sábado, fevereiro 17, 2018

(I) O papel da vergonha na construção da nossa identidade


Espera-se do corpo, que não dê nas vistas, permitindo sobressair o que estamos  a fazer. Por isso se alguém escorrega numas escadas quando, num tapete vermelho, se encaminha para um jantar de gala, o corpo volta a ser coisa desarticulada.
Segundo Sartre («O Ser e o Nada») o paradoxo do sentimento de vergonha é o de só se justificar se outros testemunham a situação, porque caso aconteça sem esse incómodo, ele não chega a surgir. Estamos então no domínio da consciência de si mesmo e de como os outros a constatam. Um professor, por exemplo, só se sente nessa identidade se tiver em si focalizado o olhar dos alunos.
A vergonha possibilita assim construir o Eu no que ele significa ser social. A nossa identidade acaba por ser uma “identidade social”. E se muitos creem num Deus omnipresente, que tudo vê e julga, é para consubstanciarem a sua existência em função da circunstância de só se sentirem existir em função desse olhar do outro.
Se por outro lado pegarmos em alguém como Donald Trump, alguém que parece incapaz de ter vergonha de quem é, convenhamos que ele exibe em permanência uma máscara porventura capaz de nos escamotear quem verdadeiramente é e cuja natureza mental nos suscita fundamentada desconfiança. Mas convenhamos que o papel de quem parece imune à vergonha lhe dá uma aura nos indefetíveis, que explica seguramente a sua eleição.
Flavie Flament, uma locutora radiofónica, que luta pela imprescrebilidade dos crimes sexuais, aborda, porém, a vergonha de outra perspetiva: violada aos treze anos, quis compreender a razão mais profunda do mal estar de que nunca se conseguiu dissociar. Por isso considerou fundamental percorrer o caminho inverso ao sugerido pela lógica sartriana: dar a voz a quem sofrera o mesmo trauma sem testemunhas e que sentia o mesmo tipo de constrangimento interior.
A reconstrução de uma identidade ferida por tão dolorosa experiência passa não só pela capacidade de a descrever por palavras, mas até por a conseguir recordar, já que a mente tende a recalca-la nas profundezas da memória. A consciência da agressão é uma fase fundamental para conseguir vencer essa vergonha, até então difícil de explicar a si mesma. Nessa situação a exposição então feita aos outros da violência a que se foi sujeita constitui a forma de se reapropriar de si própria. Conclui-se, pois, que se pode ter vergonha sem ter testemunhas ao contrário do que propunha Sartre.

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