domingo, fevereiro 11, 2018

(DL) Javier Cercas, Danilo Kiš , Didier Blonde e Victor Hugo


1. A evocação do seu tio-avô, Manuel Mena, pelo escritor Javier Cercas («O Monarca da Sombra») permite desmentir a ideia feita sobre a República espanhola comummente apresentada pelos seus detratores como um período caótico, com violência generalizada não só entre os que a defendiam e os monárquicos, mas também entre os primeiros, divididos entre comunistas, socialistas e anarquistas, incapazes de encontrarem um denominador comum na forma de construírem um futuro viável.
Em 1931, quando Alfonso XIII partiu para o exílio, criou-se um tal ambiente de esperança em todo o país, que em Ibahernando, vila estremenha da família materna do escritor, em duas eleições sucessivas, à vitória esmagadora dos monárquicos logo se seguiu a da dos republicanos, ambas na dimensão de 80% dos votantes. Cercas chama a isso uma “adesão por inércia”, muito semelhante à verificada em Portugal no 25 de abril de 1974 em que a sensação de uns quantos, sobre sentirem-se minoritários na oposição ao regime, viu-se surpreendida pela súbita maioria esmagadora capaz de se afiançar antifascista desde o berço.
Na descrição da transição desse sentimento de esperança para o de desilusão, que levou muitos a transferirem o apoio para os falangistas, que prometiam ordem e autoridade, Cercas descreve estratégias, que continuam a ser as das direitas nos dias de hoje. Como não ver na permanente afirmação de Passos Coelho em ter ganho as eleições de 2015 essa mesma recusa da direita espanhola em aceitar a derrota eleitoral de 1931? No fundo a mesma reação, que continua a ser a de Rajoy face à derrota na Catalunha em dezembro passado…
Mas também o empolamento de pequenos casos, que parecem ter uma dimensão muito exagerada em relação ao que efetivamente representam. Ou essa permanente atenção ás menores divergências entre as esquerdas, que permita serem exploradas, para que se as consiga dividir.
As direitas continuam a ler a mesma cartilha, esperançadas em que ela lhes devolva os sucessos passados. Cabe agora às esquerdas mostrarem outra inteligência e reagirem de acordo com a importância, que lhes devem merecer os objetivos a médio e longo prazo, em vez de apenas apostarem nas conquistas imediatas . Algo que Arménio Carlos ou Catarina Martins deveriam interiorizar!
2. No romance de Cercas cita-se um conto do escritor sérvio Danilo Kiš intitulado «É Glorioso Morrer pela Pátria». A história é curiosa: devido ás suas atividades revolucionárias o aristocrata Esterházy é preso e condenado à morte. Cresce-lhe então a apreensão: conseguirá manter a pose corajosa perante a forca onde será executado?
Ao visitá-lo a mãe promete-lhe humilhar-se perante o Imperador para conseguir a comutação da pena, prometendo-lhe vestir-se de branco no dia em que ele será conduzido ao patíbulo se a missão tiver sido bem sucedida.
No dia em causa Esterházy vê-a, de facto, de branco trajada, quando o levam para a praça onde será executado, e sente-se aliviado. Adivinha que, no último momento, o ato será interrompido com a leitura do sinal de clemência do soberano. Mas engana-se, porque o penduram efetivamente do laço e suspendem-no.
Não dando resposta às interrogações que levanta, Kiš dá ao leitor toda a margem para que possa especular. Será que a mãe compareceu, de facto, perante o Imperador para pedir a salvação do filho? Será que ele lhe fez crer que assim seria, mas a enganara, deixando que o veredito fatal se cumprisse? Será que essa mãe quis apenas enganar o filho permitindo-lhe encarar a execução com a ligeireza de quem dela se julgaria a salvo até ao derradeiro momento? Movê-la-ia o amor maternal, ou o orgulho da casta, que pretenderia evitar uma reação de medo que a envergonhasse?
É essa uma das grandes virtudes dos melhores textos literários: formularem interrogações sem lhes darem a devida resposta…
3. Um dos mais recentes romances publicados em França é da autoria de Didier Blonde e intitula-se «Le Figurant».  Trata-se de uma assumida homenagem aos atores e atrizes, que os filmes não dispensam, apesar de quase não falarem, limitando-se a credibilizar as histórias com as presenças anónimas perante as câmaras dos realizadores.
O narrador participara na rodagem de «Beijos Roubados» de François Truffaut e aí contracenara com uma rapariga, cujo nome não chegara a saber, mas com quem vivera intensa aventura platónica durante a brevidade de uma só noite.
Quarenta anos depois ele, que nunca a esqueceu, vai procura-la, o que equivale a revisitar muitos outros filmes da Nouvelle Vague em que ela também aparecera fugazmente. Partindo para essa aventura imbuído de um tardio romantismo confronta-se com um banho de realidade: a vida fora do mundo dos filmes nada tem a ver com o sentimentalismo de Antoine Doinel. Perseguindo sombras depara-se com a inevitabilidade de um tempo, que passou e já não é passível de resgatar. Restar-lhe-á olhar para as fotografias desse passado e saber-se dele testemunha.
4. Ao escrever «Os Miseráveis», Victor Hugo ambicionou criar uma obra capaz de mudar a realidade do seu tempo contra a qual combateu o bastante para se ter de se exilar. Ao editor italiano da sua obra escreveu uma carta em que lhe confidenciou essa expetativa: “Em todos os lugares onde o homem ignora e desespera, em que as mulheres vendem o corpo para ganhar o seu pão ou em que as crianças sofrem por falta de um livro que as ensine, e de um lar que as aqueça, «Os Miseráveis» batem à porta dizendo: ‘Abram, que eu venho para vos ajudar!’”
Essa seria a mais nobre função da Literatura: mais do que distrair ou cultivar, deveria estimular a transformação progressista da realidade!

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