Há uns dias atrás Charles Esche, o responsável do Van Abbemuseum de Eindhoven, veio dar uma conferência à Gulbenkian em que depreciou a importância do abstracionismo por hoje se exigir utilidade à arte num mundo tão inquieto com as suas contradições. Conceitos de «arte pela arte» ou similares podem fazer sentido para quem a quer restringir à condição de mercadoria desatinada a ser vendida e comprada, mas não àqueles que a julgam imprescindível para associar-se ao esforço transformador destinado a criar algo de determinantemente novo...
Recordei essa sugestão, quando vi «12 anos escravo» de Steve McQueen. Porque se o filme tem os méritos estéticos, que a condição de artista plástico do seu realizador impõe, muito mais sentido faz a história do protagonista, um homem livre raptado num dos Estados da União para servir de escravo nos que, a sul, ainda mantinham essa indignidade na lei.
Pode alguém perder subitamente a liberdade por se ver enleado numa armadilha ilegítima? Basta pensarmos no prisioneiro da cela 44 do Estabelecimento Prisional de Évora para percebermos como, quase dois séculos passados sobre a história real, que serviu de substância ao argumento do filme, subsiste a mesma torpeza e arrogância nos que decidiram perpetrar tal infâmia.
Na altura em que «12 anos escravo» se estreou houve críticos, que se revelaram desagradados com o seu maniqueísmo. É certo que, quase sempre, a realidade é muito mais do que aquilo que dela possamos ver a preto e branco. Mas o “quase” está nas exceções de que a escravatura, como paradigma do que é ignóbil, constitui exemplo esclarecedor.
Quem assistiu por estes dias num telejornal ao obsceno extrato de um filme do autodesignado Estado Islâmico em que se viam umas raparigas assustadas perante os facínoras, que as guardavam e dividiam entre si, pôde comprovar que os Salomon Northup continuam a existir nos nossos dias. E que livrá-los de tal sofrimento continua a ser um imperativo urgente.
O filme de McQueen pode ser visto como o outro lado da história de «E Tudo o Vento Levou». A época e o espaço geográfico são quase os mesmos, mas o retrato que dão não poderia ser mais dissemelhante. Onde os donos das plantações de algodão do clássico de 1939 eram mostrados como gente fina e cordata, no do realizador inglês surgem como bárbaros cruéis e sanguinários. Os bem tratados escravos de Scarlett O’Hara dão aqui lugar aos violentados continuamente, quer nos corpos, quer sobretudo nas psiques.
Está aqui, pois, um paralelo interessante com o que se passa à nossa volta: bem pode passos coelho querer dar a ideia de um país glamourosamente a livrar-se das nuvens negras, que nunca conseguirá dissociar-se do facto de liderar o governo de um país, que mantém um preso político há quarenta dias na prisão…
Nesse sentido, e independentemente dos muitos prémios com que se viu reconhecido, “12 anos escravo” cumpre o estipulado pelo conferencista da Gulbenkian: é extremamente útil para explicitar o quão hediondo pode ser o poder absoluto, aquele em que não há quem guarde os guardas dos que estão privados da sua liberdade...
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