terça-feira, junho 30, 2020

(DIM) Quando Hollywood encolhia ou agigantava personagens


Os filmes são do piorio, quase competindo com Ed Wood (o verdadeiro!), mas sempre marco presença na sua apreciação, quando me passam ao alcance. E Ataque da Mulher Gigante, que Nathan H. Juran realizou em 1958 mostrou-se tão mauzinho que ele escusou-se a assiná-lo com o nome verdadeiro escondendo-se atrás de pouco hábil pseudónimo: Nathan Hertz.
Todos esses filmes da década de 50 com alienígenas capazes de ameaçarem americanos ordinários - no sentido inglês do termo: ordinary - tinham subjacente o medo dos ataques nucleares ou das radiações que, no íntimo temiam provenientes da União Soviética. Se, ainda hoje em dia, o americano médio reage com fortes reticências, quando um político lhe acena com o socialismo, como têm feito os corajosos Sanders ou Ocasio-Cortez, a explicação passa pela forte campanha anticomunista lançada por Hollywood na sequência da caça às bruxas do senador McCarthy.
As histórias são sempre um sucedâneo do estereotipo em que uma nave extraterrestre chega à Terra e começa a causar alterações nos pacatos cidadãos: a uns encolhe-os como sucedeu com o protagonista do filme de Jack Arnold, que continua a ser um dos melhores da estirpe. A outros transforma em zombies, então crismados de profanadores de sepulturas. No caso deste filme agiganta-os, tornando-os monstros, que só a providencial explosão de um transformador de média tensão consegue eliminar.
A mensagem era óbvia: os que ameaçavam o sonho americano pretendiam alterar as mentes das incautas vítimas de forma a tornar caótica uma sociedade tão “idealmente” organizada. E o que de melhor poderiam fazer os espectadores nas plateias senão porem-se de sobreaviso e alertarem o providencial FBI quanto a uma qualquer ameaça latente? Tudo isto construído com os risíveis efeitos especiais propiciados por tão irrisórios orçamentos. E o elenco era formado por gente quase anónima arrebanhada entre os saldos dos estúdios.
O estranho é este Attack of the 50 Foot Woman ter-se tornado num fenómeno de culto tão intenso, que não faltou quem o tenha refernciado em muitos filmes e séries televisivas, onde imagens ou o seu poster figuraram como elementos da cenografia. E, nos anos 90, Daryl Hannah até protagonizou uma remake, que não deixou saudades, nem mesmo nos cinéfilos mais picuinhas.

segunda-feira, junho 29, 2020

(DIM) A astuta noviça de Salzburgo


Quando lhe encomendaram a adaptação cinematográfica de Música no Coração, Robert Wise não terá sentido grande entusiasmo: se cinco anos antes o seu West Side Story saíra da cerimónia dos Óscares com dez estatuetas não compreendia que lhe dessem a tarefa só porque ambos os filmes coincidiriam em números cantados e dançados. A história da família von Trapp parecia-lhe demasiado piegas para merecer tão opulento projeto.
O resultado foi o que se viu: algo que um conhecido crítico apontaria como exemplo paradigmático do filme pornográfico, porque tinha o argumento segmentado em partes distintas, cada uma trabalhada de forma a promover a tensão preparatória do climax, o orgasmo correspondente às mais conhecidas canções entoadas por Julie Andrews e os sete pimpolhos e pimpolhas.
O filme teria um razoável sucesso comercial, Wise voltou a levar nova estatueta para casa e houve quem clamasse pela injustiça de Julie Christie ter surripiado idêntica distinção à canora rival, graças ao desempenho em Darling de John Schlesinger.
Mais de meio século passado, Salzburgo vale-se turisticamente das suas minas de sal, de ali ter nascido Wolfgang Amadeus Mozart e do golpe publicitário de milhões conhecerem o Jardim Mirabell graças à sequência aí rodada com a arguta ex-freira quando se preparava para aproveitar-se das inocentes criancinhas até conseguir meter na cama o capitão, que lhe dera emprego.

