terça-feira, fevereiro 06, 2018

(DIM) «Onde não existem putas» de Ovidie (2017)


A primeira vez  que Ovidie ouviu falar do caso de Eva-Marree Smith Kullander trabalhava no jornal «Metro». Embora se tratasse de notícia de pé de página, logo a obcecou por se passar num país, a Suécia, conhecido pelo seu modelo social, pelos baixos índices de criminalidade, pela suposta inexistência de sexismo, mas em que afinal as coisas não se revelam tão «perfeitas» quanto parecem à primeira vista. Pouco a pouco a realizadora do documentário «Là, où les putains n’existent pas» começou a detetar a estigmatização das mulheres suecas quanto às suas escolhas sexuais, vendo-se em risco de serem privadas dos filhos.
A história, que verteu para documentário, simboliza o falhanço daquele modelo social, que maquilha uma sombria realidade social. Culminando um pesadelo iniciado três anos antes, quando abandonara o companheiro por ser vítima de contínuas manifestações de violência doméstica, Eva-Marree, então com 27 anos, foi por ele assassinada  nas instalações dos serviços de Segurança Social, onde procurava esclarecer a sua situação, pois tinham-na denunciado como trabalhando como «escort girl». Tanto bastara para esses serviços terem-lhe tirado os filhos de 5 e 4 anos, e os confiarem a esse seu agressor. Mesmo estando oficialmente reconhecida a violência conjugal.
No dia em que fora morta, Eva-Marree conseguira, graças ao apoio do seu sindicato, que lhe fosse reconhecido o direito de visitar os filhos, muito embora o verdadeiro combate fosse o de recuperá-los para junto de si.
 As leis sobre a prostituição visam proteger as mulheres da violência mas, na realidade, servem de instrumento a um controle moralista: dado que consideram incompatível a atividade de prostituta com a de mãe, retiram-lhes os filhos. Daí a efetiva cumplicidade do Estado sueco no assassinato de Eva-Marree: a caça às «bruxas» movida contra as prostitutas, constituiu a implícita ordem para matar a quem a esfaqueou.
Pode-se falar de terror: muitas mulheres, mesmo as que não são trabalhadoras do sexo, recusaram testemunhar para o filme de Ovidie com receio de se verem elas próprias levadas pela polícia e espoliadas dos filhos. E, quando a realizadora quis obter testemunhos das autoridades não os conseguiu como se uma mafiosa omertà fizesse vingar o silêncio absoluto. Quando se tratou de filmar o exterior do edifício onde Eva-Marree foi assassinada, foram muitas as pessoas, que vieram instar a equipa de filmagens a sair dali. Ovidie, que julgava ter deparado com as dificuldades mais complicadas, quando rodou o seu filme precedente, «Pornocratie», sobre as multinacionais do sexo, voltava a deparar com as mesmas dificuldades no país escandinavo.
Quando terminou a rodagem, os pais da assassinada continuavam sem saber o paradeiro dos netos. Até ver o Estado sueco continua impune na forma como abusa do poder, continuando a reconhecer ao assassino, mesmo que preso, a autoridade parental.
O filme de Ovidie é um requisitório contra a injustiça revoltante a que uma mulher foi vítima devido à perspetiva puritana e repressiva tomada pela Suécia e que outros países europeus se sentem tentados a imitar. 


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