E eis que ao cair do pano de mais um ano de cinefilia, tive o prazer de ver um filme como já julgava não existir de cuja falta tenho sentido.
É certo que não foi realizado para o cinema, pois Philip Kaufman não conseguiu quem lho produzisse em Hollywood, mas convenhamos que, nas produções televisivas, a HBO está a fazer um trabalho muito meritório de que «Hemingway e Gellhorn» constitui exemplo impressionante.
Já vira de Kaufman alguns títulos, que me tinham agradado moderadamente («A Insustentável Leveza do Ser» ou «Henry and June»), mas sobretudo um dos que colocaria facilmente no Top-20 dos filmes da minha vida: «Os Eleitos». Razão à partida para olhar para esta proposta com natural simpatia. Mas ainda mais quando o tema é o do encontro entre Hemingway e Martha Gellhorn, com a guerra civil de Espanha por cenário de fundo, já que ali se terão enamorado e decidido casar.
Ora essa guerra anunciadora do terrível morticínio, que se seguiria entre 1939 e 1945, continua a ser um dos momentos determinantes na História dos povos. E daqueles que me levam a pensar o quanto, se fosse jovem na altura, teria gostado de alinhar na Quince Brigada a matar fascistas e a cantar «Ay Carmela».
Mais do que uma biografia de duas personalidades singulares, «Hemingway e Gellhorn» espelha uma época em que os artistas não ficavam cingidos ao conforto dos seus ateliês ou escritórios e iam para as frentes de batalha lutar à sua maneira contra as injustiças e as desigualdades. Encontramos por isso as presenças do escritor John dos Passos (que pena ter-se reconvertido num anticomunista primário depois de saber o amante assassinado pelos espiões de Estaline!), do cineasta Joris Ivens ou do fotógrafo Robert Capa como representantes dos muitos intelectuais que adivinharam e procuraram travar a ameaça representada por Franco.
É claro que a relação amorosa de Hemingway com Martha tinha tudo para dar errado: ele era demasiado egoísta, ela incontornavelmente audaciosa. E por isso é capaz de o deixar a combater submarinos alemães imaginários em Cuba enquanto vai fazer a cobertura da guerra russo-finlandesa ou de o arrastar a contragosto à China onde odeia tanto Chang-kai-chek como se deixa impressionar por Chou-en-Lai.
A rutura acontece quando ele lhe passa a perna convencendo a Collier’s a dar-lhe o lugar de correspondente de guerra, usualmente atribuído a Martha, para a cobertura da invasão aliada à Europa. Mas nem isso consegue travar a intrépida jornalista , que está na Normandia no dia D ao contrário do ex-companheiro, entretanto deixado para trás noutra das frentes de combate.
Quando Martha lhe exige o divórcio, Hemingway bem o tenta evitar, mas é demasiado tarde. Resta-lhe abandonar-se à decadência irreversível cerceada pelo tiro com que se suicidou. Quanto a Martha passaria as décadas seguintes a cobrir diversas guerras um pouco por todo o mundo sem porém se conseguir livrar do fantasma de quem muito amara.
Fiel às biografias dos seus personagens, Kaufman contou com duas outras boas razões para concretizar um belo filme: as excelentes interpretações de Clive Owen e de Nicole Kidman.
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