sábado, junho 27, 2020

(DIM) «A Estrada do Tabaco» de John Ford


Não fosse a Cinemateca programar o filme para a noite de 6 de julho, exibindo-o na Esplanada às 22 horas e continuaria a não dar atenção a este filme que John Ford rodou em 1941, dois anos depois de As Vinhas da Ira e do qual se diz constituir um estranho contraponto. A srª Ford detestava-o e a crítica considerava-o um dos maiores fracassos da filmografia do realizador.
Li o livro de Erskine Caldwell há uns bons cinquenta anos, quando a coleção Dois Mundos dos Livros do Brasil era para ser lida de fio a pavio. A exemplo de Steinbeck, Pearl Buck, Malaparte e outros, de que me lembraria se continuasse a puxar pela memória, Caldwell era dos autores mais requisitados por aquele editor. Mas confesso que já pouco retenho da experiência: foi daquelas leituras, que entretiveram durante umas horas, mas depressa esquecidas em proveito de outras bem mais gratificantes.
Ford aceitou este projeto, imposto por Selznick, fiado no sucesso comercial inerente a transpor para filme uma peça na Broadway aí em cena desde 1933. A adaptação do romance fora entregue ao competente Nunnally Johnson e podia retomar a abordagem da dura vida dos camponeses do Sul dos EUA - neste caso num recanto da Geórgia à beira do rio Savannah -, que guardavam a saudade dos dias das fartas colheitas de algodão ou tabaco.
Para os Lester, família liderada pelo patriarca Jesper, rodeado dos dezoito filhos e suas proles, a esperança reside no regresso à região do capitão Tim, seu senhorio. Em tempos era o pai quem potenciava o desenvolvimento de toda a região mas ele vem tão falido como eles, entregando aos bancos as suas terras e as arrendadas. É o banco proprietário da sua quinta quem impõe aos Lester o ultimato: ou pagam cem dólares de renda nos próximos três dias ou são expulsos.
Mas se adaptação do romance de Steinbeck constituíra um forte libelo anticapitalista, A Estrada do Tabaco justifica que, pensando num célebre título de Almodovar, um crítico francês lhe tenha sugerido como título alternativo  «Campónios à Beira de um Ataque de Nervos».
Por isso este é um filme em que muito se grita, tornando caricaturais os personagens, que assumem um tom trágico-burlesco algo paradoxal.  Tanto mais que falam com um  sotaque justificativo de se necessitarem das legendas para melhor compreender o que dizem entre si. Há a religiosa que canta salmos da manhã à noite, o idiota da família que adora imitar a buzina dos carros ou a rapariga meio selvagem de sensualidade instintiva. Quem desempenha este último papel secundário é a jovem  Gene Tierney, então com vinte e um anos e a tirocinar para vir a tornar-se num dos rostos marcantes do cinema norte-americano das duas décadas seguintes.
A Estrada de Tabaco conta, aliás, com um elenco surpreendente porque, aos atores principais pouco conhecidos - Charles Grapewin, Elizabeth Patterson, Marjorie Rambeau ou William Tracy - acrescenta alguns secundários bastante mais conceituados: além da futura Laura por lá aparecem igualmente Dana Andrews ou Ward Bond.
O final é o expectável: os bancos prevalecem sobre os pobres e o casal de velhos despede-se dos filhos para se alojar no derradeiro sítio onde têm um espaço à sua espera: um asilo para outros da sua igualha.
Quanto a John Ford, despachada a encomenda, dedicou-se a obra bem mais de acordo com  o que mais desejava: no mesmo ano assina o aliciante O Vale era Verde.

quinta-feira, junho 25, 2020

(DIM) Jean Renoir, Xiaogang Gu, Euzhan Palcy e Marcel Carné


Extremamente curiosa a versão de Jean Renoir sobre A Pequena Vendedora de Fósforos, célebre conto de Andersen, que todos conhecemos quando crianças.

