A crítica, quer a nacional, quer a francesa, não foi meiga com o filme de Philippe Le Guay, mas «Alceste À Bicyclette» deu-me um enorme prazer. Por isso mesmo não posso concordar em nada com o que, a seu respeito, Jorge Mourinha escreveu no «Público» ou com o que surgiu publicado no «Positif» ou nos «Cahiers».
Em primeiro lugar temos dois excelentes atores, dos melhores de entre os que a França conta atualmente: quer Luchini, quer Wilson, já nos deram sobejas provas de um talento, que surge superlativamente demonstrado neste filme.
Depois há a ilha de Ré, que constitui um dos mais belos locais de França e uma das minhas memórias mais gratas. Quantas vezes estive em navios, que aportavam a La Rochelle sem que dispusesse do tempo suficiente para arriscar uma visita ao outro lado da ponte, que estava tão próxima quanto a do Tejo quando estava atracado no terminal de cereais da Trafaria. Só anos depois dessas viagens por mar, consegui tal objetivo numa deambulação turística de carro com a família pela costa atlântica francesa.
Nunca mais essa paisagem deixou de me habitar como uma das que mais perdurarão de quantas vi durante estas quase seis décadas de vida.
E, a culminar como razão bastante para o quanto o filme me agrada, há essa revisita ao «Misantropo» de Molière, aqui abordado de uma forma tão imaginativa, que dá vontade de logo nos precipitarmos para a sua leitura em versos alexandrinos.
«Alceste à Bicyclette» começa com a chegada de Gauthier Valence a La Rochelle. Enquanto protagonista de uma série de sucesso todos o reconhecem e pedem-lhe autógrafos. Mas o que ali o trás nada tem a ver com os encantos da região: anseia reencontrar outro ator de quem fora amigo e depois tudo abandonara para viver como um eremita na ilha de Ré.
Autêntico misantropo, Serge Taneur cultiva um ódio assumido contra o mundo do teatro e do cinema depois de ter passado por uma depressão e ver-se obrigado a pagar ruinosa indemnização a um produtor de quem se julgara amigo. Por isso mostra-se totalmente hostil à possibilidade de voltar aos palcos, até mesmo para representar a peça que mais preza de entre todo o repertório do teatro francês.
Gauthier pretende reservar para si esse papel de Alceste, dando a Serge o de Filinte, o amigo otimista sobre o comportamento humano e para o qual o incita a mostrar-se mais complacente.
A persistência de Gauthier vai dando frutos, mesmo que a negociação entre ambos imponha a alternância nos dois papéis, quando ela se estrear: numa semana um fará de Alceste e o outro de Filinte e, na seguinte, trocarão.
Os dias seguintes serão passados nos ensaios, entrecortados por alguns encontros com personagens secundários, que se revelam bem mais do que estereótipos: há o taxista, que espera um favor de Gauthier e o provoca por não o ver satisfeito (uma consulta para a mãe); uma jovem aspirante a atriz, que vai fazendo currículo sem complexos na industria do porno; ou a vizinha italiana, que está prestes a divorciar-se e por quem ambos competem.
Sucedem-se as cenas em que a amizade parece reatar-se com outras onde a rutura se avizinha. E é Francesca a identificar o que está em vias de suceder: parecendo identificar-se em feitio com Alceste, Serge está longe de o ser, porque onde aquele odiava os outros sem ponta de maldade, ele revela-se-lhe nessa sua pior faceta.
Não admira, pois, que o desenlace esteja longe de um happy end: na festa em que celebrarão a assinatura do contrato para vários meses de representação, Serge chantageia Gauthier, impondo que só participará se lhe couber sempre o papel de Alceste. O que obviamente é rejeitado.
Semanas depois, na estreia, Gauthier está a representar o papel principal, quando lhe ocorre uma indesculpável falha de memória, demonstrando-se que Alceste é para ser assumido por quem pode, não por quem quer.
O filme acaba numa das praias da ilha de Ré com Serge a usufruir malevolamente o sabor da sua vingança...
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