Em 1979 estive durante uns meses na reparação de um supertanque nos estaleiros do Bahrain.
Todas as sextas-feiras, dia feriado dos muçulmanos, tudo parava e costumava ir para a cidade ao encontro dos odores a especiarias do bazar de Manama e, sobretudo, do telefonema semanal para casa.
Junto ao edifício onde acedia ao serviço telefónico internacional existia um centro comercial onde, além de excelentes e caríssimos gelados, estavam lojas com as câmaras fotográficas tecnologicamente mais avançadas na altura. Razão para ter decidido ceder ao consumismo e adquirir uma Canon digna do mais ambicioso dos profissionais.
Fiz essa compra em vésperas de apanhar o voo de regresso a Lisboa, para gozar as merecidas férias. E logo cuidei de pôr um rolo e disparar sobre todos os motivos interessantes, que me aparecessem a jeito para a objetiva durante a viagem.
Ora a passagem sobre os Alpes foi gloriosa: o dia estava com uma luminosidade perfeita e da janela do avião da Singapura Airlines comecei a ver os picos a sucederem-se aos vales, aos rios e aos lagos. Cada enquadramento parecia melhor do que o anterior e ia disparando sem cessar. Intimamente pensava, que grande sucessão de fotogramas iria mostrar quando as revelasse em Lisboa.
Subitamente comecei a estranhar o facto de já ter passado as supostas vinte e quatro fotografias do rolo sem que ele acabasse. Olhei para o número no visor que informava sobre quantas teria já tirado e ele mantivera-se na bola preta que deveria anteceder o número um.
Resultado: quando levei a câmara a um fotógrafo para ver na câmara escura o que sucedera, ele confirmou o que suspeitava: não prendera convenientemente o rolo no carreto, que o faria deslizar, pelo que nenhuma imagem ficara registada.
Essa lamentável estreia da máquina fotográfica também prejudicou o usufruto, que pudera ter desses panoramas de eleição, se não tivesse obcecado em conservá-los para a posteridade.
Essa recordação voltou-me à memória ao ver «Les Alpes à Vol d’Oiseau», o documentário de Peter Bardehle e Sebastian Lindemann, datado deste ano, sobre essas mesmas paisagens vistas de cima, desde a Eslovénia até à Alemanha, passando pela Suíça, por França ou pela Áustria.
Durante hora e meia de excelentes imagens, que muito ganhariam se vistas num ecrã tipo Imax, aborda-se a interligação entre a conquista dos picos alpinos e o turismo massificado e como ela modificou toda a vasta região ocupada por uma cadeia montanhosa hostil, onde a natureza trata de, frequentemente, recordar a pertinência dos seus direitos.
Observado a partir de cima, esse mundo plural e majestoso revela as pastagens a grande altitude procuradas pelo gado depois da transumância estival, as cascatas alimentadas pelos cada vez mais exíguos glaciares, os castelos da Baviera mandados construir por Luís II, os rios turbulentos desafiados pelos praticantes de rafting, os cumes conquistados por vagas sucessivas de alpinistas, as falésias abruptas escaladas pelos entusiastas desse desporto radical. E também a aparência abstrata do traçado das estradas no verde dominante ou as aldeias a lembrarem casas de bonecas.
Os Dolomitas, o Monte Branco, o Allgäu ou o glaciar de Aletsch são espaços pujantes de vida e de História, que propiciam a experiência inesquecível, que em tempos perdi tão ingloriamente.
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