quinta-feira, fevereiro 22, 2018

(DL) «Todos os Homens são Mentirosos» de Alberto Manguel (2008)


Trinta anos depois do aparente suicídio do escritor Alejandro Bevilacqua um jornalista francês vai à procura dos que o conheceram para melhor elucidar os aspetos desconhecidos da sua biografia. É que pouco mais se sabe do que ter sido exilado político da ditadura argentina e só ter publicado um livro, considerado genial: «O Elogio da Mentira». Por infortúnio do próprio, mas sobretudo dos seus rendidos admiradores, a morte ocorrera um par de dias após o lançamento público de tal livro, perdendo-se a oportunidade de conhecer outras demonstrações do seu talento.
O primeiro contacto de Jean Luc Terradillos é o escritor Alberto Manguel, verificando-se um curioso exercício de metaficção. Ele descreve Alejandro como um chato sem imaginação, que lhe tomava demasiado tempo para contar histórias sem ponta de interesse. Mas são essas, reproduzidas em segunda mão, que permitem conhecer o passado do escritor: ficara órfão muito cedo e fora educado por uma avó que tinha prestigiada charcutaria no bairro de Belgrano em Buenos Aires. Negócio do qual ele nada pretendia saber desiludindo a anciã, que bem gostaria de nele ter o sucessor. Pelo contrário Alejandro interessara-se muito cedo pelos mistérios do amor atravessando os Andes para perseguir Loredana, uma costureira que logo o faz voltar à procedência destratando-o por tão tola audácia. Casara então com Graciela, uma militante antifascista, que o traía com os camaradas de luta e desapareceria de cena após a manifestação em que ele teria funesta estreia. Preso numa das enxovias do regime ali ficaria alguns meses até ser enviado para Espanha. Pelo meio conhecera o Cubano e a amante, a Pássara, que julgara eliminados pelos carcereiros, enfurecidos com a burla contra eles perpetrada pelo engenhoso meio de se ir apossando de parte das fortunas espoliadas aos antifascistas e supostamente depositadas em contas suíças.
Em Espanha Alejandro tinha sido protegido pela Blanquita, uma espécie de Gertrude Stein madrilena, e sobretudo por Andrea, a secretária dessa tertúlia, que depressa toma a iniciativa de o albergar em casa e na sua cama. Fora ela quem descobrira o manuscrito de «Elogio da Mentira» num saco dele no fundo do armário e o fizera publicar à sua revelia.
No dia do lançamento Manguel constatara a surpresa de Alejandro ao ver na assistência o casal que ele julgara morto e provavelmente visto como tratando-se de fantasmas. Por isso fugira a sete pés da livraria onde decorria o evento e pedira transitório refúgio em casa desta primeira testemunha. Fora do alto da varanda desse prédio, que se teria despenhado para a rua.
Andrea, a segunda testemunha, incita Jean Luc a nada acreditar no que o «imbecil» do Manguel lhe terá contado. Mas no essencial não se dissocia da versão conhecida anteriormente escalpelizando melhor a terrível experiência vivida por Alejandro na prisão fascista.
O terceiro testemunho vem na forma de carta do Cubano para Jean Luc esclarecendo ser ele o verdadeiro autor do famoso livro, que dera a guardar a Alejandro, quando este partilhara consigo a cela  e acreditava ter ele mais hipóteses de se livrar da encrenca do que ele. De súbito somos levados a ponderar na possibilidade de se explicar o suicídio pelo iminente desmascaramento da sua falsa condição de autor da obra-prima.
O esclarecimento definitivo ocorre pela pessoa de Gorostiza, um falso exilado político também protegido por Blanquita, mas sendo, na realidade, um sabujo da ditadura disposto a vigiar os movimentos dos opositores nos locais de exílio. E fora ele quem matara acidentalmente Alejandro ao procurar dele saber a conta que o teria julgado partilhar com o Cubano e onde estaria escondida a fortuna subtraída aos militares argentinos.
Compreende-se, então, a razão de ser do título do romance: é uma estória de enganos em que a realidade se vai revelando, passo a passo, mais complexa do que pareceria de início. Um belo romance de Manguel, que aproveita para lembrar os anos sombrios vividos pelos seus compatriotas, submetidos a tão hedionda ditadura.

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