terça-feira, dezembro 30, 2014

DIÁRIO DE LEITURAS: Modiano e a busca do tempo perdido

Tudo começa numa tarde em que, deitado no sofá do apartamento donde quase não sai, Jean Daragane ouve o telefone tocar insistentemente. Estranheza é o que sente, já que tal não acontecia há muito, muito tempo.
É assim que se inicia o romance «Pour que tu ne te perdes pas dans le quartier», da autoria de Patrick Modiano e chegado às livrarias francesas em vésperas dele ser designado como o Prémio Nobel da Literatura deste ano.
Embora curtos - este anda pelas 160 páginas - os romances do escritor francês não são para ser lidos à pressa como se fossem guloseimas a que não resistíssemos. Ele é mais do género da iguaria para ser apreciada com delongas, usufruindo o prazer de cada frase, de cada diálogo, de cada novidade sobre cada um dos personagens.
Daragane atende o telefone e deixa entrar nos seus dias um desconhecido com um caderno de endereços por ele perdido e que o devolve a um episódio marcante da infância, mas convenientemente esquecido desde então.
Quanto mais o narrador progride na investigação sobre o seu passado, mais incompreensível ele se torna. A memória, em vez de esclarecer, ainda mais confunde...
Reside aí uma das razões para o fascínio suscitado pelos romances de Modiano: nós, enquanto leitores, conservamos uma componente enigmática sobre o passado, visto pelos olhos da criança, que deixámos de ser.
Mas Daragane vai compreender algo mais: as suas memórias não coincidem com as das testemunhas desse mesmo passado e das pessoas então encontradas.
A questão colocada pelo livro é esta: não será vã a tentativa de procurar o tempo perdido, seja porque ficou esquecido, seja porque dele criámos memórias imaginárias?
Como costuma acontecer nos seus romances vemos Modiano explorar esse lado misterioso de cada ser, que é a memória.
O romance vai alternar em três tempos: o da infância, o da juventude e o da maturidade. É neste último que o passado vem à procura do presente, fazendo resgatar as recordações já muito distantes do patamar da consciência.
É como se a vida fosse um oceano turbulento, com vagas que fluem e refluem, desvendando ou escondendo acontecimentos passados.
No tom melancólico da sua prosa, Modiano subscreve na prática a expressão de Stendhal com que muito se identifica: “Não posso transmitir a realidade dos factos, resta-me apresentar-lhes a sombra”. É essa a citação com que abre o romance, que resume quase toda a obra nos seus cinquenta anos de atividade literária: desvendar os mistérios da vida nas suas silhuetas, nos seus recessos e reflexos...

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