sábado, fevereiro 10, 2018

(I) Os cínicos, a sinceridade e o conceito de propriedade


Quem é que é cínico: o professor de virtude ou o professor de cinismo? Se o cinismo é, em todas as circunstâncias, agir segundo o seu interesse, quer isso dizer que se pode beneficiar sendo-se sincero? Equivale então o cinismo à sinceridade?
E se o cinismo começa a revelar-se no preciso momento em que alguém age de forma totalmente oposta áquilo que aconselha aos outros? Seria o cinismo esse desvio entre o que se diz e o que se pratica?
Existe uma diferença significativa entre o conceito atual de cinismo e o que, na Grécia Antiga, era professado por Diógenes de Sínope, aqui representado ao lado num quadro de Jean-Léon Gêrome, datado de 1860. Nele surge o filósofo acompanhado dos cães, que dizia admirar por lhe inspirarem a permanente vocação para provocar, entrando em rutura com os valores tradicionais. Assim, a seu exemplo, não se coibia de se comportar na praça pública tal qual os outros o faziam no recato do lar. Por exemplo masturbar-se à vista de todos e para seu indignado repúdio.
Para essa escola filosófica o cinismo significava assumir o orgulho relativamente àquilo de que se era repreendido. E, em vez de pedir esmolas aos vizinhos, Diógenes exigia-lhas como se constituísse um direito ver-se por eles financiado.
No quadro também se vê a célebre lanterna, que Diógenes levava consigo para todo o lado. Para quê?, perguntaram-lhe um dia. Disse que para procurar um homem, algo que considerava assaz raro, porque só se deparava com miseráveis e pobres de espírito.
Um dia também lhe perguntaram para que servia a Filosofia, ao que terá respondido que para ser rico sem nada ter.  Considerando-se «cidadão do mundo», não reconhecia a propriedade da terra a ninguém, abolindo qualquer fronteira entre o público e o privado.
Mas a mais célebre história sobre este assumido sem abrigo aconteceu quando Alexandre, o Grande, o veio procurar para lhe manifestar genuína admiração, dispondo-se a dar-lhe o que ele pretendesse. Agastado com a presença do soberano, Diógenes ordenou-lhe que desaparecesse da vista, porque estava a tapar o sol. Os cínicos seriam, pois, os que diziam o que pensavam, sem se precaverem das consequências das suas palavras. Não demonstravam o calculismo hoje associado à designação. Constituíam os representantes de uma certa forma de utopia em que tudo era de todos numa antecipação de quem, séculos depois, atribuiria à propriedade a condição de produto de um roubo.

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