domingo, fevereiro 25, 2018

(DL) A despedida literária de Kurt Vonnegut


Três anos antes de morrer, aos 85 anos de idade, Kurt Vonnegut escreveu um delicioso livro autobiográfico intitulado «Um Homem sem Pátria - Memórias da América de George W. Bush» no qual abordou sem preocupações cronológicas, e com assinalável humor, alguns dos aspetos da sua vida, sem deixar de zurzir na Administração da Casa Branca, então envolvida na operação militar de agressão ao Iraque de Saddam Hussein.
Desde muito cedo que apreciei a obra do autor. A primeira abordagem não foi a literária, mas através da versão cinematográfica que George Roy Hill fez do seu «Matadouro 5» em 1972. Tinha dezasseis anos e saí do Apolo 70 - então uma das mais entusiasmantes salas de cinema da capital - com um fascínio algo transcendente por essa estória, que misturava a II Guerra Mundial com o exílio inexplicável no planeta Transfalmadore.
Vonnegut conhecera bem demais a guerra em causa, porque estava preso em Dresden, quando os Aliados, por quem tinha vestido a farda, despejaram toneladas de bombas sobre a cidade transformando-a num pavoroso campo de ruínas. O jovem Kurt viu-se, então, obrigado a participar na remoção e incineração dos cadáveres, colhendo imagens inesquecíveis do horror mais indescritível.  Daí a necessidade de lhe fazer a catarse através de uma narrativa, que o remeteria injustamente para a classificação de autor de ficção científica.
Hoje sabemos bem como esse acantonamento de alguns excelentes escritores a um género tido como menor, os impediu de serem corretamente apreciados pelo seu talento. Aconteceu a Vonnegut, como se repetiu com Ursula Le Guin, recentemente desaparecida.
A experiência traumática não impediu o autor de olhar para a realidade com o humor possível de quem provavelmente subscreveria o que sobre ele disse Albert Memmi: o último refugio dos desesperados. Vonnegut lembra o que disse Bernard Shaw sobre a possibilidade de existirem selenitas e terem escolhido fazer da Terra o asilo dos seus alienados. Porque é irracional este esforço de destruição de um planeta - através de ameaças nucleares, de excessos demográficos, de agressões ambientais - que o parecem conduzir a incontornável Apocalipse.
E um dos melhores gags contra a xenofobia é aquele em que Vonnegut aventa a possibilidade de George Dabliú ter invadido o Médio Oriente por se sentir agastado com os árabes, inventores dos algarismos que utilizamos no dia-a-dia. «Experimentem fazer uma divisão recorrendo a números romanos», propõe. E essa é apenas uma das muitas blagues, que vai semeando pelo texto, provocando-nos um riso inteligente. Vivenciá-lo constitui uma das melhores benesses que, como leitores, podemos usufruir.

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