sexta-feira, fevereiro 23, 2018

AS PARTES DO TODO (XVII): paixões, talentos e feminismos


1.Quando descobri que a filha de Carolina do Mónaco andava dedicada à Filosofia temi o pior. Por assumido preconceito antimonárquico, que não tenho grande intenção em corrigir. Mas o livro por ela coassinado com o antigo professor, que lhe desvendou muitos dos fundamentos da arte de pensar até se revela bastante interessante, quanto mais não seja pela ideia pertinente, que lhe subjaz: a má prestação das ideologias impede as pessoas de analisarem a realidade de acordo com a racionalidade imposta pelos conceitos que deveriam ser os seus. Daí reagirem emotivamente com todos os riscos que isso comporta. Por exemplo a eleição de Trump nada deve a um qualquer raciocínio fundamentado sobre as capacidades e qualidades, que exibia, mas pela empatia conseguida junto de multidões atónitas com as circunstâncias difíceis em que se viam numa sociedade pós-industrial, onde os antigos empregos foram deslocalizados.
É para aferirem essas emoções, passíveis de serem estimuladas no bom ou no mau sentido, que professor e aluna, hoje já emparelhados na condição de coordenadores e organizadores dos Encontros de Filosofia do Mónaco, escalpelizam todas elas, desde as inerentes ao sentimento amoroso até à cólera, das boas intenções à passividade, etc.
O título refere-se a um polvilhar de emoções num enorme arquipélago desnorteado, onde ainda se torna difícil garantir um pensamento estruturado e novamente eivado do necessário cartesianismo, que facilite as estratégias transformadoras necessárias para superar os perigosos impasses em que nos encontramos, quer políticos, quer sociais, quer, sobretudo, ambientais.
2. Se, por exemplo, Jean Echenoz tem escrito sucessivos romances biográficos de assinalável mérito literário - desde Ravel a Zatopek - o esforço de Catherine Cusset parece ser mais arriscado, porque decidiu romancear a vida de alguém, que ainda está vivo: o pintor David Hockney. Mas vistas bem as coisas, existe uma tão pródiga quantidade de monografias do artista, que a escritora apenas teve de fazer o corta e cola e, a partir daí, dar-lhe uma estrutura narrativa própria do romance e não do ensaio.
Iniciei as primeiras páginas e confesso-me rendido: elas fluem com uma facilidade, que costumamos associar àquele tipo de romance pelo qual nos sentimos agarrados e não descansamos enquanto não lhe desvendamos o fim.
Por agora já passei pela infância do futuro pintor, no seio de uma família muito pobre, porque proclamando-se pacifista numa altura em que os alemães ameaçam as ilhas britânicas, o pai é despedido e alvo de desconsideração pelos indignados vizinhos. Como alternativa torna-se biscateiro, resgatando carrinhos de bebé e bicicletas das lixeiras públicas para dar-lhes novo visual e revendê-las em segunda mão. David desde cedo admirará essa transformação de objetos sujos e ferrugentos em coloridas mercadorias com aspeto de novas.
Após o trauma de ter sido apartado da família durante os bombardeamentos, apanhando um daqueles comboios de que vimos inúmeras imagens nos documentários sobre a Segunda Guerra, David regressa a casa e só lhe apetece desenhar. O problema reside na falta de papel, que o obriga a utilizar as margens dos jornais para rabiscar a sua interpretação visual de tudo quanto o rodeia.
Na escola é admirado pelo talento e os professores instam os pais a porem-no a concorrer a uma Escola das Belas Artes do condado onde vivem. Por essa altura ele olha para os enormes cartazes nas fachadas dos cinemas e, sem falsa modéstia, sente-se capaz de fazer bem melhor.
Là dentro, na sala escura, vive a primeira experiência sexual durante um filme com Humphrey Bogart, quando um homem a seu lado lhe agarra na mão e a coloca no sexo, forçando a masturbação. Tinha catorze anos e perturba-o esse elo entre o proibido e uma vaga sensação de prazer.
Será a mudança para Londres e a descoberta das obras expostas nos seus museus, que lhe proporcionarão o salto qualitativo para a arte contemporânea, libertando-o das influências do naturalismo novecentista.
Quando parei a leitura ele estava a viver esse dilema entre a vontade de se manter numa estética figurativa e ceder â moda de então: estava-se em 1957 quando o expressionismo abstrato de Pollock e de outros artistas norte-americanos pareciam ditar rumos que ele não desejaria seguir.
3. Apropriado para esta época em que as atrizes se vestem de preto em galas circunspectas e o anátema cai sobre todos os possuidores de um pénis, é o romance da inglesa Naomi Alderman e intitulado «The Power».
Trata-se de uma longa distopia com 400 páginas em que as mulheres descobrem-se subitamente dotadas do poder de incidir choques elétricos, primeiro pelo toque, depois à distância, contra os misóginos por quem foram dominadas, humilhadas, aviltadas. Mas a escalada nos acontecimentos faz com que todos os rapazes que não estejam à sua guarda por serem os seus filhos ou irmãos, passam a ser inimigos, passíveis de serem reduzidos à escravatura. Naturalmente surge um movimento de resistência contra essa ditadura, que até não se coíbe de substituir o culto a Deus pelo dedicado à mãe Eva.
Os excessos da atual cruzada anti-assédio, que já motivou reações críticas de mui estimáveis mulheres, tornou este tipo de literatura num êxito de vendas, provavelmente Graças às feministas radicais, que bem gostariam de ver o mundo mudar de acordo com esta proposta ficcional.


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