Numa entrevista dada quarenta anos depois a Jean Eustache o futuro realizador de Boudu Salvo das Águas ou de A Regra do Jogo confessaria o fascínio que sempre sentira pelo escritor dinamarquês, mas este filme de 1928 dava-lhe igualmente o ensejo de propiciar à atriz com que estava então casado - Catherine Hessling - uma excelente oportunidade para revelar o talento numa interpretação com algo de chaplinesco.
E Renoir, que sempre se interessara por brinquedos, compõe aqui uma cena demonstrativa dessa propensão, tanto mais que o cinema sempre seria para ele apenas mais uma dessas ferramentas de diversão com que se deleitava.
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Não sei se teremos o privilégio de vermos estreado em Portugal o filme Estadia nos Montes Fuchun, que o chinês Xiaogang Gu apresentou em Cannes no ano passado, mas quem o viu multiplica-lhe elogios por constituir um auspicioso convite à contemplação durante as mais de duas horas e meia que dura. Conterá porventura o mais belo plano-sequência do ano na cena de dez minutos em que uma rapariga passeia com o namorado à beira do rio. Ela é a neta de uma anciã espevitada, frequentada pelos quatro filhos, todos eles a contas com problemas de dinheiro, seja porque as ambições não bastam para o que têm ou o jogo se encarrega de lho sonegar.
No mais temos a China atual com as demolições aceleradas de todos os edifícios velhos para que se afirme a modernidade, o constrangimento das politicas demográficas apenas permissivas para um filho por casal ou as contradições múltiplas de uma sociedade dividida entre o problemático passado e o imprevisível futuro.
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Em 1989 estava quase sempre fora do país pelo que não pude confirmar se Assassinato sob Custódia estreou-se ou não entre nós. Mas, se tal aconteceu, não encontrei disso registo. E, no entanto, tinha Donald Sutherland, Marlon Brando, Susan Sarandon, Janet Suzman ou Michael Gambon como intérpretes, justificando só por isso o seu interesse. Mesmo que se reconheça a incapacidade do realizador, Euzhan Palcy, para ir mais além do que de uma versão do «Apartheid para Tótós».
Sutherland é uma espécie de Pangloss: apesar de ser professor de uma escola só para brancos, julga-se a viver no melhor dos mundos possíveis. A vida irá mudar totalmente, quando os escrúpulos o levam a tentar perceber a razão porque desapareceu o seu jardineiro. E, então, depara-se com o lado criminoso de um regime, que não hesita em puxar do gatilho sempre que alguma resistência encontra junto dos que considera seus escravos.
Brando, já numa época em que se limitava a fazer de ... Brando, é o advogado num julgamento, que depressa se sabe viciado por quem mexe todos os cordelinhos do poder.
O ingénuo Ben de Tolt vai ser vítima da perseverança com que procura ver feita justiça. Perdendo tudo, a começar pela família, que não compreende como pode ele  pôr em causa o bem-estar apenas para apoiar quem sempre desprezara.
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Pode um filme estar datado no mesmo momento em que se estreia? A demonstração é Les Portes de La Nuit, filme que Marcel Carné rodou em 1946, pondo um jovem resistente (Yves Montand a estrear-se no cinema) a enamorar-se por uma mulher casada, cujo cunhado fora ativo colaboracionista. Se Les Enfants du Paradis fora encantatória obra-prima no ano anterior, Marcel Carné não percebeu que a Libertação tudo mudara, deixando de fazer sentido a relevância dada ao Destino ou os diálogos poéticos de Prévert.
O filme contava com presenças prestigiadas, como a de Jean Vilar ou Serge Reggiani, e podia-se nele ouvir «Les Feuilles Mortes» pela primeira vez, mas já parecia velho antes de envelhecer. E não se perspetiva que fosse particularmente diferente se Carné tivesse concretizado o desejo de o ver protagonizado por Jean Gabin e Marlène Dietrich...