1. Em 2004 o escritor argentino Alberto Manguel publicou o seu «Diario de Lecturas» através do qual traduziu por escrito as descobertas propiciadas pelos autores, que iam fazendo parte dos seus dias.
Sem preocupações de estabelecer um cânone assumia aquilo que a leitura deve ser: um prazer tão superlativo quanto possível.
Chegado a esta altura da vida - reformado e não muito longe dos sessenta anos - a leitura também é um dos meus maiores prazeres. Sempre o foi, mas posso-lhe agora dedicar a concentração que era incompatível com a atividade profissional dos últimos anos quando o descanso era um bem demasiado escasso e passível de, a qualquer momento, ser interrompido por um telefonema com mais uma urgência por resolver.
Porque cheguei a uma fase em que as fronteiras se estreitam faz todo o sentido o que li hoje no posfácio de um romance de Henning Mankell: “le temps, qui manque toujours, manque encore plus. Je dois prendre des décisions de plus en plus fermes sur ce que je ne veux pas faire. C’est la seule façon de profiter du temps dont je dispose - et nul n’en connait la durée - pour accomplir ce que je désire le plus”.
Como leitor, mas também em tudo quanto ando a fazer dos dias, exijo o critério de só gastar este precioso tempo com o que me dá verdadeiramente prazer, o que é social e politicamente útil e com o que possa fazer mais feliz quem amo…
2. Ler policiais pode parecer algo de fútil em função do que atrás fica escrito, mas lá está o tal prazer a justificar a opção. E então se ela se traduz num título do sueco Henning Mankell, tenho garantida a almejada satisfação.
No caso de «Une main encombrante» a história até nem é muito consistente: Kurt Wallander, o detetive que serve de alter ego do autor, está tentado a comprar uma vivenda onde pensa viver serenamente a reforma acompanhado de um cão, que lhe sirva de companhia.
O problema reside no facto de, enquanto se inteira da propriedade, dar com uma mão humana a sair da terra. Desenterrada, ela descobre-se ter pertencido a uma mulher quinquagenária, cujo corpo já teria sido ali escondido há mutos anos.
Dias depois, a investigação consegue dar com outro esqueleto, dessa vez de um homem de idêntica escala etária, enterrado por perto.
Apesar de não haver grande entusiasmo da hierarquia com a afetação de recursos para crimes que já terão prescrito, Wallander consegue contactar quem viveu naquela casa e nas vizinhas nos anos da Segunda Guerra - altura em que tudo terá sucedido - e, depois de quase poder afiançar da possibilidade de se tratar de um casal de ciganos presumivelmente vítimas de ódio racista, consegue identificar os mortos como sendo o pai e a mãe de um engenheiro de origem estoniana ali radicados desde a época em causa. E terá sido ele próprio a matar o pai ao encontrar a mãe enforcada por já não conseguir aguentar por mais tempo a violência doméstica de que era vítima quotidiana.
Ao concluir-se a leitura a possibilidade de se lhe associar a tal futilidade de que aludia atrás, deixa de fazer sentido. Porque estão presentes questões sociais de primeira importância tão pertinentes na Suécia como em qualquer outro sítio onde os livros de Mankell conhecem merecido sucesso. Mas não é só o racismo ou a violência doméstica a conseguirem-nos cativar. Há também a solidão do protagonista, quase chegado à reforma, divorciado, diabético e com a filha quase a sair de casa.
Wallander, que na série inglesa era interpretado irrepreensivelmente por Kenneth Branagh, contituium dos personagens mais interessantes do género policial das décadas mais recentes…
3. Concluído o romance de Mankell, o desafio seguinte é que Patrick Modiano publicou nos dias anteriores à notícia de ter sido galardoado com o Prémio Nobel deste ano: «Pour que tu ne te perdes pas dans le quartier».
O meu entusiasmo pelos romances deste autor já dura há quase quarenta anos, quando conheci um autêntico sortilégio com «Villa Triste». Desde então quase nunca lhe perdi o rasto.
Embora ainda não tenha lido mais do que uma dezena de páginas, as características dos personagens e o estilo de escrita estão lá: existe um misantropo fechado há quase três meses em casa, e que recebe o telefonema de alguém com voz ameaçadora, apesar de lhe propor a entrega de uma agenda por ele perdida em Lyon.
Encontrando-se com esse Gilles Ottolini num modesto bar junto à gare Saint Lazare, Jean Daragane vê-se questionado sobre o paradeiro de um dos nomes incluídos no pequeno livro. Alguém de quem ele já nem se lembra!
Por amnésia ou porque trazer do passado esse alguém implica um sofrimento íntimo, que Daragane pretenderá evitar?
Já não se trata do tempo da Segunda Guerra, quando Paris pululava de clandestinos e delatores e as cidades de veraneio na província organizavam absurdos concursos de misses e bailes feitos de aparências, mas com muitas angústias a condicioná-los.
Mas existe uma similitude entre os romances de Mankell e de Modiano: em ambos o protagonista sofre a solidão da reforma anunciada e o acaso traz-lhes de volta passados há muito soterrados na poeira do tempo.
No caso de Daragane é a Paris dos inícios dos anos cinquenta, que volta à superfície, quando ainda era uma criança. Por isso colocava-se a questão de não se perder no bairro, como o título evoca.
Está lançada a intriga para ser desvendada nos próximos dias. Decerto que com a satisfação habitualmente propiciada pela escrita do mais recente Nobel.
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