A grande experiência teatral de 2014 foi garantida pelo espetáculo com que O Bando comemorou o seu 40º aniversário - «Quarentena» - e através do qual revisitou muitos dos personagens criados ao longo de todo o seu historial.
Se até então considerava o «Ensaio sobre a Cegueira» como a proposta mais inesquecível de quantas saíram da lavra do grupo dirigido por João Brites, essoutra mais recente conseguiu manifestamente superá-la. Por isso mesmo aguardo com a antecipada certeza de com eles ainda vir a reviver tal peça, quer o CD com a banda sonora da autoria de Jorge Salgueiro, quer o DVD com o documentário sobre o work in progress, que envolveu tantas dezenas de atores, músicos e técnicos durante os vários meses investidos na criação de tal espetáculo.
O Bando acaba agora o ano com outra proposta e outra ambição, mas não menos criatividade. «Casa Verde», a peça com que pudemos ressacar da experiência anterior, é baseada no conto de Machado de Assis, «O Alienista».
Quem leu esse texto maior da literatura brasileira recorda o Dr. Simão Bacamarte, que tece uma nova teoria sobre os comportamentos desviantes de todos quantos vivem na sua pequena cidade, começando-os a internar sucessivamente num manicómio a que chamou «A Casa Verde», a fim de melhor deles cuidar. Porém, e enquanto sucessivos poderes vão-se instalando na cidade, à partida em revolta contra tais internamentos, mas tão só consolidados no poder, interessados em que eles continuem e incluam os opositores, Bacamarte conclui pelo erro do que formulara e decide libertar todos os que condenara à reclusão. Nesse entremês, conclui que os loucos não são os que se comportavam em notório desvio com a norma, mas os que precisamente mostravam firmeza de carácter em agirem o mais de acordo possível com ela. E recomeçam assim os internamentos.
Passará mais algum tempo até Simão Bacamarte concluir novamente pelo erro da sua teoria, mandando libertar todos quantos mandara internar. Considerando-se a si mesmo como o único ser perfeito da cidade, constata que o único anormal é ele e decide assim trancar-se na Casa Verde para o resto da sua vida.
É essa história que Guilherme Noronha - que nos impressionara vivamente pela interpretação do personagem Cão em «Quarentena», resgatado de «A Jangada de Pedra» - escolheu para a sua estreia enquanto encenador. E como é Sara de Castro quem protagoniza a peça, transformou Simão Bacamarte em Ema Casaverde, a cientista, que nascera numa das mais prestigiadas famílias da cidade e por isso mesmo é recebida com gratidão pelos conterrâneos, que nela veem a solução para a cura de uns quantos de entre eles mais dados a comportamentos singulares, Sobretudo se se mexem e gesticulam muito…
Mas Sara também se dobra no papel da afilhada de Ema, e que lhe merece tanto afeto. Essa Eva é uma recriação da personagem de D. Evarista, que no conto de Machado de Assis é a mulher de Simão Bacamarte. Será em Eva que os concidadãos de Ema depositarão as esperanças para que mitigue os excessos da madrinha, mas sem sucesso, já que ela própria acaba igualmente internada.
Excetuando essa recriação dos personagens originais a história segue fielmente o fio condutor do que Machado de Assis propusera.
Sara de Castro tem um papel à medida do seu talento, representando brilhantemente os gestos da loucura e debitando o texto com as nuances de dicção adequadas para entendermos se ouvimos Ema ou Eva ou em que fase da evolução do pensamento da primeira nos situamos em relação às contradições por que passam as suas teorias.
Por seu lado Guilherme Noronha fez um impressionante trabalho de dramaturgia depurando da história original tudo quanto se revelaria desnecessário para dar consistência ao que pretendia contar. Mas é, sobretudo a encenação, que inclui o recurso muito inteligente às ferramentas videográficas, que mais valoriza o texto e a interpretação de Sara Castro, acentuando o seu lado claustrofobizante.
Numa altura em que ainda se recorda como os internamentos psiquiátricos serviram de estratégia de silenciamento de quem pensava diferente e se vive um momento em que basta um juiz assim decidir prepotentemente para pôr um ex-primeiro-ministro na prisão, «Casa Verde» interroga-nos sobre muito do que vamos vivendo no presente. Sobretudo quanto à pertinente questão de sabermos quem nos pode proteger de quem nos guarda!
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