Sou daqueles ateus, que não fica indiferente à beleza impressionante da música religiosa e dos espaços onde ela é muitas vezes celebrada. Por isso mesmo justifica-se a expectativa pelo excelente espetáculo proposto pela Gulbenkian na tarde do dia de São Silvestre, com a apresentação do «Te Deum» de Jerónimo Francisco de Lima, na Igreja de São Roque, com a Orquestra e o Coro da Fundação a serem dirigidos pelo maestro Jorge Matta. Será a oportunidade para ouvir pela primeira vez desde há mais de dois séculos uma obra, entretanto quase caída no esquecimento.
Composta por volta de 1780, integrava-se na tradição jesuíta de aproveitar o último dia do ano para dar graças às mercês e benefícios propiciados por Deus nos doze meses anteriores e que continuou a ser levada por diante mesmo após a expulsão da ordem em 1759. É que já ganhara o estatuto de ser uma das mais importantes cerimónias da capital ao longo de todo esse século e contribuía para bem mais do que o seu estrito objetivo religioso.
Segundo o texto de Jorge Matta para o programa de sala, a cerimónia “constituía (…) um bom exemplo do aproveitamento da teatralização da liturgia na afirmação do poder absoluto”.
Vivia-se em plena Contra-Reforma e todas as ocasiões eram aproveitadas para impressionar os fiéis com a grandiosidade da celebração faustosa na crença em Deus. Utilizavam-se por isso grandes orquestras, que acrescentavam a espetacularidade da cerimónia, ao já de si impressionante espaço arquitetónico onde decorria.
Quando ainda era a Companhia de Jesus a organizá-la costumava ocorrer na Igreja de São Roque perante a presença da família real, do alto clero e do corpo diplomático. Faz, pois, todo o sentido a aposta da Gulbenkian em regressar ao local onde originalmente se costumava ouvir esse Te Deum, apesar de, quando Jerónimo Francisco de Lima compôs o que agora se irá ouvir, já as cerimónias tivessem passado para a Capela Real da Ajuda.
O compositor estudara desde os seus 10 anos no Seminário da Patriarcal e, depois, em Nápoles, onde frequentou durante seis anos o Conservatorio di S. Onofrio a Capuana.
Quando regressou a Portugal tornou-se professor e cantor no Seminário onde iniciara os estudos, sucedendo a João de Sousa Carvalho como Mestre de Capela em 1797.
Sendo igualmente autor de diversas óperas, Jerónimo Francisco de Lima foi muito influente na evolução da música portuguesa na segunda metade do século XVIII.
Não havendo ainda qualquer registo discográfico ou em vídeo sobre esta obra específica, não conseguimos o desejado aperitivo para o espetáculo em causa. Em alternativa contamos com a interpretação da soprano Sandra Medeiros de uma ária do mesmo compositor, mas pertencente à opera «Teseu». Ela será uma das cantoras líricas presentes na Igreja de São Roque para a interpretação do «Te Deum».
Essa gravação tem dois anos e conta ainda com o desempenho do maestro João Paulo Santos ao piano.
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