rua quem é irmão gémeo destas crianças porventura já provavelmente mortas e substituídas por outras, que lhes imitam os mesmos traumas seis anos depois?
Uma coisa é certa: o hoje nunca nos pode satisfazer conquanto persista em nos demonstrar diariamente que, à falta de Deus, cabe ao Homem a transformação do inferno terrestre numa aceitável forma de purgatório...

sexta-feira, março 10, 2006

EXEMPLOS DO NOSSO CONTRADITÓRIO VIVER

A discussão sobre os «cartoons» relativos a Maomé e sobre as reacções em todo o mundo islâmico, continua na ordem do dia. Porque continua difícil o estabelecimento da fronteira entre a liberdade de expressão e a sensibilidade ferida de toda uma camada de crentes. No «Público», o José Vitor Malheiros procura situar esse ponto de eventual convergência:
Há quem tente comparar o comportamento do cartoonista que não aceita ser calado, ao do «muçulmano» que não aceita ser ofendido. A analogia está ferida, porque os comportamentos não são simétricos. Enquanto a acção do muçulmano nesta parábola pretende forçar o cartoonista e restringir os seus movimentos, a acção do cartoonista não força nem limita o muçulmano. E esse respeito da liberdade (de ambos os interlocutores neste confronto) é, nas democracias liberais, mais importante que o risco de ser ofendido. É que a única maneira de evitar a possibilidade de ser ofendido é aceitar a certeza de ser escravizado.

Volta a constituir um problema a questão religiosa, sobretudo pelo fanatismo de quem procura assumir uma estratégia proselitista em relação aos que não crêem nas suas convicções. De um lado está esse mundo islâmico, com um crescimento demográfico, que coloca muitos dos seus jovens sem esperança de conseguirem os empregos necessários para auferirem do direito a alguma esperança de normalidade e do outro esse Ocidente envelhecido e consumidor obsessivo de bens invejáveis em vias de se fechar em torno dos seus próprios labirintos.
Neste lado da trincheira, a questão divina está eivada de respostas cépticas, desde a radical rejeição da existência de qualquer forma de transcendência até à complacente aceitação de rituais, que se cumprem por rotina em certas ocasiões específicas da vida, como é o caso dos casamentos e dos baptizados.
Foi neste cenário, que o filósofo francês Quentin Meillassoux escreveu o seu ensaio «Après la finitude», que adopta como subtítulo «Ensaio sobre a necessidade da contingência». E essa contingência é um Deus, que ainda não existe, mas a ser inventado à força de tantas vezes invocado. Sobretudo, porque é a única possibilidade de tornar sustentável uma certa forma de imortalidade assente na ressurreição dos mortos de acordo com uma perspectiva laicizada.
Perante o caos mental inerente à revolta por tanta morte precoce de crianças de tão tenra idade ou de quem ainda tanto haveria a esperar em termos criativos, resta consolidar a ideia de uma crença messiânica derivada do desejo da sua existência.
Essa crença permite ordenar esse caos mental de quem se sente perturbado pela contínua mudança das referências circundantes. Tanto mais, que neste mundo sem Deus, existe uma aparente ordem por cima desse caos vigente. Leis contingenciais, que possam ser o sustentáculo desse devir por elas condicionado, por elas ordenado…
A tese tal qual assim se apresenta não parece sólida para um ateu empedernido, como é o meu caso. Mas, para quem tem verdadeira necessidade de acredita num sentido qualquer para explicar o que não parece ter qualquer justificação, até nem desmerece de tantas outras hipóteses metafísicas…

Sobre a morte existe também a questão da eutanásia, que divide apoiantes e opositores em nome, uma vez mais, de princípios religiosos. Para Nicola Bardola o assunto apresenta uma perspectiva pessoal: os pais, através da organização «Exit» a que ele próprio pertence, decidiram suicidar-se, quando a doença de um deles já estava demasiado avançada para suportar a dor, optando por essa via definitiva em conjunto. Num romance recente ele procura contribuir para um debate desapaixonado sobre o assunto, mas realçando a coragem dos suicidas, condenando a interpretação psiquiátrica de uma eventual irresponsabilidade de quem toma essa opção e caracterizando muitas das actuais práticas médicas como sendo passíveis de prolongar a agonia sob a aparente vontade de aumentar o tempo de vida.

Atitude de ruptura com os valores vigentes foi, também, a de Jun Xing. Hoje ela é a diva da dança moderna em Xangai, mas em 1967, quando nasceu na Manchúria, enquanto filho de um militar aí colocado, Jun Xing era um rapaz.
Muito cedo o seu desejo de dançar leva-o ao exército aonde essa vontade é correspondida pelos espectáculos artísticos de propaganda. Razão para a sua rápida ascensão até ao posto de coronel enquanto reconhecimento pela sua condição de melhor bailarino chinês.
Em Nova Iorque conhecerá as opções mais vanguardistas da dança contemporânea ganhando aí idêntico reconhecimento enquanto bailarino de excepção. Até tomar conhecimento de uma nova técnica, desenvolvida no seu país, para pessoas como ele a contas com problemas de identidade sexual. A mudança de sexo fá-lo mulher, resolvendo esse desajustamento antigo entre o que sentia e o que dizia o seu bilhete de identidade. Seria a primeira operação de mudança de sexo na República Popular da China.
Hoje, casada com um alemão e mãe de três crianças adoptivas, Jun Xing procura sacudir o conservadorismo artístico de um regime, que também procura a forma de se transformar num projecto viável no futuro…

Um pouco ao norte dessa China em mudança, Lee Chang Dong é reconhecido como um dos seus intelectuais mais estimulantes, sobretudo enquanto realizador de cinema. «Oásis», um filme posterior à sua curta passagem pelo Governo, enquanto Ministro da Cultura, apresenta um homem simples, explorado pela família e condenado injustamente por um crime, que não cometera.
Trata-se de um filme sobre as fronteiras do que separa cada um de nós dos outros, mormente dos que apresentam deficiências mentais dos que aparentemente não as têm. O protagonista tentará violar uma mulher com esse tipo de deficiência, antes de por ela se procurar fazer amar…
Está-se entre o Bem e o Mal, entre carrascos e vítimas, numa metáfora à atitude esquizofrénica dos próprios coreanos, que continuam separados pela fronteira do paralelo 38.
Perante os seus temas, sejam eles literários e/ou cinematográficos, Lee Chang Dong confessa-se visitado, amiúde, por certas imagens, como se vivesse entre dois mundos.
Ora não é esse o destino do Homem Contemporâneo? Do que atrás fica explicitado não sobram muitas dúvidas. Todos nós vivemos entre dois mundos: entre o Ocidente e o Islão, entre a exegese religiosa e o mais radical ateísmo, entre a Vida e a Morte, entre a identidade masculina e a feminina, entre a loucura e a «normalidade»…
Tantos exemplos deste nosso contraditório viver...