sábado, fevereiro 24, 2018

(DL) As duas estruturas simétricas do romance «O Principezinho»


Se lermos «O Principezinho» na perspetiva do adulto ele torna-se-nos um romance de aventuras, na continuidade dos romances precedentes de Saint-Exupéry, quase todos eles a explorarem a mística da sua participação na epopeia da aeronáutica nos seus primórdios. A exceção é «A Citadela», que deixou inacabado e só viria a conhecer-se depois da sua morte, convencendo muitos em como se trataria da sua obra-prima.
O início do romance evoca um acontecimento real na vida do autor, ocorrido em 1935, quando do raid aéreo entre Paris e Saigão: um problema mecânico fá-lo cair no deserto da Líbia. Podemos, pois, supor que terá sido da memória dessa vivência, que ele encontrou matéria para o início do romance, afinal não propriamente uma obra inventada, mas de autoficção, porque testemunha todas as emoções e carências físicas sentidas por quem viveu na pele aquela circunstância: a fome, a sede, o frio, a angústia de se ir morrer. O Principezinho surge, pois, de uma alucinação perante o estado alterado da mente sujeita a um desafio extremo.
O leitor embrenha-se no relato com a empatia sentida em «A Terra dos Homens» ou «Voo Noturno» em que se interessava pela experiência real de quem a narrava.
Inserido nesse romance de aventuras surge o que melhor se associa à natureza dos contos fantásticos através dessa figura infantil vinda do famoso asteroide onde costumava viver, mas de que partira para empreender uma viagem maravilhosa, que o levará a encontrar um conjunto de personagens alegóricas, todas elas importantes para lhe redefinirem o trajeto da busca concluída com o seu regresso a casa. Trata-se de um conto de formação segundo critérios e códigos muito semelhantes aos dos contos tradicionais. Há a dimensão da busca iniciática, que a narratologia evidenciou neste romance e se assemelha, por exemplo, à de «Alice no País das Maravilhas»: o protagonista terá de vencer um conjunto de provas para se afirmar a si próprio, transformando-se o bastante para chegar a casa com outra maturidade.
O interesse do livro reside, precisamente, em ver como essas duas estruturas distintas - a do romance realista e a dos contos maravilhosos - se relacionam para, ao longo de toda a história, concretizarem um bem conseguido efeito de simetria. Ora, desde um célebre ensaio de Todorov, que sabemos ser a Literatura Fantástica esse permanente estado de indeterminação entre o que é realista e fantástico. Podemos, ao mesmo tempo, considerar que o Principezinho existe realmente, mas também nos podemos ficar pela convicção de se tratar de uma criação do estado alucinado do aviador acidentado. As duas possibilidades de leitura são aceitáveis e é a simultaneidade dessas interpretações contraditórias, que faz o livro balancear entre os dois registos.
No livro tudo se passa como se o adulto fosse também uma criança. No primeiro capítulo, quando se queixa de não saber desenhar, o narrador põe-se do lado das crianças contra os adultos, que exigiriam representações mais aperfeiçoadas dos motivos desenhados, que não exigissem grandes explicações sobre o que representariam. E fora por o terem desaconselhado a desenhar, quando tinha seis anos, que o narrador se decidira tornar aviador.

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