sexta-feira, fevereiro 02, 2018

(DL) Uma alma incandescente

Emily Dickinson pertence a uma geração de escritores (Poe, Thoreau, Emerson, Hawthorne, Melville ou Whitman), que marcou uma inflexão na literatura americana. Se se tornou menos conhecida que os demais foi por ter optado por uma vida de reclusão junto da família em Amherst (Massachusetts), só tendo publicado alguns poemas em revistas e antologias enquanto viveu. A primeira recolha dos seus textos só aconteceu em 1890 e a integralidade da obra só foi conhecida em 1955 num volume com 1755 poemas escritos entre 1850 e 1886.
Apesar desse recolhimento, que nada tinha de místico, Emily Dickinson alimentou uma vasta epistolografia em que testemunhou a confessada paixão por Shakespeare, Elizabeth Barrett Browning, as irmãs Brönte e, sobretudo, pela Bíblia de que preferia o Apocalipse. Essa filiação enquanto leitora, exprimiu-se na poesia iluminada como se a incandescência correspondesse à revelação da vida a si mesma. A dimensão religiosa da obra afirma-se num «cântico das criaturas», num hino do ínfimo seja ele feito de pétalas de flores, de borboletas, de abelhas.
Os hinos à luz estival são impressionantes ao apresentarem a realidade como algo mais do que a emanação da plenitude divina para se revelar num teatro de sombras, numa fantasmagoria. A perceção confronta-se com um cérebro tenebroso, labiríntico.
A paisagem familiar está permanentemente nos poemas, revelando-se espaço povoado de ausência, um abismo sem fundo, que desafia a impossível circunferência - ora fronteira, ora porta de acesso para um outro mundo - que Emily Dickinson pretende traçar com as palavras. É uma paisagem, que não consegue ser um centro ideal para a criatura celebrar as obras divinas. Na aparência, ora infantil, ora cerimoniosa, os poemas de Emily mostram o mundo à margem de Deus e dos homens, num tempo que só a ele pertence.

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