No dia em que atracámos em Puerto Madryn soubemos que o candidato presidencial Carlos Menem estava na cidade em campanha eleitoral e viria almoçar a bordo num arranjo negociado com o agente local. O argumento deste fora o de que não existia por ali nenhum restaurante com “dignidade” suficiente para receber o futuro chefe de Estado pelo que a escala do paquete «Funchal» surgia mesmo a calhar.
Na altura estava a concluir-se o mandato do primeiro presidente que sucedera à sinistra ditadura militar, e ainda pairava como ameaça desde a ampla avenida de Buenos Aires onde o obelisco servia de referência a quem se queria aí orientar, até às agrestes paisagens da Terra do Fogo.
Apesar das boas intenções em ter devolvido à Argentina a normalidade democrática, Raul Alfonsin nunca se atrevera a afrontar quem lhe impusera amnistias vitalícias apesar da determinação das manifestações das Mães da Praça de Maio.
Agora, em momentâneo convívio connosco, Menem secundarizava essa ameaça. Embora dizendo-se peronista, tudo nele negava essa filiação, porque era com nítido desprezo que falava dos trabalhadores, aqueles que deveriam constituir a sua massa social de apoio e tinham transformado Evita na sua devotada santa operária.
A esposa de então, a singular Zulema, em nada se coadunava com essa antecessora. Pelo contrário nada fazia para disfarçar o carácter caprichoso e libertino denunciado nos anos seguintes.
Durante o almoço já era óbvio o projeto político do futuro ocupante da Casa Rosada nos dez anos seguintes: o neoliberalismo puro e duro tal e qual estava a ser aplicado pela Inglaterra de Thatcher e pela administração Reagan nos EUA. E para o qual contava com um todo-poderoso ministro da Economia chamado Domingo Cavallo, também conhecido pela sua atividade de traficante de armas.
O desastre estava em vias de consumar-se, mas Menem só previa uma sucessão de milagres capazes de transformarem o país das pampas numa réplica do modelo norte-americano.
Uma das consequências da governação de Menem e de Cavallo foi a fúria privatizadora de que uma das muitas consequências foi a decadência irreversível do setor ferroviário. Como Luís Sepúlveda o confirma no conto «Anaya enea» do livro «Últimas Notícias do Sul» ir de comboio de Buenos Aires para a Patagónia tornou-se impossível. Levando-o a concluir: “Os privatizadores, os modernizadores, os vencedores tinham poder e dinheiro, os satélites e câmaras de vídeo ofereciam-lhes a garantia de controlarem tudo, mas alguma coisa lhes escapava das mãos: não sabiam como ultrapassar a barreira entre o egoísmo elevado à categoria de estética da miséria e um mundo em que as pessoas continuavam a aceitar a incerteza não como uma maldição mas como a força motriz que permite assomar às pequenas certezas, cuja soma é a base primordial da existência”. (pág. 32)
Menem surgira-nos inchado na sua autossuficiência. O pedestal donde caiu atirou-o para as páginas mais negras do último quarto de século argentino.
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